4. O problema da discriminação e da raça
4.1. Distinção entre discriminação legítima e ilegítima
A realização de uma análise do caput do artigo 5º da Constituição Republicana e tudo aquilo que nele está contido, evidencia que a própria disposição do artigo não abre espaço para a desigualdade por razões atinentes às características subjetivas ou qualquer outra singularidade relacionadas aos indivíduos. Porém, há possibilidade de se discriminar em função da situação material das pessoas, coisas ou até mesmo de outras circunstâncias. 18
Nesse sentido, alude Manuel Gonçalves Ferreira Filho ao ser citado por Lenise Antunes Dias 19 que:
O princípio da igualdade não proíbe de modo absoluto as diferenciações de tratamento. Veda apenas aquelas diferenciações arbitrárias. Assim, o princípio da igualdade no fundo comanda que só se façam distinções com critérios objetivos e racionais adequados ao fim visado pela diferenciação. (FERREIRA FILHO apud DIAS, 2004)
Então, como demonstrou Lenise Antunes Dias (2004), para não haver prejuízos ao princípio da igualdade, o aspecto que cria a discriminação deve necessariamente estar vinculado à pessoa, alguma coisa ou alguma circunstância passível desse tipo de discriminação, não podendo se estabelecer essa desigualdade se for constatado que o aspecto diferencial não se baseia nessas hipóteses que foram mencionadas. 20
Alexandre de Moraes, também aludido por Lenise Antunes Dias, ao ponderar sobre a discriminação legítima assevera que:
Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não-discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com os critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos. (MORAES apud DIAS, 2004)
Por outro lado, a discriminação ilegítima, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello também mencionado por Lenise Antunes Dias, ocorre quando a lei priorizar especificamente de forma vantajosa ou não, tendo em vista características subjetivas de certos indivíduos ou grupos de indivíduos, sem que sejam observados padrões racionais entre a diferença que se pretende criar e a forma com a qual são tratados aqueles que foram privilegiados pelo favorecimento. 21
Em que pese as palavras do autor supracitado, a discriminação ilegítima, na ótica de Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2003) é uma ação humana (ação ou omissão) que representa a violação dos direitos das pessoas, sendo baseada simplesmente em critérios sem fundamento e despidos de essência de justiça. O autor ressalta que se discrimina por questões ligadas à pessoa como também por outros fatores circunstanciais e subjetivos. Assim, as condutas estruturadas numa opinião previamente formada ou numa tradição cultural injustificada dão suporte para esse tipo de discriminação. 22
Para finalizar, a discriminação legítima é aquela que pode ser verificada por meio de previsão legal excepcionalmente para casos extremos, e caso isso não fosse assegurado, poderia haver uma grande injustiça, dificilmente reparável. A discriminação ilegítima, em contrapartida, é aquela tendente a separar (segregar) pessoas e colocá-las à margem da sociedade em função de questões de ordem pessoal ou circunstâncias peculiares.
Em alguns momentos, é evidente que o Poder Público para satisfazer os interesses públicos, pode atuar de forma suprema para realizar o que dele se espera, justamente para assegurar a todos os cidadãos condições mínimas de sobrevivência. Por isso, conceder benesses a alguns indivíduos oprimidos pela própria sociedade, tratando-os discriminadamente, é a maneira ideal de concretizar a igualdade.
4.2. Inexistência de multiplicidade de raças
A idéia de que existem diversas raças começou a ser difundida no mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Logo após sua eleição foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da Raça Negra, representado naquele tempo por pessoas da comunidade afro-brasileira. No ano de 1996, FHC lançou o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), que instituía medidas para a abertura dessa concepção multirracial. Dentre elas, pode-se destacar a que conferia ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a determinação de adoção de critérios que possibilitavam a inclusão dos mulatos, pardos e pretos como membros da comunidade negra. 23
A partir disso, FHC adotou políticas públicas embasadas no reconhecimento de empecilhos que são motivados por um argumento de que o racismo inviabilizava a progressão social, econômica e cultural dos negros. Ali Kamel (2006) afirma que foi no governo de FHC que se operou essa mudança e se iniciou essa transição paradigmática ao incentivar a discussão de questões raciais no Brasil, e que o presidente contemporâneo prossegue incentivando o mesmo modelo do anterior. Kamel (2006) ressalta que durante o atual governo criou-se o Ministério da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e também para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, o projeto que introduz a política de cotas raciais nas Universidades Federais e, por fim, o presidente atual posicionou-se favoravelmente acerca da elaboração do Estatuto da Igualdade Racial, que estabelece imposições às pessoas de se auto-declararem como pertencentes a certo grupo racial. 24
Ali Kamel (2006) demonstra sua insatisfação ao afirmar que neste País jamais verificou-se óbices institucionais quanto à progressão social de negros, pois é evidente que pelo sistema de mérito no ingresso ao serviço público e vagas nas instituições destinadas ao ensino público, tanto negros quanto brancos pobres sofrem na mesma intensidade. O autor sustenta que o Estado deve assegurar a boa qualidade da educação aos pobres para que eles mesmos, por seus próprios méritos, derrubem a pobreza. Isso, segundo Kamel (2006), pode fazer com que se desencadeiem conseqüências horrendas quando os brancos perceberem que estão sendo preteridos. 25
Apesar de se considerar a existência de uma diversidade de raças no País, é preciso expor o que esses autores pensam sobre a inexistência de múltiplas raças para se chegar à conclusão pretendida. Assim, Ali Kamel (2006) insiste que por cerca de 30 anos os geneticistas entendem que todos os seres humanos são iguais, o mesmo não ocorrendo com os animais, conforme exemplo dado pelo autor. 26 O autor então conclui que isso não acontece com a beleza humana, sendo, por isso, uma grande sorte.
As razões que o levam a pensar dessa forma estruturam-se numa argumentação de cunho científico. Segundo Kamel:
[...] o que a ciência diz é que as diferenças entre indivíduos de um mesmo grupo serão sempre maiores do que as diferenças entre os dois grupos, considerados em seu conjunto. No grupo de negros haverá indivíduos altos, baixos, inteligentes, menos inteligentes, destros, canhotos, com propensão a doenças cardíacas, com proteção genética contra o câncer, com propensão genética ao câncer etc. No grupo de brancos, igualmente, haverá indivíduos altos, baixos, inteligentes, menos inteligentes, destros, canhotos, com propensão a doenças cardíacas, com proteção genética contra o câncer, com propensão genética ao câncer etc. A única coisa que variar entre os dois grupos é a cor da pele, o formato do nariz e a textura do cabelo, e, mesmo assim, apenas porque os dois grupos já foram selecionados a partir dessas diferenças. Em tudo o mais, os dois grupos são iguais. Na comparação odiosa, dois bassês são geneticamente mais homogêneos do que um dogue alemão e, por isso, formam duas raças distintas. Com os homens, isso não acontece. (KAMEL, 2006, p. 44)
A ciência comprovou que o genoma humano é composto por aproximadamente 25 (vinte e cinco) mil genes e que, as diferenças mais notáveis entre as pessoas, como cor da pele, a textura dos cabelos, a forma do nariz, enfim, se determinam por um pequeno conjunto de genes, precisamente numa fração de 0,005 de todo o genoma humano. Com isso, é possível concluir que sob o ponto de vista da genética não há multiplicidade de raças humanas como muitos dizem e que, o conceito de raça segundo o geneticista Craig Venter citado por Kamel, é uma ficção social e não um conceito científico. 27
A cor da pele não serve de parâmetro nem mesmo para se definir a ancestralidade entre os indivíduos, não se podendo garantir que uma pessoa que seja negra tenha a totalidade ou a maior parte de seus ancestrais advindos do continente africano. O geneticista Sérgio Pena, mencionado por Ali Kamel, através da utilização de marcadores moleculares de origem geográfica, analisou o patrimônio genético dos habitantes do Município mineiro de Queixadinha, e constatou que da população negra local 27% têm ancestralidade predominantemente não-africana. O geneticista também analisou a população branca nacional e certificou que 87% dos brancos têm pelo menos 10% de ancestralidade africana. Então, conclui-se que no Brasil há brancos com ancestralidade predominantemente africana como também negros com ancestralidade predominantemente européia. 28
Ali Kamel enfatiza que:
Raça, até aqui, foi sempre uma construção cultural e ideológica para que uns dominem outros. A experiência histórica demonstra isso. No Brasil, dos últimos anos, o Movimento Negro parece ter se esquecido disso e tem revivido esse conceito com o propósito de melhorar as condições de vida de grupos populacionais. A estratégia está fadada a nos levar a uma situação que nunca vivemos: o ódio racial. Onde quer que o conceito de raça tenha prevalecido antagonismos insuperáveis surgiram entre os grupos, e deram origem muitas vezes a tragédias. (KAMEL, 2006, p. 47)
Não bastasse isso, alguns sociólogos defendem com fervor o conceito de raça, reconhecendo que mesmo com a comprovação científica de inexistência de raça, a cor da pele é fator determinante para a discriminação e para a desigualdade. Entretanto, Ali Kamel (2006) indaga: como acreditar que essa pseudo crença possa existir se está provado a inexistência da diversidade racial? Para este autor o uso da noção de raça contribui para reforçar esse mito e não o contrário, isto é, para sepultá-lo. Nesse sentido, Kamel (2006) encerra a discussão afirmando que a variedade de raças não existe e que essas discriminações quanto à cor da pele são "odiosas", "irracionais", "delirantes", "criminosas". 29
Célia Maria Marinho Azevedo (2004) salienta que o racismo não se origina da questão da raça, tanto no aspecto biológico quanto cultural. O racismo, que nada mais é do que uma sobreposição de raças segundo os seus defensores, surge historicamente das diferentes realidades na contemporaneidade, sendo sistematizado como a reiteração de um discurso na medida em que as ciências sociais impuseram a noção de raça como um fator verossímil. A referida autora (2004) elucida que o racismo é o grande responsável pela criação da raça, operando, dessa forma, a consubstanciação de um problema social e cultural de racialização. 30 Azevedo então conclui que: "Este processo de racialização das pessoas que compõem uma dada sociedade alcança pleno sucesso sobretudo quando conta com o apoio formal do Estado na construção de uma ordem racial explícita." (AZEVEDO, 2004, p. 32)
Combater o racismo implica necessariamente pugnar pela desracialização dos anseios e também das ações sociais. Para que isso se efetive mister se faz refutar a categorização de raças, o que não faz o Estatuto da Igualdade Racial ao oferecer tratamentos diferentes em função da raça. Não se pode em momento algum oficializar a política racial para erradicar o racismo, isso foi o que Celia Maria afirmou. 31 Azevedo encerra sua idéia ao explicitar que: "[...] precisamos desconstruir esta devastadora ficção científica das raças que agora se quer impor uma vez mais, porém, na roupagem atrativa e ilusória da ‘discriminação positiva’" (AZEVEDO, 2004, p. 50)
As discriminações positivas, denominadas ações afirmativas, são mecanismos de correção de aberrações sociais que excluem parte da população (minorias) da participação na esfera pública e privada. São utilizadas para concretizar o princípio da igualdade, não podendo, porém, basear-se em critérios de inclusão social de indivíduos marginalizados devido à cor de suas peles. Mesmo em outras situações, parece que a ilustre autora infelizmente não concorda com a adoção de ações afirmativas para a efetivação da igualdade material, o que certamente é um equívoco.
Celia Maria aponta duas ordens de políticas anti-racistas:
A primeira posição define-se por um anti-racismo universalista. Como aqui não se reconhecem particularismos sociais ou culturais, há apenas dois tipos de medidas anti-racistas: medidas repressivas para coibir o racismo; e medidas preventivas, inscritas em políticas sociais cujo alvo é a redução das desigualdades e da exclusão social. Estas medidas requerem um tratamento idêntico ou igualitário para todos os indivíduos de uma mesma sociedade. Por isso, não há aqui qualquer possibilidade para se pensar o espaço público como diferenciado em termos de ‘raça’.
A segunda posição define-se por um anti-racismo diferencialista. O reconhecimento de particularismos sociais, culturais e étnicos fundamenta-se em duas proposições: primeiramente afirma-se a existência de diferenças de raça, na medida em que os grupos estigmatizados interiorizam e promovem uma auto-definição em termos raciais; em segundo lugar, afirma-se que o próprio racismo é diferencialista, sendo a sua tendência a de isolar ou eliminar tudo o que possa alterar ou ameaçar a cultura dominante. Em decorrência, defende-se o reconhecimento das diferenças étnicas no espaço público, o que significa propor a racialização oficial dos grupos oprimidos de modo a inscrevê-los em políticas de ação afirmativa. (AZEVEDO, 2004, p. 68)
Por outro lado, Azevedo (2004) aduz que na tentativa de se resolver o entrave entre as duas políticas anti-racistas, deve haver: "[...] a criação de oportunidades para os segmentos da população historicamente discriminada – sem no entanto perder o sentido universal de humanidade." (AZEVEDO, 2004, p. 73)
4.3. Inclusão social: abrangência do maior número de pessoas com políticas públicas universais
A universalização das políticas públicas sem haver qualquer distinção entre os seus receptores é a maneira mais adequada de proporcionar-lhes um tratamento justo. O incentivo a essas medidas que não deixam de ser emergenciais deve pautar-se por abranger uma quantidade significativa de indivíduos, sem beneficiar ninguém de forma isolada por fatores fenótipicos como faz, por exemplo, o Estatuto da Igualdade Racial.
Não resta dúvida de que em determinados momentos, o Poder Público na perspectiva de promover o bem-estar social, não pode assumir uma postura subserviente quanto àqueles que estejam, urgentemente, necessitados de amparo. Para isso, a ação imediata através de seu aparato para corresponder ao princípio da dignidade da pessoa humana previsto na Constituição da República, mostra-se extremamente precisa e eficaz.
Nesse contexto, surgem as ações afirmativas como mecanismos de se estabelecer essa atuação Estatal embasada no ideal de promoção da igualdade material e, também, na correção das deformidades que assolam certos grupos sociais que se encontram em situações precárias dentro da sociedade. Esse ostracismo acarretado pelo aviltamento social e econômico, dá margem à necessidade de se tratar prioritariamente essas pessoas em função dessa emergência.
Como se sabe, esse privilégio deve persistir até que seja alcançada a normalidade, isto é, a inclusão dos indivíduos isolados da vida social por questões de oportunidade e condições. O objetivo precípuo consiste na concretização do princípio da igualdade, pois se houver excesso resultante do favorecimento transitório, pode haver a inversão dos pólos e aqueles que antes eram acolhidos podem ficar prejudicados.
Dessa forma, a pigmentação da pele, por comprovação científica, não serve de embasamento para justificar a criação de ações afirmativas como o referido Estatuto, ações estas voltadas para a inclusão de segmentos sociais marginalizados. O ideal é promover medidas universais com maior abrangência possível para corrigir as distorções emanadas de dentro da própria sociedade, sem que haja o privilégio de certos grupos em detrimento de outros, principalmente quanto a fatores inexistentes do ponto de vista científico como é a raça.
Com efeito, os pobres que vivem à margem da sociedade e, por isso, excluídos das ações estatais são pessoas de múltiplas cores: pretos, pardos, brancos, amarelos, índios, cafuzos, caboclos, etc. Logo, estar-se-ia fomentando uma grande injustiça ao se criar mecanismos para atingir a igualdade material com o desenvolvimento de programas assistenciais restritos a certas pessoas devido à cor de suas peles.
A cor da pele é um fator que não tem relevância para distinguir as pessoas e, da mesma forma, não pode ser motivo de ações afirmativas desvirtuadas de seu escopo constitucional. Deve-se estimular ações que favoreçam a integração social e que evitem a divisão da sociedade em grupos, possibilitando a eliminação da lenda de que existem diversas raças humanas. Assim, essa prática é inconstitucional na medida em que propicia a discriminação ilegítima, isto é, aquele tipo de discriminação que vilipendia o direito constitucional à igualdade ao tratar uma pessoa em piores condições do que a outra e, pior, levando-se em conta critérios que dizem respeito às características particulares delas.
Peter Fry e os demais coordenadores da obra intitulada "Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo" abordam que:
O novo racialismo a que assistimos no Brasil contemporâneo é um empreendimento de restauração do conceito de raças humanas. Os racialistas começam desvalorizando o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei e terminam atribuindo identidades raciais a cada pessoa. A divisão da sociedade em raças oficiais, ou seja, em grupos raciais catalogados pelo Estado, é o alicerce para um sistema de preferências e privilégios legais concedidos a título de ‘reparação’. Na sociedade racializada, os direitos universais à educação, à saúde e ao emprego passam a um plano secundário. (FRY et al., 2007, p. 21)
Assim, o ideal é fomentar a implementação de políticas públicas universais para proporcionar a todos de um modo geral a garantia do mínimo existencial. Para resolver os problemas que criam um disparate incomensurável entre as pessoas de diferentes classes sociais, o Poder Público precisa se valer da máxima de que se deve tratar os desiguais de maneira desigual na medida de suas desigualdades para atingir a igualdade. É preciso que hajam medidas voltadas para promover o bem de todos sem qualquer tipo de preconceito conforme dita o artigo 3º da Constituição, e que segundo José Carlos Miranda, na obra coordenada por Peter Fry e outros, devem ser: "[...] medidas que vão no sentido de mais igualdade, de ampliação dos serviços públicos de qualidade para todos." (MIRANDA, 2007, p. 322)