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Critérios para aferição da constitucionalidade material da atividade legiferante.

Os postulados e o controle do excesso de poder

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4 DA EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

Como que para justificar uma maior liberdade às instâncias políticas, vigeu, por muito tempo, o entendimento de que nem todos os mandamentos constitucionais se reverteriam em efetivas normas. Algumas disposições da Constituição eram consideradas meras exortações, promessas que gerariam diminuto ou inócuo compromisso por parte do Poder Público e da própria sociedade.

O estudo clássico acerca da eficácia das normas constitucionais ampara-se na doutrina norte-americana, que, seguindo Thomas M. Cooley, Ministro da Suprema Corte de Michigan, distinguia os preceitos constitucionais em self-executing e not self-executing. Esta distinção foi trazida para o Brasil, e reverberou, sobretudo, pelo escol de Ruy Barbosa, que designava as normas constitucionais como auto-executáveis ou disposições, de um lado, e como não-auto-executáveis ou mandamentais, de outro lado. Enquanto estas últimas demandariam a atuação do legislador para que pudessem ser aplicadas, as primeiras seriam aptas à produção de efeitos ab initio, independente de qualquer outro fator.

Neste primeiro momento, não havia que se falar em normas programáticas. O fenômeno era, ainda, relativamente recente e uma grande parte da doutrina clássica sequer reconheceu a sua existência, a exemplo do próprio Ruy Barbosa. Existiriam, assim, normas que estavam prontas para serem aplicadas e normas que o próprio constituinte determinou que só pudessem ser aplicadas após a complementação pelo legislador ordinário.

Pontes de Miranda também aderiu à doutrina clássica. Preferiu, porém, a denominação de normas bastantes em si mesmas e normas incompletas ou não bastantes em si mesmas para diferenciar as espécies normativas. E, dando um passo adiante, conforme noticia Ingo Wolfgang Sarlet (2005, p.240), ao contrário de Ruy Barbosa, Pontes de Miranda reconheceu a existência de normas constitucionais programáticas, como uma decorrência do fracasso do modelo liberal de Estado, reconhecendo a estas um certo grau de cogência, na medida em que cerceiam a atividade do legislador, que não pode contrariar o programa estabelecido pela Constituição.

As normas programáticas são fruto da transição do modelo do Estado liberal para o do Estado social. A principal característica destas normas está na particular estrutura do seu enunciado, composto de termos indeterminados, que apregoam a realização de valores, fins e ideais utópicos. A novidade não foi facilmente digerida. O novo modelo normativo era incompatível com as técnicas subsuntivas, que, até então, representavam a única forma de aplicação do direito. A solução encontrada pela doutrina foi a de negar às normas programáticas aquilo que é mais característico de qualquer norma, a possibilidade de produzir efeitos. Como indica Paulo Pimenta (1999, p.148), a doutrina clássica, também seguida, no Brasil, por Victor Nunes Leal e Nelson de Souza Sampaio, dentre outros, definiu um conteúdo semântico da norma programática, segundo o qual esta não obrigaria os órgãos do Estado, não geraria qualquer direito subjetivo ou interesse legítimo, tratando-se apenas de indicação de princípios, ficando os direitos, no dizer de Cooley, ‘dormentes até que a legislação lhes acuda’. Tratar-se-ia, em resumo, de norma ineficaz.

A despeito de a doutrina clássica ter perdurado vigente por bom tempo no Brasil, a modificação do contexto constitucional a tornou anacrônica. Na medida em que os textos constitucionais passaram a conter cada vez mais disposições programáticas, ela se tornou insuficiente para explicar o sistema brasileiro.

A superação da doutrina clássica se deu, todavia, de forma paulatina, seguindo de perto as lições de um italiano, Vezio Crisafulli. Passou-se, então, a defender a inviabilidade de normas constitucionais despidas de toda e qualquer eficácia, porque "uma norma [tida como] não-auto-aplicável, mesmo tendo caráter eminentemente programático e contendo princípio de natureza geral, no mínimo estabelece alguns parâmetros para o legislador, no exercício de sua competência concretizadora." (SARLET, 2005, p.241).

Assim é que, na acepção moderna da teoria da eficácia das normas constitucionais, também os princípios, especialmente os princípios-fins, que estabelecem programas a serem perseguidos, passaram a ter sua normatividade reconhecida. É bem verdade que a eficácia desta espécie de normas constitucionais continuou a ser distinta daquela reconhecida às normas simples e comuns. A repercussão delas se daria, com especial ênfase, em relação ao Poder Público, principalmente em face do Poder Legislativo. Em síntese, a partir do pensamento de Crisafulli, passou-se a perceber que cada princípio representa uma direção de legislação, um tema ou programa a desenvolver-se progressivamente através de uma ulterior e sucessiva normação, à luz das quais o ordenamento inteiro deve ser interpretado. Contudo, numa Constituição rígida, tais princípios, postos como fontes superiores da lei ordinária, derivam um vínculo forte para a função legislativa, que não poderá qualificar-se como diretivo, e sim obrigatório, com a conseqüente invalidade das leis emanadas em sentido contraste. (PIMENTA, 1999, p.152)

A partir desta necessidade de reconhecer eficácia a todas as disposições constitucionais surgiram novas propostas de classificação das normas constitucionais. José Horácio Meirelles Teixeira, valendo-se da idéia de que "toda e qualquer norma constitucional alcança algum tipo de eficácia, de tal sorte que a eficácia das normas constitucionais pode ser considerada de natureza gradual, isto é, variando entre um mínimo e um máximo" (SARLET, 2005, p.243), fala em normas de eficácia plena – que gerariam os seus efeitos essenciais de plano – e normas de eficácia limitada – cuja produção dos efeitos fundamentais dependeria da atuação do legislador –. O autor em voga propõe, ainda, a subdivisão das normas de eficácia limitada em normas programáticas e normas de legislação. As primeiras teriam eficácia limitada em virtude de seu conteúdo ético e social, enquanto as últimas sofreriam restrição na produção de seus efeitos em razão de questões técnicas e instrumentais.

É José Afonso da Silva (2008) quem apresenta a primeira proposta de classificação tricotômica da eficácia das normas constitucionais. Segundo pensa tal doutrinador, as normas poderiam ser (a) de eficácia plena, quando dotadas de aplicabilidade direta, imediata e integral, em nada dependendo do legislador para a produção de seus efeitos essenciais; (b) de eficácia contida, se, embora investidas de aplicabilidade direta e imediata, houver margem para limitação de sues efeitos por meio da atuação legiferante; (c) de eficácia limitada, que, por não possuírem normatividade suficiente, não produziriam seus principais efeitos, senão após sua concretização pelo legislador. Para José Afonso da Silva, tanto os princípios programáticos quanto os princípios institutivos e organizatórios estariam englobados entre as normas de eficácia limitada.

Outras propostas de classificação foram formuladas em doutrina, porém, a grande maioria não difere muito da de José Afonso da Silva, como é o caso, por exemplo, da classificação encampada por Maria Helena Diniz, que adiciona uma quarta categoria, alcunhada de normas com eficácia absoluta, para englobar as cláusulas pétreas, imodificáveis [02].

Pode-se sintetizar os principais pontos nas classificações contemporâneas que consideram a eficácia das normas constitucionais para afirmar que elas partem do pressuposto básico de que não existe norma constitucional completamente destituída de eficácia; no máximo, o que se pode sustentar é a existência de uma gradação na aptidão da norma para produzir seus efeitos essenciais. Trata-se de grande e inegável avanço, que apenas contribui para o reconhecimento da efetiva supremacia da Constituição. A despeito disto, estas teorias reconhecem que algumas disposições encontram seus efeitos sobrestados, condicionados à atuação do legislador ordinário.

Sob uma perspectiva crítica, todas as propostas de classificação contemporâneas pecam por não distinguir entre texto e norma. Trata-se, em rigor, de noções distintas e autônomas. "Normas não são textos nem o conjuntos deles, mas os sentidos construídos a partir d interpretação sistemática de textos normativos." (ÁVILA, 2007, p.30). Norma é o resultado da interpretação do aplicador do direito. O texto é tão somente um dos possíveis objetos a serem interpretados – o mais comum deles, mas não o único, já que é possível pensar em normas independentes de texto legal. Não há correspondência perfeita entre os conceitos; é possível a construção de uma norma a partir de um, diversos ou nenhum dispositivo legal (texto), do mesmo modo que um só artigo poderá consubstanciar uma, diversas ou até mesmo nenhuma norma.

O que as classificações pretendem distinguir não é a eficácia das normas constitucionais, mas apenas e tão somente a potencialidade dos enunciados constitucionais. Sempre que se estiver diante de uma norma constitucional propriamente dita não se haverá de falar em ineficácia ou eficácia restrita, contida ou ilimitada. Normas são sempre eficazes porque representam o resultado final da interpretação, o direito pronto e acabado para ser aplicado no caso concreto.

O problema da efetividade da Constituição não pode mais ser tratado a partir de uma classificação prévia dos seus enunciados. Para se garantir a realização da ordem constitucional, há de se fugir a fórmulas prontas e acabadas, que prometem ter a resposta a todos os casos da vida que se lhes possa apresentar. A Constituição, como já registrado alhures, não é apenas texto, tampouco se resume a um documento que se posta no ápice da pirâmide normativa. Somente a partir da utilização de técnicas de interpretação e hermenêutica é que se torna possível imaginar a efetivação da ordem constitucional.


5 CLÁSSICA INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

Tão ou mais importante do que classificar as normas (rectius: os enunciados) constitucionais conforme a sua eficácia é a percepção da sutileza envolvida no processo de interpretação constitucional. Decerto, categorizar os enunciados de acordo com as suas potencialidades ajuda e confere segurança à interpretação jurídica, mas não se pode nutrir a ingênua postura de que tal classificação criará óbices intransponíveis ao intérprete ou que este apenas aplicará, imediata e automaticamente, o que está estabelecido na Constituição ao caso concreto.

O interprete jurídico trabalha com textos legais, compostos por palavras cuja significação está longe de ser unívoca. As palavras não possuem significado único e preciso; antes, dependem do respectivo "uso e interpretação, como comprovam as modificação de sentidos dos termos no tempo e no espaço e as controvérsias doutrinárias a respeito de qual o sentido mais adequado que se deve atribuir a um texto legal." (ÁVILA, 2007, p.31). Mesmo o usual recurso à pretensa intenção do legislador como forma de amarrar o processo de interpretação jurídica a um conteúdo específico e determinado é imprestável. Não passa de um subterfúgio. Em um complexo processo legislativo, que envolve série de interesses muitas vezes contrapostos entre si, é inconcebível imaginar que exista uma vontade única identificável.

O ato de interpretar é, em rigor, um ato de decisão. Não há um significado previamente posto, mas um determinado sentido que é construído; "a atividade do intérprete – quer julgador, quer cientista – não consiste em meramente descrever o significado previamente existente dos dispositivos. Sua atividade consiste em construir esses significados." (ÁVILA, 2007, p.32).

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O fato de a interpretação jurídica representar uma construção de significado não implica, todavia, em conferir ampla liberdade ao intérprete. Envolvem-se, no processo, traços de significado mínimos incorporados ao uso ordinário ou técnico da linguagem que devem, em todo caso, ser respeitados. "O produto da interpretação é a norma. Mas ela já encontra, potencialmente, no invólucro do texto normativo." (GRAU, 2002, p.22). A atividade interpretativa não é, assim, de mera e simples construção, mas, em rigor, de reconstrução de significado.

Daí se dizer que interpretar é construir a partir de algo, por isso significa reconstruir: a uma, porque utiliza como ponto de partida os textos normativos, que oferecem limites à construção de sentidos; a duas, porque manipula a linguagem, à qual são incorporados núcleos de sentidos, que são, por assim dizer, constituído pelo uso, e preexistem ao processo interpretativo individual. (ÁVILA, 2007, p.33-34).

Embora inegavelmente criativa, a interpretação jurídica é, sempre e necessariamente, técnica. Deve ater-se, por isto, a significados e preceitos mínimos, compatíveis com os usos e expectativas sociais, sob pena de subverter a ordem democrática, deixando o intérprete livre para se valer de seus usos e conveniências particulares.

No caso da interpretação da Constituição, algumas nuances, decorrentes das características do texto a ser interpretado, interferem no processo e devem ser ressaltadas. Como destaca Anderson Sant´Ana Pedra (2006, p.121):

A interpretação constitucional, além de pedir conhecimento técnico elevado, exige sensibilidade jurídica, política e social, para que se possa penetrar no verdadeiro sentido das disposições constitucionais e nos reflexos das mesmas no ordenamento jurídico global.

De fato, a Constituição, por se tratar de documento primeiro e inaugural do ordenamento jurídico, dispõe de forma mais ampla sobre as situações da vida por si regulamentadas. O texto constitucional faz intenso uso de normas programáticas e conceitos indeterminados, cujos sentidos só podem ser preenchidos no momento da interpretação.

Se, de um lado, estas características contribuem para tornar a Constituição um documento adaptável as vicissitudes e condições históricas, evitando o anacronismo, de outro lado, abrem margem grande para subjetivismos interpretativos. A este último problema, resolve-se recorrendo aos preceitos do Estado de Direito. Em uma perspectiva democrática, o intérprete não poderá descurar do sentido e das expectativas que a sociedade nutre sobre o sentido da Constituição.

Os destinatários da norma participam do processo hermenêutico, na medida em que vivem a realidade constitucional. Basta notar que – consciente ou inconscientemente – a corte constitucional se vale, por exemplo, do entendimento da comunidade científica, para definir o que é liberdade científica, ou da opinião dos jornalistas, para aferir o que se entende como liberdade de imprensa.

Neste sentido é que se põe a tese da sociedade aberta dos intérpretes constitucionais de Peter Häberle (1997, p.14), para quem, o processo hermenêutico-constitucional, para ser democrático, deve permitir que a participação de diversas forças produtivas de interpretação. Deve-se fugir à regra de interpretação exclusivamente estatal. Cidadãos e grupos, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública se tornam "intérpretes constitucionais em sentido lato, atuando nitidamente, pelo menos, como pré-intérpretes".

É de suma importância que, aquando do processo interpretativo, respeite-se os sentidos e expectativas mínimos que os destinatários da norma constitucional nutrem. A própria idéia de unidade da Constituição só se perfaz, em uma perspectiva democrática, a partir do concerto dos diferentes intérpretes da constituição no exercício de suas funções específicas; só assim é que se poderá extrair um sentido democraticamente legítimo do texto constitucional (HÄBERLE, 1997, p.32-33), principalmente diante de uma Constituição como a brasileira, revestida de normas programáticas, direitos fundamentais e de conceitos indeterminados.

Neste contexto, há que se tomar consciência de que o processo de concretização constitucional é extremamente rico e transcende os modelos clássicos de interpretação, pautados na simples aplicação do raciocínio subsuntivo com o auxílio de métodos relativamente simples, como o literal, o teleológico, o histórico-evolutivo ou o sistemático.

Concretizar a Constituição é tudo isto e muito mais; é partir da interação com problemas da vida, cotejá-los com o texto constitucional e com o sentimento coletivo acerca de toda a situação.

Não é lícito pretender que uma prévia classificação de eficácia dos enunciados constitucionais seja suficiente para dar as respostas neste âmbito. A postura deve ser a de tentar extrair dos enunciados constitucionais a máxima efetividade possível, satisfazendo as expectativas sociais depositadas sobre a Constituição.

A proposta deste trabalho é, justamente, a de evidenciar alguns dos critérios possíveis para orientar a concretização destes preceitos constitucionais, principalmente quando em pauta a atuação do legislador.

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Sobre a autora
Mirella Barros Conceição Brito

Assessora jurídica do Ministério Público do Estado da Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITO, Mirella Barros Conceição. Critérios para aferição da constitucionalidade material da atividade legiferante.: Os postulados e o controle do excesso de poder. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2790, 20 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18527. Acesso em: 22 nov. 2024.

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