SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 OS DIREITOS SOCIAIS COMO DIREITOS HUMANOS. 1.1 Direitos sociais e liberalismo. 1.2 Direitos sociais e Estado Social. 1.3 Fundamentação e eficácia dos direitos sociais.1.4 O constitucionalismo brasileiro e direitos sociais. 2 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS COLETIVOS DAS MINORIAS. 2.1 Definição de minorias e Multiculturalismo. 2.2 Visão liberal e visão comunitarista. 2.3 As minorias como titulares de direitos coletivos e o confronto direitos coletivos versus direitos individuais. 2.4 Fundamentos para reconhecimento dos direitos das minorias nos Estados multiculturais. 2.5 As pessoas com deficiência como grupo minoritário titular de direitos coletivos. 3 PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. 3.1 Antecedentes constitucionais 3.2 Previsão na Constituição da República de 1988. 3.3 Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU). 3.4 Medidas protetivas regulamentadas na legislação ordinária federal brasileira. 4 A INSERÇÃO, NO TRABALHO, DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. 4.1 Fundamentos constitucionais: princípio da dignidade da pessoa humana e princípio da igualdade. 4.2 Diversidade interna e demanda por prestações diferenciadas. 4.3 A importância das ações afirmativas. 4.4 Modalidades de inserção no trabalho. 4.5 Inserção no emprego. 4.6 Inserção no serviço público civil. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
RESUMO
Nas sociedades democráticas contemporâneas caracterizadas pelo pluralismo, as pessoas com deficiência, enquanto grupo minoritário dotado de especificidades e historicamente alvo de discriminação, demandam proteção jurídica coletiva com base nos Direitos Humanos, visando à inclusão social, econômica e cultural. O Multiculturalismo fornece suporte teórico para a convivência entre as diferenças na mesma sociedade. No Brasil, a Constituição de 1988 assegura, a partir dos princípios da igualdade substancial e da dignidade humana, reforçados pela aprovação, em 2008, em nível de Emenda Constitucional, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a adoção de ações afirmativas visando à referida inclusão, através do trabalho - um dos fundamentos da República. Mas a proteção dada pelo ordenamento jurídico ainda é insuficiente para a efetiva inserção das pessoas com deficiência no trabalho, como indica o estado de inferioridade em que se encontram, detectado pelos dados oficiais.
Palavras-chave: Multiculturalismo. Direitos Humanos. Pessoa com deficiência. Discriminação. Inclusão no trabalho.
ABSTRACT
SOCIAL LAW CONSTITUTIONAL PROTECTION TO THE LABOR OF THE IMPAIRED AND MULTICULTURALISM
In contemporary democratic societies characterized by pluralism, physically impaired people, a specific minority group which has been historically discriminated against, demand collective juridical protection, based on Human Rights, aiming at social, economical and cultural inclusion. Multiculturalism offers theoretical support to the sociability of differences within the same society. 1988 Brazilian Constitution, based on the principles of substantial equality and human dignity, both reinforced in 2008 by the creation of a Constitutional Amendment derived from the United Nations Convention on the Rights of the Impaired, guarantees the adoption of affirmative actions, aiming at social inclusion through labor—one of the bedrocks of the Republic. Nevertheless, the protection offered by the juridical ordering is still scanty for an effective insertion of the impaired in the labor force, given the inferior condition in which they are found, as indicated by official data.
Key words: Multiculturalism. Human Rights. The impaired. Discrimination. Insertion in the labor force.
INTRODUÇÃO
As pessoas com deficiência constituem grupo minoritário historicamente alijado e discriminado nas diversas sociedades, vindo a merecer alguma atenção depois da Segunda Grande Guerra.
A teoria dos direitos humanos, inicialmente voltada para os direitos individuais, notadamente o direito à igualdade, em um segundo momento concebeu os direitos sociais, econômicos e culturais, de natureza coletiva, os quais, no mundo contemporâneo plural, buscam no Multiculturalismo os fundamentos para proteção e respeito aos grupos minoritários existentes em uma mesma sociedade, discriminados em razão de suas diferenças.
No caso do Brasil, são os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade substancial, somados aos primados da solidariedade, da justiça social e da não-discriminação, que propiciam a fundamentação para a proteção às pessoas com deficiência, visando a incluí-las na sociedade e na economia, através do trabalho.
Este artigo tem o objetivo geral de analisar a proteção conferida pela Constituição de 1988 às pessoas com deficiência, coletivamente consideradas, à luz do Multiculturalismo, focalizado o aspecto da inclusão no trabalho. E, como objetivos específicos, busca examinar a compatibilidade da legislação ordinária pertinente ao tema com os princípios contidos na mesma Lei Maior, orientadores daquela proteção, pretendendo, ainda, identificar os meios eleitos pelo legislador nacional para implementar a referida inclusão dos trabalhadores com deficiência.
Indaga-se, então, se a Constituição brasileira vigente garante proteção às pessoas com deficiência, enquanto membros do grupo social minoritário, de modo a inseri-las no trabalho, e se tal discriminação positiva é compatível com os referidos princípios constitucionais.
A pesquisa é de natureza qualitativa, realizada na legislação e na doutrina, com fins descritivos. Quanto ao resultado, é pura ou destinada ao conhecimento, apenas, sem pretensão de transformar o objeto focalizado. São adotados os métodos dedutivo e indutivo.
Primeiramente, são focalizados os direitos sociais como direitos humanos, na perspectiva do Estado Liberal e do Estado Social, bem assim a sua fundamentação e eficácia, além da posição no constitucionalismo brasileiro. No segundo capítulo cuida-se dos direitos humanos e dos direitos coletivos das minorias discriminadas, sopesados segundo a teoria liberal e a teoria comunitarista, identificando-se, entre as minorias, as pessoas com deficiência e o reconhecimento de seus direitos nos Estados plurais, ressaltada a importância do Multiculturalismo para esse mister. O terceiro capítulo trata especificamente da proteção dada pela Carta Constitucional de 1988 ao referido grupo minoritário, destacando-se a recente adoção, pelo País, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, e as medidas legislativas anteriormente em vigor destinadas à sua proteção. O último capítulo dedica-se a perscrutar os fundamentos constitucionais para a inserção no trabalho da pessoa com deficiência, evidenciando as diversidades internas no próprio grupo, tendo em vista os vários tipos de deficiência, bem como as modalidades de inserção, as ações afirmativas e a inclusão dos trabalhadores com deficiência no emprego privado e no setor público.
Dá-se preferência, neste artigo, para identificar o grupo diferenciado sob exame, em vez da usual expressão pessoa portadora de deficiência, à designação mais adequada e recentemente abraçada pelo ordenamento jurídico brasileiro, isto é, pessoa com deficiência, nos termos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, das Nações Unidas.
1 OS DIREITOS SOCIAIS COMO DIREITOS HUMANOS
A expressão direitos humanos, nada obstante a ambiguidade que carrega, uma vez que é explicada por si mesma, segundo Pérez Luño (1995, p. 48), pode ser definida como "[...] um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos nos planos nacional e internacional".
É conhecida a tradicional e didática classificação dos direitos humanos apresentados em gerações (ou dimensões), a partir das necessidades postas em relevo em determinados períodos da história, pela sociedade, identificando-se, na primeira geração, os direitos individuais de liberdade, que demandam um não-agir do Estado ou prestações negativas. A segunda geração é formada pelos direitos sociais, econômicos e culturais, carecedores de prestações positivas estatais. Na terceira geração identificam-se os direitos de solidariedade, havendo, também, anúncio de uma quarta geração, reclamada pelas pesquisas biológicas (BOBBIO, 2004, p. 25-26 e 41).
Os direitos sociais, nesse contexto, são direitos humanos, e se ergueram na onda antiliberal ocorrida no Século XX.
São direitos, como assinala Krell (2002, p. 19), exercidos não "[...] contra o Estado, mas sim direitos através do Estado, exigindo do poder público certas prestações materiais".
Os direitos sociais obrigam o Estado a uma atuação decidida e se diferenciam dos outros direitos exatamente pelo seu caráter prestacional, tratando-se, assim, de "[...] direitos diferentes, em última instância, com uma concepção diferente da liberdade[...]", quer dizer, sob a ótica dos direitos individuais, entende-se "[...] a liberdade como a ausência de coação que garante um âmbito de autonomia [...]", ao passo que, nos direitos sociais, tem-se uma "[...] liberdade real que exige a remoção de obstáculos econômicos e sociais para o seu exercício [...]", como observa Martínez de Pisón (2001, p. 181-182).
1.1 Direitos sociais e liberalismo
O paradigma do Estado liberal é o indivíduo, perante o qual deve ter uma postura neutra, bastando-lhe assegurar os direitos individuais.
A postura liberal - aquele não-agir estatal que veio a caracterizar os direitos humanos de primeira geração - surgida no final do Século XVIII com as Revoluções Americana e Francesa, concebe o direito à igualdade perante a lei como reação aos privilégios reinantes no absolutismo.
Como evidencia Gomes (2001, p. 130), no Estado liberal "[...] a lei, genérica e abstrata, deve ser igual para todos, sem qualquer distinção ou privilégio, devendo o aplicador fazê-la incidir de forma neutra sobre as situações jurídicas concretas e sobre os conflitos interindividuais". É a igualdade meramente formal, com a qual se supõe tenha o cidadão condições de viver e progredir à custa do próprio esforço.
Nesse universo liberal não há espaço para o reconhecimento dos direitos sociais com status de direitos humanos, uma vez que, como visto, deve o Estado manter-se inerte, sendo-lhe suficiente respeitar os direitos individuais - únicos considerados direitos humanos pelo liberalismo.
1.2 Direitos sociais e Estado Social
No entanto, esse modelo adotado pelo Estado liberal, isto é, de assegurar a igualdade formal, não se mostrou capaz de socorrer os menos favorecidos, posto que não estavam no mesmo patamar daqueles em melhor situação social e econômica. Não se ofertou a igualdade substancial, portanto.
Tal igualdade substancial ou material é resultante da nova visão inspiradora do Estado Social de Direito, e "[...] propugna redobrada atenção por parte do legislador e dos aplicadores do Direito à variedade das situações individuais e de grupo, de modo a impedir que o dogma liberal da igualdade formal impeça ou dificulte a proteção e a defesa dos interesses [...]" dos menos favorecidos dentro da sociedade (GOMES, 2001, p. 131).
Então, os direitos sociais, admitidos para as coletividades ou grupos, encontram no Estado Social o reconhecimento e a força para serem implementados, visando à redução das desigualdades sociais e econômicas na busca do ideal de justiça social, fazendo surgir - como explica Gomes, citando Piovesan (2001, p. 131) - no Direito Internacional dos Direitos Humanos, a política de tratamento específico às coletividades fragilizadas socialmente, observados seus traços característicos diferenciados, de sorte que a concepção do indivíduo abstrato e imaterial do Estado liberal foi substituída pelo "[...] indivíduo especificado, considerando-se categorizações relativas ao gênero, idade, etnia, raça, etc.".
1.3 Fundamentação e eficácia dos direitos sociais
O problema da fundamentação dos direitos sociais apresenta-se como insolúvel, segundo Bobbio (2004, p. 41-44) e Pérez Luño (1995, p. 61), mesmo porque não existe um fundamento absoluto para os direitos humanos, na opinião do filósofo italiano, uma vez que têm sido confrontadas pela doutrina as liberdades próprias dos tradicionais direitos individuais, com os poderes que caracterizam os direitos sociais, a ponto de inviabilizar a sua coexistência (BOBBIO, 2004, p. 41). Mas não se pode deixar de reconhecer que tanto os direitos individuais, quanto os coletivos, independente de postarem-se em situação antagônica, são alvo, na prática, não raramente, de descumprimento, embora positivados no direito interno dos Estados.
Importante pôr em relevo, porém, como ressalta Bobbio (2004, p. 43), que "o problema fundamental dos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los" - o que constitui um problema político, e, não, filosófico - devendo-se "[...] buscar em cada caso concreto, os vários fundamentos possíveis [...]". Martínez de Pisón (2001, p. 183-186) rejeita a corrente de pensamento que vê nos direitos sociais "[...] meras reclamações ou exigências que se podem conceder ou não por razões políticas [...]", isto é, singelas pretensões, apoiado na postura adotada pelas Nações Unidas a partir dos anos oitenta do Século XX, no sentido de que não podem existir liberdades individuais nem o adequado exercício dos direitos civis e políticos, sem a implementação dos direitos sociais, e assegura que tanto os direitos individuais como os direitos sociais, culturais e econômicos são direitos fundamentais, com a mesma estatura.
Assim, para Martínez de Pisón (2001, p.207), os direitos sociais, como direitos humanos, fundamentam-se "[...] na existência de necessidades básicas, objetivas, universais e contingentes, das quais derivam o compromisso moral de sua satisfação [...], em todos os âmbitos, [...] com o objetivo de evitar pobreza e miséria, privações e danos físicos e psíquicos nas pessoas [...]".
E a inegável dificuldade para implementação dos direitos sociais, mormente porque demandam vultosos gastos para atendimento das prestações positivas, não se presta para lhes negar a natureza de direito humano, muito menos a eficácia, devendo, sim, o Estado, segundo Bidart Campos, citado por Krell (2002, p. 23), "[...] desenvolver e executar políticas de bem-estar no vasto campo das necessidades primárias dos homens que se encontrem numa situação de hipossuficiência, marginalidade, carência[...]", valendo-se de "[...] políticas de emprego, políticas alimentárias, políticas habitacionais, políticas de educação e saúde, etc.".
1.4 O constitucionalismo brasileiro e direitos sociais
A onda de constitucionalização dos direitos sociais, iniciada na segunda década do Século XX com as Constituições do México de 1917 e da República Alemã (1919), chegou ao Brasil pela Constituição de 1934 (KRELL, 2002, p. 19).
Como se constata na compilação das Constituições brasileiras feita por Campanhole (1999), essa Carta de 1934 continha disposições, a partir do art. 115, acerca da Ordem Econômica e Social, inclusive direitos relacionados ao trabalho. A Constituição de 1937, nos arts. 135 e seguintes, ao dispor sobre a Ordem Econômica, também traçou preceitos gerais sobre o trabalho. A Constituição de 1946, igualmente dispondo sobre a Ordem Econômica e Social, nos arts. 145 e seguintes, consagrou como princípios a justiça social, a liberdade de iniciativa e a valorização do trabalho humano, que deveriam ser conciliados, enumerando, ainda, preceitos de direito do trabalho e previdência social. A Constituição de 1967 e respectiva Emenda Constitucional n. 1, de 1969, prosseguiram nessa linha de reconhecimento tímido dos direitos sociais, praticamente limitados a assegurar, dentro da Ordem Econômica e Social, os direitos trabalhistas mínimos (confira-se, respectivamente, nos arts. 157 e seguintes e arts. 160 e seguintes).
A Constituição republicana de 05-10-1988 (BRASIL. Presidência da República) é que, não mais como apêndice da Ordem Econômica e Social, mas, sim, entre os direitos e garantias fundamentais, proclama extenso rol de direitos sociais (arts. 6º a 11), com menção expressa à educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados, além de estabelecer os direitos mínimos dos trabalhadores urbanos e rurais e traçar as regras dos direitos sindicais, de greve e de participação e representação dos trabalhadores.
Convém salientar, neste tópico, que, no Brasil, considerado o expresso texto constitucional, não há dúvidade que os direitos sociais constituem direitos fundamentais, garantida a aplicação imediata, conforme letra do art. 5º, §1º, da vigente Carta Constitucional, excetuados os casos previstos na própria Constituição, a depender de regulamentação, por exemplo, o direito ao adicional de atividade penosa no setor privado instituído no art. 7º, XXIII, e, ainda hoje, pendente.
2 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS COLETIVOS DAS MINORIAS
As minorias, ao longo da história, em desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, como assevera Lopes (2008, p. 19), "[...] têm sido eliminadas, assimiladas ou discriminadas [...]", em vez de respeitadas e protegidas.
Tal situação adquiriu maior questionamento no final do Século XX e início deste século XXI por força dos movimentos migratórios nas sociedades contemporâneas, provocados por questões econômicas e políticas (PÉREZ LUÑO, 2003, p. 119), enfim, pelo próprio processo de globalização. Detecta-se, então, o problema naqueles Estados até então caracterizados pela unidade nacional, diante de reivindicações para que sejam asseguradas as tradições culturais e fazerem-se respeitar os direitos humanos das minorias, tolerando-se e convivendo-se com a pluralidade religiosa, linguística, étnica, cultural, enfim, com as diferenças dos grupos sociais.
2.1 Definição de minorias e Multiculturalismo
O termo minorias, segundo Lopes (2008, p. 20), recebeu de Capotorti "dois tipos de critérios" para ser definido:
a) critérios objetivos:
- a existência em um Estado de um grupo de pessoas com características étnicas, religiosas ou lingüísticas diferentes ou distintas do resto da população;
- a diferença numérica (do grupo minoritário) em relação ao resto da população;
- a posição não dominante desse grupo minoritário.
b) critério subjetivo:
- o desejo das minorias de preservarem os elementos particulares que as caracterizam, ou seja, a vontade comum do grupo de conservar seus rasgos distintivos.
Importante ressaltar que, nem sempre, a diferença numérica será bastante para caracterizar um segmento social minoritário, como pode ocorrer, por exemplo, com as mulheres no Brasil, as quais superam, em quantidade, a população masculina, devendo ser aplicado, em casos tais, o critério objetivo da "posição não dominante" do grupo, ou seja, "[...] a sua exclusão social e a falta de participação nas decisões políticas [...], como salienta Lopes (2008, p. 20).
A referida definição tradicional de Capotorti, porém, por ser restritiva, na medida em que se reporta apenas a características étnicas, religiosas e linguísticas, recebe críticas e ampliações, notadamente de Semprini, citado por Lopes (2008, p. 20-21), devendo ser adotadas, também, "[...] outras características passíveis de ser aplicadas na definição, levando-se em consideração a cultura e a realidade de cada sociedade [...]", de sorte a conceituar-se minoria como "[...] todo grupo humano, cujos membros tenham direitos limitados ou negados apenas pelo fato de pertencerem a esse grupo [...]" - como arremata Lopes (2008, p. 21).
A definição de minorias, no entanto, não é pacífica na doutrina, podendo-se, nada obstante, entendê-las também como grupos compostos de pessoas em situação de vulnerabilidade.
Merece ser ressaltado, outrossim, que, a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, solidificou-se, oficialmente, a idéia de igualdade entre os homens, fazendo surgir movimentos políticos contestadores da estratificação étnica e racial herdada do período anterior à Segunda Grande Guerra, bem assim a contestação de "[...] outros tipos de hierarquias, como o gênero, a deficiência e a orientação sexual [...]" (KYMLICKA, 2008, p. 221).
Nesse contexto, surge o Multiculturalismo, com vistas à convivência, na mesma região ou país, de culturas distintas identificadas em grupos ou coletividades integrantes da sociedade contemporânea, marcada pelo pluralismo.
2.2 Visão liberal e visão comunitarista
O reconhecimento de direitos humanos, notadamente de direitos sociais, aos grupos minoritários, no seio desses Estados plurais, à luz do Multiculturalismo, é alvo de debates entre os teóricos liberais e os comunitaristas.
De modo sintético, pode-se afirmar que, para os liberais, deve prevalecer o universalismo, quer dizer, os direitos das pessoas e os valores culturais são concebidos "[...] como garantias universais, independentes das contingências da raça, língua, sexo, religiões ou convicções religiosas" (PÉREZ LUÑO, 2003, p. 120).
Outrossim, conforme Cittadino (2004, p. 129), os liberais, relativamente às prioridades democráticas, privilegiam os "[...] direitos fundamentais em detrimento da soberania popular [...]", na medida em que "[...] associam o pluralismo às diversas concepções individuais acerca da vida digna [...]". A existência do pluralismo justifica a neutralidade estatal característica da visão tradicional do Estado Liberal. Aqui, levam-se em conta as "liberdades dos modernos" (as de consciência, de expressão e religiosa, além dos direitos individuais em geral), ainda de acordo com Cittadino (2004, p. 144), quando se consideram as limitações ao processo democrático. Em suma, a autonomia privada prevalece sobre a autonomia pública.
O comunitarismo, por sua vez, identificado por Pérez Luño (2003, p. 121-122) como "movimento cultural emblemático da pós-modernidade", conforme o mesmo autor, trilha por dois caminhos.
Um, do qual são expoentes Charles Taylor e Michael Walzer, recupera, de certa forma, os valores do Iluminismo e da Modernidade, a partir da releitura das teorias de Hegel, valendo-se da idéia comunitária que exclui uma interpretação individualista. Assim, acreditam "[...] que os direitos fundamentais constitucionalmente assegurados traduzem mais a vontade e a autodeterminação da comunidade do que um espaço de independência individual em relação à autoridade estatal ou aos demais indivíduos [...]", como observa Cittadino (2004, p. 161). O outro caminho, ainda de acordo com Pérez Luño (2003, p. 122), capitaneado por Alasdair MacIntyre, volta mais ainda no tempo, à tradição de Aristóteles, opondo-se à Modernidade na medida em que adota uma postura nostálgica da própria compreensão pré-moderna de comunidade.
Os comunitaristas - como salienta Cittadino (2004, p. 144-145) - concebem a pluralidade dentro das sociedades democráticas contemporâneas, invertendo "[...] a perspectiva liberal na medida em que dão primazia à autonomia pública [...]", à moda das "liberdades dos antigos", em que o processo democrático tem como elementos constitutivos "os direitos políticos de participação", não prevalecendo a vontade da maioria, mas, sim, a vontade comum, fruto do entendimento ético decorrente de uma política deliberativa.
Will Kymlicka (2008, p. 217-243), diante de incompreensões e críticas que induzem ao entendimento de que o multiculturalismo é incompatível com os direitos humanos, porque aquele seria relativista e privilegiaria apenas os grupos, enquanto os direitos humanos são universalistas e dão relevo ao indivíduo, assegura que, longe de excluírem-se um ao outro, o multiculturalismo, na verdade, constitui "um novo estágio do desenvolvimento gradual da lógica dos direitos humanos", sendo certo que a igualdade diz respeito às pessoas, enquanto indivíduos ou povos, tanto que a Declaração dos Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas, da ONU (1992) explicitou a ligação entre igualdade e multiculturalismo, despertando-se, aí, a consciência dos grupos minoritários para a reivindicação do direito de igualdade, como direito humano, e, não mais como mero favor ou caridade das maiorias.
Tem-se com Kymlicka uma visão liberal renovada que reconhece "[...] a diversidade cultural como fundamento de uma diferenciação dos cidadãos e dos povos [...]", nas palavras de Pérez Luño (2003, p. 122), para quem o filósofo canadense "[...] se apresenta como um liberal sensível a determinadas exigências das teses comunitaristas [...]", a ponto de confundir sua própria posição liberal.
Nada obstante esse confronto entre liberais e comunitaristas, em que os primeiros centram os direitos humanos no indivíduo, com preponderância sobre os interesses coletivos dos grupos, e os outros focalizam a coletividade, não se pode deixar de ressaltar a posição conciliadora de Habermas - expoente do pensamento crítico-deliberativo - na expressão de Cittadino (2004, p. 2).
Para o filósofo alemão, nas democracias contemporâneas, o pluralismo tem duas dimensões que não se excluem - ao contrário, devem coexistir - quais sejam, "[...] a diversidade das concepções individuais acerca da vida digna e a multiplicidade de formas específicas de vida que compartilham valores, costumes e tradições [...]", segundo registro de Cittadino (2004, p. 2).
2.3 As minorias como titulares de direitos coletivos e o confronto direitos coletivos versus direitos individuais
Apesar do embate teórico ligeiramente explanado no item anterior (2.2), é impossível ao constitucionalismo democrático contemporâneo desconhecer a existência das minorias, como, também, da carga de direitos que lhes assiste enquanto grupos humanos em situação vulnerável, considerados coletivamente.
Tal constatação decorre da própria onda de reivindicações desses grupos verificada nas últimas décadas e da proclamação internacional constante da Declaração dos Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas (ONU, 1992), a qual professa, no artigo 3.1, que "as pessoas pertencentes a minorias poderão exercer seus direitos, inclusive os enunciados na presente Declaração, individualmente bem como em conjunto com os demais membros de seu grupo, sem discriminação alguma".
O obstáculo ao reconhecimento dos direitos coletivos, especialmente no plano doutrinário, representado pelo receio de que esses direitos coletivos suplantem os direitos individuais, tal como concebido pela idéia do liberalismo conservador - temendo-se, em última análise, que em nome da supremacia coletiva proliferem a intolerância à diversidade e o retorno dos Estados nacionais nos moldes do nazismo - vem sendo atenuado pela própria renovação contemporânea das idéias liberais, aproximando-se do comunitarismo, de sorte a reconhecer-se, progressivamente, ao lado dos direitos individuais, os direitos dos povos e das minorias. Respeitam-se, assim, as minorias enquanto minorias.
O embate entre direitos coletivos e direitos individuais, nesse quadro que não se pode resolver, simplesmente, com o estabelecimento de alguma hierarquia, deve ser solucionado de modo a conciliar a existência de ambos, não se podendo perder de vista, no entanto, que o exercício dos direitos coletivos das minorias deve atentar para a restrição preconizada no final do artigo 4.2 da referida Declaração (ONU, 1992):
Art. 4.2. Os Estados adotarão medidas para criar condições favoráveis a fim de que as pessoas pertencentes a minorias possam expressar suas características e desenvolver a sua cultura, idioma, religião, tradições e costumes, salvo em casos em que determinadas práticas violem a legislação nacional e sejam contrárias às normas internacionais.
Em suma, o exercício dos direitos coletivos, reconhecidos por diferenciação em função do grupo a que pertencem seus integrantes, não pode restringir nem ofender os demais direitos humanos, não se tolerando aquelas práticas culturais que causem danos permanentes aos membros dos grupos, por exemplo, as que envolvam mutilações físicas, ou impeçam o indivíduo de sair do próprio grupo minoritário.
2.4 Fundamentos para reconhecimento dos direitos das minorias nos Estados multiculturais
O reconhecimento desses direitos coletivos (sociais) aos grupos minoritários encontra fundamento nos próprios direitos humanos, na medida em que as diferenças entre os homens são reconhecidas pelo indivíduo, pela sociedade e pelo Estado.
E os direitos humanos tanto são a fonte ou inspiração, como limite para os direitos das minorias. Exige-se, com efeito, que as minorias, internamente, também pratiquem os direitos que reivindicam no espaço majoritário, e ajam, relativamente a seus membros, com justeza, tolerância e inclusão - como observa Kymlicka (2008, p. 225) - para quem as minorias não podem ignorar as regras de direitos humanos a pretexto do multiculturalismo.
Comporta lembrar, nesse contexto, a observação de Pérez Luño (2003, p. 127) acerca da proposição de Habermas por ele adotada, relativamente ao que denomina patriotismo constitucional, caracterizado pela "[...] atitude cívica de lealdade e adesão a uns valores e instituições socialmente compartilhados [...], vista nas Constituições dos Estados de Direito em vigor como alternativa ideal para guiar a necessidade de convivência com as diferenças no mundo contemporâneo. Tem-se, assim, "o núcleo de valores e bens" informadores do atual "constitucionalismo democrático", a partir da mescla dos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade herdados do Iluminismo, mais a tolerância e o princípio da dignidade humana, atualizados para a noção de paz, pluralismo e solidariedade, que, desde a origem, acham-se orientados pela noção cosmopolita e universalista. Então, em tais valores também se assentam os fundamentos dos direitos das minorias referenciadas.
2.5 As pessoas com deficiência como grupo minoritário titular de direitos coletivos
As minorias podem constituir-se a partir de povos ou grupos dotados de características étnicas, religiosas ou linguísticas diferentes do restante da população, formados, por exemplo, em consequência de movimentos migratórios, mas, também - como enquadra Freeman, citado por López Calera (2000, p. 58) - de "[...] simples grupos minoritários com interesses distintos aos da maioria [...]", entre os quais identificam-se as pessoas com deficiência, os homossexuais, etc., que demandam direitos especiais, como exemplo as cotas de representação política das mulheres, cuja implementação não se satisfaz mediante o cumprimento dos direitos individuais.
Nesses exemplos de minorias com interesses e características diferenciados, notadamente a composta de pessoas com deficiência, o critério hábil a identificá-las como minoria, embora também seja considerada a diferença numérica relativamente ao restante da população, é o objetivo representado pela "posição não dominante desse grupo minoritário", bem demarcada, nesse caso, pelo histórico de alijamento, discriminação e exclusão social baseados apenas na deficiência.
E é exatamente através da proteção dos interesses coletivos desse grupo que se busca realizar significativa parcela dos interesses individuais de seus membros, de maneira a possibilitar a sua inclusão na sociedade, enfim, a propiciar-lhe o respeito aos direitos elementares sonegados pela praxe discriminatória ao longo da história.
Por discriminação, no sentido negativo, entende-se a "exclusão ou preferência preconceituosas, conscientes ou inconscientes, expressas ou tácitas, de pessoa ou de grupo específico, por motivos étnicos ou raciais, de gênero, de origem, de características físicas, de opção sexual, além de outros tantos [...]" (FONSECA, 2006, p. 157). A palavra também pode ser utilizada no sentido inverso, segundo este mesmo autor na mesma obra e local, "[...] como um recurso compensatório, positivo, por meio do qual a lei ou o Judiciário municiam com instrumental jurídico pessoas ou grupos de pessoas historicamente vitimados pela discriminação negativa [...]".