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"Primavera árabe": reflexões sobre a existência do direito à democracia ("right to democracy")

Inicialmente, cumpre destacar que a primavera árabe (Arab Spring) nada mais é do que o movimento em busca da democracia nos países islâmicos que teve início durante a administração do Presidente dos Estados Unidos George W. Bush em 2005. Atualmente, pode-se dizer que esse movimento democrático apresenta sua segunda onda, que começou a se intensificar no Oriente Médio e no norte da África, notadamente entre o final de 2010 e início de 2011, durante o governo do Presidente norte-americano Barack Obama. A primavera árabe tem levantado sérios questionamentos sobre a possibilidade da existência de governos democráticos nos países do norte da África e do Oriente Médio, que são conhecidos vulgarmente como "Mundo Árabe". Além disso, há sérias indagações sobre o futuro desses movimentos populares, mesmo após os sucessos parciais obtidos na Tunísia e no Egito. Há, ainda, o questionamento sobre a existência, de fato, do direito à democracia. [01], [02], [03], [04], [05], [06], [07]

Apenas a título didático, é importante relembrar os 03 (três) modelos normativos de democracia descritos por HABERMAS. De acordo com a primeira concepção de democracia, que é conhecida como liberal, o processo democrático tem o papel de programar o Estado de acordo com o interesse da sociedade. Assim sendo, a atuação política esgota-se na tentativa de agregar os interesses sociais privados junto ao aparato estatal. Dessa maneira, pode-se afirmar que o eixo do modelo liberal não entende a democracia como a autodeterminação democrática dos cidadãos, mas sim como a mera normatização de uma sociedade centrada na economia. [08]

Já de acordo com a concepção republicana, os direitos de participação dos cidadãos podem ser entendidos como liberdades positivas. HABERMAS sustenta que o direito ao voto deve ser visto como uma condição indispensável para a autodeterminação política, por meio da realização de contribuições autônomas e pelo fato dos indivíduos assumirem posições próprias. O autor sustenta que a vantagem da concepção republicana de democracia reside no fato de se entender a democracia como uma auto-organização política da sociedade por cidadãos unidos por meios de comunicação. Por outro lado, a desvantagem da concepção republicana reside justamente no fato de que não se compreende que os fins coletivos ou compreensão ética nada mais são do que a soma de interesses privados conflitantes. [09]

Cumpre, ainda, ressaltar que HABERMAS defende uma terceira concepção de democracia denominada de "teoria do discurso", segundo a qual o processo democrático confere força legitimadora ao processo de criação do direito, que se materializa no Estado democrático de direito, pois o processo democrático precisa assegurar, ao mesmo tempo, a autonomia privada (defesa dos próprios interesses) e a pública (defesa dos interesses comuns). Dessa maneira, HABERMAS entende que esse modelo de democracia legitima o Estado democrático de direito. Sendo assim, o autor afirma que a democracia não precisa mais operar com o conceito de uma totalidade social centrada no Estado. A democracia, de acordo com a teoria do discurso, se realiza por meio de uma rede de comunicação das esferas públicas e políticas. Por fim, HABERMAS entende que essas comunicações entre indivíduos geram resultados racionais em que os cidadãos atuam como participantes em processos de entendimento e assim, o processo democrático atua como um elemento de legitimação do Estado de direito. [10]

Ainda no que se refere à democracia, é importante mencionar que DWORKIN entende que a participação do cidadão nos rumos do Estado tem se tornado cada vez mais difícil numa democracia contemporânea caracterizada pelo multiculturalismo e pelo dissenso. No entanto, DWORKIN acredita na construção de um ambiente democrático que preserve a diversidade de opiniões como alternativa a característica homogeneizante do Estado Moderno. Sendo assim, entende o autor ser possível uma democracia associativa, em que todos os indivíduos sejam considerados importantes. Dessa forma, observa o autor que a democracia somente se torna efetiva quando todos os argumentos são debatidos. Por fim, DWORKIN entende que a melhor forma de democracia é aquela que trata todos os membros da sociedade em igual consideração, com a proteção das liberdades públicas e dos direitos humanos. [11]

Após uma breve exposição teórica de modelos sugeridos de democracia, passa-se agora a análise da indagação sobre a existência de um direito à democracia. Trata-se de questão tormentosa, mas é importante destacar que a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, por meio da Resolução nº 1999/57, pela primeira vez estabeleceu o direito à democracia (right to democracy). Tal direito foi construído levando-se como fundamento a autodeterminação dos povos e os princípios estabelecidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Entendeu-se, assim, que a democracia é baseada na liberdade de manifestação e de escolha dos indivíduos, ou seja, a democracia encontra seu fundamento na idéia de que os indivíduos têm o direito de determinar seus sistemas políticos, econômicos, culturais e sociais. Além disso, a resolução das Nações Unidas reconheceu que a democracia era fundamental para a completa realização dos direitos humanos. [12]

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Sendo assim, a Organização das Nações Unidas entende que o direito à democracia compreende as liberdades de expressão (freedom of speech) [13], de pensamento, de consciência e religião (freedom of religion), bem como as liberdades de associação e de assembléia (freedom of assembly). [14] Ademais, entende-se que o direito à democracia somente é garantido com a liberdade de se obter informações, o que necessariamente engloba a liberdade de imprensa (freedom of the press) [15] e o direito à informação. [16] Dessa maneira, o direito à democracia somente está apto a se desenvolver num Estado de Direito, em que o soberano se submeta as leis. Além disso, também há a necessidade de que haja mecanismos legais de proteção dos direitos dos cidadãos, bem como um Poder judiciário independente, que aplique os dispositivos legais ao caso concreto de forma imparcial. [17]

No que se refere ao direito à democracia, a Organização das Nações Unidas entende que a democracia encontra seu fundamento de validade no sufrágio universal e igualitário, que se traduz no direito de se eleger os governantes em eleições livres. Aponta-se, ainda, que o direito à democracia decorre do direito à participação política, o que inclui a igualdade de oportunidades para se candidatar aos cargos eletivos. Dessa maneira, salienta-se que o direito à democracia somente é consubstanciado com a criação de instituições governamentais transparentes e com mecanismos eficientes de controle externo e interno de suas atividades. Por fim, define-se direito à democracia como o direito dos cidadãos de escolher seus governantes por meio de mecanismos livres e periódicos de manifestação popular, em que se garanta a vontade da maioria e, ao mesmo tempo, se respeite a dignidade da pessoa humana em relação às minorias. [18]

Por todo o exposto, entende-se que a primavera árabe trata-se, na verdade, de um movimento democrático provavelmente associado à globalização da informação e aos novos meios de comunicação, em especial, a internet. Assim sendo, o amplo acesso à informação no mundo atual têm tornado cada vez mais difícil a permanência de regimes totalitários, tendo em vista que a internet retira dos regimes não democráticos a capacidade de controlar a informação. Além disso, entende-se que o movimento conhecido como primavera árabe representa um anseio popular legítimo, em que se busca alcançar um direito (right to democracy) reconhecido pela Resolução nº 1999/57 das Nações Unidas.

Por fim, verifica-se que a primavera árabe demonstra que a informação aliada à capacidade de mobilização das pessoas via internet representam ferramentas interessantes para a destruição de regimes ditatoriais. Ademais, é importante observar que a preservação dos canais de informação será fundamental para a construção de Estados democráticos de direito, em substituição às monarquias absolutistas e às repúblicas ditatoriais do norte da África e do Oriente Médio. Além disso, entende-se que os estados islâmicos enfrentarão enormes desafios após a queda dos regimes ditatoriais, entre eles, o estabelecimento de um estado democrático de direito, de caráter laico, que preserve a diversidade de opiniões [19], em que haja diálogo e que seja respeitada a dignidade da pessoa humana, tanto da maioria, quanto da minoria da população. [20]


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

  1. AJAMI, Fouad. We have George W. Bush to thank for the Arab democratic spring. Disponível em: <Freedom of assembly": precedentes sobre o direito de reunião e de assembléia nos Estados Unidos. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2696, 18 nov. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17840>. Acesso em: 21 fev. 2011.
  2. CABRAL, Bruno Fontenele. "Freedom of speech". Considerações sobre a liberdade de expressão e de imprensa no direito norte-americano. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2640, 23 set. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17476>. Acesso em: 23 fev. 2011.
  3. CABRAL, Bruno Fontenele. "Freedom of the press". Precedentes sobre a liberdade de imprensa no direito norte-americano. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2748, 9 jan. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/18230>. Acesso em: 23 fev. 2011.
  4. CABRAL, Bruno Fontenele. Reflexões sobre o direito à informação dos pacientes no Brasil e nos Estados Unidos. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2329, 16 nov. 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/13851>. Acesso em: 23 fev. 2011.
  5. CRUICKSHANK, Paul. Analysis: Why Arab Spring could be al Qaeda's fall. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2011/02/20/weekinreview/20tahrir.html?ref=egypt>. Acesso em: 19 fev. 2011.
  6. FRIEDMAN, Thomas. B.E. Before Egypt. A. E. After Egypt. The NY Times. Disponível em: <http://opinionator.blogs.nytimes.com/2011/01/28/how-do-you-solve-a-problem-like-mubarak/?scp=8&sq=arab%20spring&st=cse>. Acesso em: 28 jan. 2011.
  7. LYNCH, Mark. Obama’s Arab Spring. Disponível em: <http://mideast.foreignpolicy.com/posts/2011/01/06/obamas_arab_spring>. Acesso em: 7 jan. 2011.
  8. OREN, Michael. Will Egypt be a partner in peace? Disponível em: <http://opinionator.blogs.nytimes.com/2011/01/28/how-do-you-solve-a-problem-like-mubarak/?scp=8&sq=arab%20spring&st=cse>. Acesso em: 28 jan. 2011.
  9. FRIEDMAN, Thomas. B. E. Before Egypt. A. E. After Egypt. The NY Times. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2011/02/20/weekinreview/20tahrir.html?ref=egypt>. Acesso em: 19 fev. 2011.
  10. OREN, Michael. Will Egypt be a partner in peace? Disponível em: <http://www.dailystar.com.lb/article.asp?edition_id=10&categ_id=5&article_id=15299#axzz1EnkeweYr>. Acesso em: 20 fev. 2011.
  11. CRUICKSHANK, Paul. Analysis: Why Arab Spring could be al Qaeda's fall. Disponível em: <Freedom of speech". Considerações sobre a liberdade de expressão e de imprensa no direito norte-americano. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2640, 23 set. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17476>. Acesso em: 23 fev. 2011.
  12. Para maiores informações, ler: CABRAL, Bruno Fontenele; CANGUSSU, Débora Dadiani Dantas. "Freedom of assembly": precedentes sobre o direito de reunião e de assembléia nos Estados Unidos. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2696, 18 nov. 2010. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/17840. Acesso em: 21 fev. 2011.
  13. Para maiores informações, ler: CABRAL, Bruno Fontenele. "Freedom of the press". Precedentes sobre a liberdade de imprensa no direito norte-americano. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2748, 9 jan. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/18230>. Acesso em: 23 fev. 2011.
  14. Para maiores informações, ler: CABRAL, Bruno Fontenele. Reflexões sobre o direito à informação dos pacientes no Brasil e nos Estados Unidos. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2329, 16 nov. 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/13851>. Acesso em: 23 fev. 2011.
  15. UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS. Commission of Human Rights. Resolution nº 1999/57. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/(symbol)/e.cn.4.res.1999.57.en?opendocument>. Acesso em: 20 fev. 2011.
  16. UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS. Commission of Human Rights. Resolution 1999/57. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/(symbol)/e.cn.4.res.1999.57.en?opendocument>. Acesso em: 20 fev. 2011.
  17. DWORKIN, Ronald. La democracia possible: princípios para um nuevo debate político. Tradução Ernest Weikert Garcia. Barcelona: Paidós Ibérica S.A, 2007, p. 163-170.
  18. GIDDENS, Anthony. A terceira via e seus críticos. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 160.
Sobre os autores
Bruno Fontenele Cabral

Delegado de Polícia Federal. Mestre em Administração Pública pela UnB. Professor do Curso Ênfase e do Grancursos Online. Autor de 129 artigos e 12 livros.

Débora Dadiani Dantas Cangussu

Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário UNIEURO

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABRAL, Bruno Fontenele; CANGUSSU, Débora Dadiani Dantas. "Primavera árabe": reflexões sobre a existência do direito à democracia ("right to democracy"). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2795, 25 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18576. Acesso em: 22 nov. 2024.

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