RESUMO: A despeito da reconhecida posição de destaque que, hoje, a Constituição ocupa no ordenamento jurídico, nem sempre se aceitou que o Poder Legislativo pudesse ter a sua liberdade amarrada a qualquer fator jurídico, ainda que de ordem constitucional. O caminho até que se reconhecesse a supremacia efetiva da Constituição tem sido longo e ainda não foi todo percorrido. Os esforços deste trabalho se dirigem no sentido de analisar o que, até então foi conseguido, e, após isto, firmar alguns prognósticos, evidenciando critérios que, dentro de uma nova hermenêutica constitucional, se acredita válidos para aferir a legitimidade das leis criadas. Na tentativa de cumprir o fim ora proposto, em primeiro lugar, se enfrentará o problema de definir o que é uma Constituição, com o que se pretende evidenciar a complexidade deste multifacetado fenômeno. No segundo momento, tratar-se-á do Poder Legislativo e de sua submissão aos preceitos constitucionais, buscando a desconstrução de mitos, como o da estanque separação de poderes, que, por muito tempo, conduziram à crença de que a atividade legiferante consistisse em prática desvinculada de qualquer controle jurídico-constitucional. Em seguida, estudar-se-á a efetividade das normas constitucionais, dando especial destaque para as classificações clássicas e contemporâneas, que, por muito tempo, foram determinantes e suficientes para resolver uma série de questões essenciais do Direito Constitucional. No capítulo subseqüente, tecer-se-á algumas palavras sobre a interpretação constitucional, na expectativa de se conseguir demonstrar que a mera (pré)determinação da eficácia dos enunciados da Constituição é insuficiente para efetivar a concretização constitucional em uma perspectiva democrática, ao que se seguirá, finalmente, a análise de critérios que, dentro das novas perspectivas constitucionais, se anunciam como parâmetros de delimitação do atuar legislativo.
Palavras-chave: Poder Legislativo; Constituição; proporcionalidade; igualdade
ABSTRACT: This essay intends to quest about the ties that bounds the law production and the constitutional order. Despite the recognition of the prominence position that the Constitution holds today, there is a big reluctance to admit the full effect that it has on the Legislative Power, which still being seen as an untied instance. The path until the constitutional supremacy was recognized has been long and still has some to go. The efforts of this work are directed to analyze what has already been achieved and some of what is to achieve. Specifically, it wants to persecute a valid criterion to measure the legitimacy of the created laws, accordingly to the new constitutional hermeneutics. In attempt to accomplish the task, the first step will be held in the direction of defining what a Constitution is, demonstrating the complexity of this multifaceted phenomenon. The second step will be to to show that the Legislature has to respect the constitutional precepts, destroying myths, such as the rigid separation of powers, which, for a long time, led to the belief that the parliament should be unlinked to any constitutional control. Then the study will direct itself to the effectiveness of constitutional norms, paying particular attention to the classic and contemporary classifications of it, that, for a long time, were sufficient to resolve a number of key issues of constitutional law. In the subsequent chapter, a few words will be written on constitutional interpretation, in order to demonstrate that the mere predetermination of the effectiveness of the constitutional precepts is insufficient to realize the constitutional order in a democratic perspective. Finally, some criteria that could define parameters for the legitimacy of the legislative acts in the new constitutional order will be exposed and analyzed.
Keywords: Legislature; Constitution; proportionality; equality.
1 INTRODUÇÃO
A posição de destaque da Constituição no ordenamento jurídico é, hoje, reconhecida de forma unânime. A supremacia constitucional é fenômeno que repercute de modo universal no Direito. Especialistas e profissionais de todas as áreas jurídicas – até mesmo daquelas classicamente concebidas como próprias do Direito Privado – e o próprio senso comum popular admitem o papel de estrutura fundante e primaz que a Constituição possui.
Tamanha aceitação não significa que o caminho percorrido até se chegar a tal ponto tenha sido fácil e direto. Muito pelo contrário, os avanços não foram obtidos senão à custa do árduo labor de doutrinadores que se dedicaram ao tema. A despeito disto, persistem problemas e questões tormentosas relacionadas ao tema. O campo continua fértil para os estudos que procurem aprofundar a festejada hierarquia constitucional no ordenamento jurídico, explorando seus efeitos e conseqüências.
E, dentro das possibilidades de temas, insere-se o estudo da relação entre o Poder Legislativo e as diretrizes constitucionais. Nem sempre se aceitou que a atividade legiferante devesse estrita submissão à Constituição; principalmente em relação àqueles preceitos ditos programáticos, a relutância em aceitar a vinculação do legislador foi – e permanece em parte – grande.
Se é verdade que considerável número de vozes propugna pela máxima efetividade de todas as normas constitucionais, é igualmente correto que este importante tópico do Direito Constitucional ainda se revela fecundo a novos estudos e apresenta grandes potenciais de desenvolvimento.
A proposta do presente ensaio é justamente no sentido de enfrentar o atual momento do Direito Constitucional, em que tanto se fala em efetividade dos direitos fundamentais, buscando entender como é que ele pode afetar o labor do Poder Legislativo, que, historicamente, sempre foi visto como um poder investido de grande margem de liberdade. Pretende-se buscar a construção – ou, pelo menos, o esclarecimento – de critérios que permitam, dentro do novo paradigma constitucional, aferir se a atuação do Estado Legislador é coerente com a Constituição ou não.
Na tentativa de cumprir o fim ora proposto, em primeiro lugar, se enfrentará o problema de definir o que é uma Constituição, com a pretensão de evidenciar a complexidade deste multifacetado fenômeno.
No segundo momento, tratar-se-á do Poder Legislativo e de sua submissão aos preceitos constitucionais, buscando a desconstrução de mitos, como o da estanque separação de poderes, que, por muito tempo, conduziram à crença de que a atividade legiferante consistisse em prática desvinculada de qualquer controle jurídico-constitucional.
Em seguida, estudar-se-á a efetividade das normas constitucionais, dando especial destaque para as classificações clássicas e contemporâneas, que, por muito tempo, foram determinantes e suficientes para resolver uma série de questões essenciais do Direito Constitucional.
No capítulo subseqüente, tecer-se-á algumas palavras sobre a interpretação constitucional, na expectativa de se conseguir demonstrar que a mera (pré)determinação da eficácia dos enunciados da Constituição é insuficiente para efetivar a concretização constitucional em uma perspectiva democrática, ao que se seguirá, finalmente, a análise de critérios que, dentro das novas perspectivas constitucionais, se anunciam como parâmetros de delimitação do atuar legislativo.
Espera-se que, percorrido este caminho, consiga-se, ao fim, lançar algumas luzes sobre o modo como deve o Poder Legislativo operar em uma democracia contemporânea. Acredita-se que, diante do estado atual das coisas, em que há grande despreparo e descuido por parte dos agentes políticos, estas observações sejam bastante úteis.
2 COMPREENDENDO O QUE É UMA CONSTITUIÇÃO
Definir a Constituição é tarefa extremamente árdua. Não apenas porque o conceito varia de acordo com o tempo e o espaço, mas, principalmente, porque ele compreende e contempla fenômenos diversos, de variegadas naturezas.
De um lado, é extremamente difícil construir um modelo universal em virtude das particularidades encontradas nas Constituições existentes. Basta atentar para o fato de que é possível se falar em Constituições rígidas, semi-rígidas ou flexíveis, atentando-se à possibilidade de modificação das suas normas e ao processo necessário para tanto [01]; em Constituições sintéticas ou analíticas, consoante contemplem apenas aspectos fundamentais à estruturação do Estado ou versem, também, sobre matérias que, a princípio, poderiam estar previstas em leis ordinárias; ou, ainda, em Constituições escritas e não escritas, conforme o formato externo em que sejam vertidas. Estas são apenas algumas das classificações possíveis, que, aliadas às demais e conjugadas entre si, dão origem a inúmeras possibilidades de modelos de Constituição.
De outro lado, mesmo que se abdique da pretensão de um modelo universal, resignando-se a trabalhar com uma Constituição em específico ou com um modelo concebido como preponderante em determinado espaço e tempo, nem isto faria da tarefa de entender o que é uma Constituição algo simples.
Diversos foram os autores que se debruçaram sobre o problema de definir o sentido e significado de uma Constituição e chegaram a respostas distintas. Porém, o fato de terem colidido em suas conclusões não torna, necessariamente, qualquer deles menos correto. O que ocorre, em regra, é que os estudiosos, ao se debruçarem sobre fenômenos de grande complexidade, ocupam-se apenas de aspectos parciais deles.
A Constituição é fenômeno de grande complexidade, e um justo entendimento do que ela seja não pode ser construído senão a partir da consciência de que tal tarefa demandará a análise de aspectos sociológicos, políticos e jurídicos. Cada um destes, se analisados de per si, conduzirá a distintos resultados, mas, em verdade, todos convergem aquando da tentativa de se buscar a mais precisa e exata definição do instituto.
Em uma perspectiva sociológica, a Constituição é apresentada como reflexo da organização social. O documento escrito, em si mesmo, não possuiria grande valor, senão enquanto representem o concerto real das forças sociais. A arrumação sócio-política das forças sociais determinantes é que definiria a verdadeira essência da Constituição; o texto constitucional escrito, se desrespeitar os fatores reais do poder, fadar-se-ia ao desuso. Esta é a tese defendida por Ferdinand Lassalle (2001, p.40), em clássica obra sobre o tema:
Os poderes constitucionais não são problemas de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem e as constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar.
O fundamento da ordenação jurídico-constitucional, na perspectiva sociológica, residiria na realidade social e na organização daquilo que se convencionou chamar de fatores reais de poder. As forças que atuam na realidade social e política é que determinariam a efetiva feição das normas constitucionais.
Manoel Jorge e Silva Neto (1999, p.17) defende ser impreciso designar de sociológica a perspectiva, porque, ínsito à idéia de fatores reais de poder, encontra-se um modelo organizado e coordenado de estruturação política que, em rigor, é incompatível com a estrutura dos fatos sociais, expressos em condutas irracionais por excelência. Segundo seu entendimento, melhor seria chamar esta acepção de essencialista.
A despeito da terminologia, o fato é que a exacerbação da importância conferida a esta dimensão – sociológica ou essencialista – da Constituição conduzirá a uma inevitável redução dos problemas constitucionais a questões meramente factuais, fazendo com que se perca a dimensão jurídica – e normativa – do texto. Se é verdade que a Constituição possui uma inegável dimensão fática, não é possível, por isso, negar, a sua perspectiva contrafática, ou seja, a sua pretensão de modificar a realidade.
É justamente neste contexto que Konrad Hesse (1991) desenvolveu a sua crítica à teoria sociológica ou essencialista de Ferdinand Lassalle. Para Hesse, seria inconcebível a visão de Constituição escrita de Lassalle. Se, de um lado, não se pode negar que aspectos provenientes da realidade – dentre os quais os fatores reais de poder – influenciam a conformação da ordem constitucional, e, por isso, não podem ser descartados, também não se pode perder a perspectiva de que a Constituição não é mera folha de papel; ela se alimenta das condições sócio-políticas e econômicas, mas, ao mesmo tempo, pretende arregimentá-las;
graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. Determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela, não se pode definir como fundamental nem a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sócio-políticas e econômicas. A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferençadas; elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas. (HESSE, 1991, p.15).
A Constituição, nesta acepção de Konrad Hesse, tem significado próprio e se realiza na medida em que consegue influenciar e modificar a realidade, concretizando a sua pretensão de eficácia. As suas possibilidades e limites de efetivação têm de ser buscados no contexto amplo de interdependência entre realidade e normatividade.
Mais do que efetiva oposição, a obra de Konrad Hesse parece ser uma releitura ou complementação dos ensinamentos de Ferdinand Lassalle. Não há a negação da dimensão fática da Constituição, mas apenas e tão somente a preocupação de evidenciar a perspectiva contrafática deste mesmo fenômeno. Isto apenas corrobora com a advertência já feita de que a Constituição é, em rigor, instituto complexo, que envolve dimensões e perspectivas diversas. As perspectivas sociológica – ou essencialista – e normativa são apenas duas facetas deste fenômeno.
Fala-se, ainda, em uma concepção política da constituição e em uma concepção puramente jurídica da Constituição, as quais são, também, plenamente viáveis e, assim, como as já aludidas, servem para explicar parte do que representa o instituto Constituição.
Na acepção política, a definição de Constituição remonta ao decisionismo político de Carl Schmitt, aparecendo como produto da decisão política fundamental; "para Schimitt a essência da Constituição não se acha numa lei, ou norma, mas no fundo ou por detrás de toda normatividade está uma decisão política do titular do poder Constituinte, isto é, do povo na democracia, e do monarca na monarquia autêntica" (SILVA, 2008, p. 29). A Constituição seria responsável por definir as estruturas básicas e essenciais do Estado, dentre as quais, têm-se como exemplos a forma de Estado, de governo, os órgãos do poder e os direitos e garantias fundamentais. Ao lado destas, outras previsões poderiam ser alçadas ao patamar constitucional, porém, figurariam apenas e tão-somente como formalmente constitucionais.
Já na concepção jurídica de Constituição, utiliza-se da teoria kelseniana para pôr em foco a dimensão lógico-jurídica do fenômeno constitucional, que, segundo esta perspectiva, deve ser visualizado a partir de dois planos distintos: um lógico-jurídico, transcendente, invisível e imaterial, e outro jurídico-positivo, de existência material e visível, caracterizado pela norma constitucional posta.
Todas estas perspectivas foram expostas não para se decidir entre uma, julgada como correta ou mais adequada. Ao revés, a intenção foi demonstrar que em todas elas há acertos, mas também incompletudes, porque explicam apenas parcela daquilo que pode ser considerado um conceito de Constituição.
O importante é deixar bem claro se possuir a consciência da complexidade do conceito de Constituição, que, no final das contas, é o resultado de todas as acepções conjugadas. No presente ensaio, procurar-se-á trabalhar sempre tendo por relevante todos os aspectos do fenômeno constitucional, razão pela qual se pretende contemplar abordagens que remetam à dimensão sociológica, normativa, política e lógico-jurídica do tema.
De todo modo, deve-se ressaltar que será utilizada, como referencial de estudo, a Constituição Brasileira de 1988. Com isto, ultrapassa-se a primeira dificuldade apontada, qual seja, a de, diante das inúmeras particularidades encontradas nas Constituições dos diversos países, construir um modelo específico que sirva ao tema.
3 DA SUBMISSÃO DO LEGISLADOR À CONSTITUIÇÃO
Um simples olhar da história revela que a existência de regras impositivas de comportamento é quase que intrínseco à sociedade. Mesmo em quadras remotas é possível vislumbrar o registro escrito de normas comportamentais, pelo que já seria plausível falar em monumentos legislativos e códigos. Todavia, não é esta acepção tão ampla de lei a que ora interessa. Mais precisamente, as leis, seus contornos e seus limites, tais como estruturados e concebidos hoje, sedimentaram-se em momento relativamente recente.
O Estado Moderno Absolutista teve o mérito de atrelar a produção de leis à soberania estatal, unificando em torno de si a produção dos ordenamentos sociais. A produção das normas definidoras dos comportamentos socialmente aceitáveis e dos não aceitáveis passava a ser prerrogativa exclusiva de um ente particularizado.
Porém, em razão da extrema centralização do poder, ainda não tinha sido imposta nítida distinção entre as funções do Estado; o rei aglutinava a função de fazer, dizer e executar as leis. Efetivamente, somente com o advento do Estado Liberal, preocupado em moderar e orientar o exercício da soberania, é que começou a se sedimentar o arcabouço formal do Estado tal qual hoje se apresenta.
Com o Estado Liberal a atividade legislativa é lançada à condição de uma das três funções preponderantes da soberania estatal, a qual caberia ao parlamento segundo o princípio da separação dos poderes. O Estado Liberal inaugura uma nova ordem, e, ao erigir o princípio da legalidade a um dos seus pilares principais, impõe à Administração a observância da lei na sua atuação, dando origem ao que se convencionou chamar de Estado de Direito (MELLO, 2002, p.90-96).
O que caracteriza o Estado de Direito o fato dele se submeter à ordem jurídica instituída por si. De todo modo, o princípio da legalidade assume, neste momento, uma feição precipuamente formal: as leis consignam limites de atuação, aos quais o Estado – e também os particulares – deve necessariamente se ater.
Não seria nada forçado afirmar que neste primeiro momento a lei assume o papel de maior destaque dentre as funções soberanas. Faz-se até lição comum a de traçar o princípio da separação dos poderes em função da atividade legislativa, nos seguintes termos: o parlamento se incumbe de criar as leis; a Administração atua de forma complementar, limitada a concretizar os mandamentos consignados; e o Judiciário, quando provocado por alguém – subsidiariamente, portanto –, determina o cumprimento de preceitos legais que não tenham sido espontaneamente efetivados. Todo o exercício da soberania estaria atrelado ao Legislativo, portanto.
Esta, todavia, é uma visão clássica, própria do Estado Liberal. Até então, a Constituição servia como mero instrumento formal, estabelecendo o esqueleto estatal e resguardando direitos individuais que apenas limitavam as áreas de atuação do Estado. Dentro desta ótica é que o legislador praticamente não encontrava óbices ao desempenho de sua atividade, erigindo-se, concretamente, como o mais importante órgão dentro da soberania. Até mesmo os magistrados, que deveriam controlar a aplicação da lei pela administração, não poderiam fazer o mesmo em face da atividade legislativa, pois "a lei, encarnação da vontade popular, não deveria sujeitar-se ao controle do Poder Judiciário, sob pena da instituição de um ‘governo de juízes’ de caráter antidemocrático." (SARMENTO, 2003, p.382).
Tal ordem, como já afirmado, foi relevantemente modificada com o advento do Estado Social, ao que se reformulou o papel estatal, não mais compromissado com a manutenção do status quo, mas, ao contrário, com a efetivação de valores atrelados à realização da dignidade da pessoa humana.
Com isto, àquele Estado simplesmente reconhecido como de Direito agrega-se a qualidade de Democrático. Os conceitos de sociedade e Estado, que eram tidos como opostos sob a ótica liberal, passam a ser complementares: a organização política se volta não à manutenção de uma ordem pré-estabelecida, mas à modificação social a ser realizada mediante a satisfação dos interesses sociais.
Neste contexto, o Poder Legislativo perde o papel de destaque. O Poder Executivo torna-se igualmente fundamental, o que se compreende pela exigência de que a tarefa do Estado perpasse pela assunção de um papel ativo, de execução. A importância do parlamento se vê reduzida, porém não aniquilada, ao que ilustram Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino (2004, p.998):
Em nossos dias, especialmente nas democracias ocidentais, a orientação política do país está confiada, antes de tudo, ao executivo e a concretização dessa orientação está ligada à formulação de projetos de lei que o mesmo executivo, conquanto formalmente não investido do poder da iniciativa legislativa, não terá dificuldade em fazer chegar à assembléia ou assembléias às quais incumbe a "decisão" das leis.
Nesta nova ordem, de um Estado ao qual se atribui um papel ativo, proliferam as leis; cria-se uma verdadeira balburdia de legislações extravagantes e especiais, formando microssistemas aparentemente estanques, imbuídos de princípios e orientações próprios. Criam-se estatutos específicos para tutelar, por exemplo, a criança e o adolescente, as locações, as relações de consumo, os sistema de habitação, dentre tantos outros.
Gustavo Tepedino (2004, p.13), cotejando tal situação em face do Direito Civil atual, assevera que "[...] reconhecendo embora a existência dos mencionados universos legislativos setoriais, é de se buscar a unidade do sistema, deslocando para a tábua axiológica da constituição da República o ponto de referência antes localizado no Código Civil."
Deste modo, percebe-se que o papel de norte axiológico, unificador do sistema jurídico, passa a ser assumido pelas Constituições. Todas as matérias do Direito devem se pautar para, em última instância, realizar os preceitos consignados na Constituição. Como arremata Pietro Perlingieri (2002, p.25): "a Constituição rígida assume a centralidade, com função de garantia da unidade, como parâmetro de legitimidade e fonte de legitimação e de justificativa da própria atividade legislativa."
De fato, o papel das Cartas Políticas torna-se muito mais audacioso: ao adentrar em searas antes deixadas ou ao livre alvitre do legislador ou à regulação da própria sociedade, afirmam-se como verdadeiras cartas de intenções, consignando em seu corpo valores e direitos a serem necessariamente defendidos.
O princípio da legalidade teve, necessariamente, de ser revisitado. Não significava mais, e tão somente, a observância da lei como limite expresso à atuação do Estado e dos particulares. O compromisso torna-se muito maior; significa, agora, o comprometimento com a efetivação dos anseios consagrados em sede constitucional. O Poder Público, em todas as suas esferas, compromete-se com a mudança social, atentando sempre para os valores constitucionais, o que se justifica nas palavras de Paulo Bonavides (2002, p.386):
A consciência da garantia e efetivação da liberdade provém muito menos da lei do que da Constituição. Se o velho Estado de Direito do liberalismo fazia o culto da lei, o novo Estado de Direito de nosso tempo faz o culto da Constituição. A lei às vezes degrada e avilta, corrompe e escraviza em ocasiões sociais e políticas de profunda crise e comoção, gerando a legalidade das ditaduras, ao passo que a Constituição é sempre a garantia do poder livre e da autoridade legítima exercitada em proveito da pessoa humana.
A função precípua do Poder Judiciário, de seu turno, é a de resguardar a aplicação desta nova forma do princípio da legalidade, atenta aos preceitos constitucionais. Todos os poderes, inclusive o Legislativo, têm sua atuação necessariamente pautada nos limites e anseios consignados na Constituição, e os magistrados devem curar para que a lei seja produzida e aplicada em consonância com esta nova ordem.
Este deslocamento, por óbvio, impôs uma série de modificações substanciais na forma original da tripartição dos poderes. Em rigor, sequer seria mais possível falar em separação dos poderes, porquanto a soberania passe a ser entendida como poder estatal uno e indivisível. As funções legislativa, executiva e judicial não são mais concebidas como parcelas da soberania estatal, privativas dos respectivos órgãos, mas como uma prerrogativa preponderante. São segmentadas apenas para viabilizar ao Estado o seu melhor funcionamento e, conseqüentemente, a persecução de seus fins. Nas lições de Paulo Bonavides (1994, p.147):
O princípio vale unicamente por técnica distributiva de funções distintas entre órgãos relativamente separados, nunca porém valerá em termos de incomunicabilidade, antes sim de íntima cooperação, harmonia e equilíbrio, sem nenhuma linha que marque separação absoluta ou intransponível.
A atividade do legislador, portanto, encontrará limites expressos constitucionalmente – seja no aspecto positivo ou negativo –, aos quais deve obedecer, podendo, inclusive, sofrer controle por parte do Judiciário, guardião da ordem constitucional, sem que isto, necessariamente, configure ofensa à separação dos poderes.
Pelo contrário, o Poder Judiciário, nos termos constitucionais, veste-se da prerrogativa precípua de garantir a aplicação e prevalência da ordem jurídica, no que se faz totalmente válida e legítima a sua interferência nas demais esferas do Poder quando assim direcionada.
Com isto, tem-se por finda esta breve correlação entre a atividade legislativa e o Estado contemporâneo. Espera-se ter evidenciado a importância de efetivação do Estado Democrático de Direito consagrado na Constituição pátria, mais alto degrau da ordem jurídica, à qual o parlamento – e não somente ele – deve estrita e irrefutável subserviência.