3 PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
No curso da história da humanidade, as pessoas com deficiência física, mental, intelectual ou sensorial vêm recebendo tratamento variado que vai da fase da antiguidade - marcada pela sua total exclusão da sociedade, na qual a própria Bíblia as registrou como seres doentes e merecedores apenas de caridade, porque aleijados, cegos, surdos ou leprosos - aos dias atuais, inaugurados após a Segunda Grande Guerra, geradora de incontáveis mutilados, em que as pessoas com deficiência começaram a ser encaradas como sujeitos de direito e, assim, nada obstante suas limitações, possam viver inseridas na sociedade, reabilitadas e com dignidade, locomovendo-se, trabalhando, associando-se, enfim, atuando como as demais pessoas (TEPERINO, 2001, p. IX).
Essa mudança de tratamento percorreu fases não muito bem demarcadas ao longo da história (LORENTZ, 2006, p. 105), desde a total eliminação ou desprezo da pessoa com deficiência, às fases do assistencialismo, da integração e da inclusão.
As pessoas com deficiência, no Brasil, formam grupo minoritário composto de 14,5% da população brasileira - segundo o último censo demográfico realizado no ano 2000 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (BRASIL. IBGE).
3.1 Antecedentes constitucionais
A primeira norma constitucional brasileira a mencionar algum direito às pessoas com deficiência foi a Emenda Constitucional n. 1, de 1969, que, no art. 175, §4º, previu que lei especial disporia "sobre a [...] educação de excepcionais" (CAMPANHOLE, 1999, p. 324) [01]. Seguiu-se a Emenda Constitucional n. 12/1978, lembrada por Araújo (2008, p. 912) como a pioneira a tratar da questão como um sub-sistema específico, dando-lhe "status" constitucional, embora não cogitasse, naquele tempo, de inclusão. A referida Emenda, em seu único artigo, assegurou "aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica", através, especialmente, de "educação especial e gratuita", "assistência, reabilitação e reinserção na vida econômica e social do País", "proibição de discriminação, inclusive quanto à admissão ao trabalho ou ao serviço público e a salários" e possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos" (CAMPANHOLE, 1999, p. 352).
O silêncio das Cartas Constitucionais pretéritas é justificado pela própria ausência do reconhecimento de direitos às pessoas com deficiência no cenário internacional - uma vez que, como se disse linhas atrás, somente depois da Segunda Grande Guerra é que esse segmento passou a receber tratamento legal condigno.
3.2 Previsão na Constituição da República de 1988
A Carta de 1988 conferiu ampla tutela jurídica ao grupo minoritário focalizado, de modo diferenciado, exatamente para compensar-lhe as deficiências, rumo à igualdade substancial (ALMEIDA, 2008, P. 555-556).
A vigente Constituição da República (BRASIL. Presidência da República) contempla as pessoas com deficiência, expressamente, nos seguintes aspectos: não discriminação de direitos no trabalho (art. 7º, XXXI); competência comum de União, Estados, Distrito Federal e Municípios para sua proteção e garantia (art. 23, II); competência legislativa concorrente de União, Estados e Distrito Federal para sua proteção e integração social (art. 24, XIV); cotas para admissão no serviço público (art. 37, VIII); assistência social para habilitação e reabilitação, bem como integração à vida comunitária (art. 203, IV); assistência social mediante benefício mensal de um salário mínimo, quando hipossuficiente (art. 203, V); educação especializada, de preferência na rede regular de ensino (art. 208, III); criação de programas especiais de prevenção e atendimento, integração social do adolescente, além de acessibilidade a bens e serviços coletivos, com eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos (art. 227, §1º, II); e previsão, em lei, de normas sobre acesso e locomoção (art. 227, §2º, e art. 224).
Constata-se, a partir desse elenco, a opção constitucional pela integração e inclusão social das pessoas com deficiência, abandonando-se a segregação que, no passado, ditava o tom do tratamento dispensado a esse grupo.
Para Slaibi Filho (2001, p. 39), as normas tutelares das pessoas com deficiência valorizam o princípio da dignidade da pessoa humana. E, particularmente quanto à assistência social dispensada pela Constituição às pessoas com deficiência, Moreira Neto (2001, p. 93-95) enfatiza que decorre da aplicação dos princípios da igualdade e da dignidade humana, com vistas à sociedade solidária e à promoção do bem de todos sem preconceitos e sem discriminação, como preconizado nos arts. 1º, III, e 3º, I e IV, da mesma Carta.
3.3 Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU)
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, das Nações Unidas, aprovada pelo Congresso Nacional brasileiro nos termos do Decreto Legislativo n. 186, de 2008, publicado no Diário Oficial da União de 20/8/2008 (BRASIL. Congresso Nacional), entrou no sistema jurídico nacional com força equivalente a Emenda Constitucional, tal como previsto no art. 5º, §3º, da Constituição de 1988.
Destaca-se, entre outros fundamentos, nessa Convenção, conforme consignado em seu Preâmbulo, que ela relembra os princípios consagrados na Carta das Nações Unidas, notadamente a dignidade e os direitos iguais; reafirma "[...] a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a inter-relação de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como a necessidade de garantir que todas as pessoas com deficiência os exerçam plenamente, sem discriminação [...]"; reconhece a importância das políticas visando à equiparação de oportunidades para as pessoas com deficiência; inclui as questões pertinentes à deficiência nas estratégias de desenvolvimento sustentável; reconhece como violação à dignidade e aos valores inerentes ao ser humano a discriminação motivada na deficiência; reconhece a diversidade das pessoas com deficiência; também reconhece "[...] a necessidade de promover e proteger os direitos humanos de todas as pessoas com deficiência, inclusive daquelas que requerem maior apoio [...]"; preocupa-se com a situação de desamparo que ainda atinge as pessoas com deficiência; reconhece a importância da cooperação internacional para melhorar-lhes as condições de vida e a relevância dessas pessoas para a diversidade em suas comunidades, bem assim a importância de sua autonomia e independência individuais e liberdade de escolha. Enaltece, de modo claro, o reconhecimento ao direito de participação ativa das decisões políticas, mormente as que digam respeito às pessoas com deficiência, e, por outro lado, o agravamento da discriminação quando combinados com a deficiência fatores igualmente causadores de discriminação, tais a infância, o gênero feminino, etnia, religião, pobreza, etc., e propõe-se a contribuir para a correção das "[...] profundas desvantagens sociais das pessoas com deficiência e para promover sua participação na vida econômica, social e cultural, em igualdade de oportunidades, tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos" (BRASIL. Congresso Nacional.Decreto Legislativo n. 186, de 2008, p. 1-2) [02].
O artigo 1 da Convenção referenciada traz o novo conceito de pessoas com deficiência, ou seja, "são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas".
Note-se que, com a adoção, pelo Brasil, da mencionada Convenção, e considerado seu "status" de Emenda Constitucional, devem ser observadas doravante, acerca das pessoas com deficiência, não mais as designações e conceituações antigas previstas na legislação em vigor, mas, sim, aquelas adotadas pelo novo instrumento internacional.
Merece ser destacado nessa Convenção, em sintonia com o disposto no artigo 4.4, a ressalva feita a normas internas e internacionais em vigor no Estado Parte que forem mais favoráveis às pessoas com deficiência, as quais não são revogadas, e, sim, somadas ao previsto no novo instrumento, de sorte que é possível concluir-se que não houve a substituição do sistema de garantias e proteção às pessoas com deficiência existente, mas a sua ampliação.
3.4 Medidas protetivas regulamentadas na legislação ordinária federal brasileira
A legislação ordinária nacional contempla regras sobre a proteção, integração e inclusão das pessoas com deficiência, notadamente como regulamentação do previsto no texto constitucional (ver item 3.2 acima) anterior à adoção, com força de Emenda Constitucional, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, das Nações Unidas.
Alinham-se aqui, em ordem cronológica, as seguintes entre as mais importantes medidas implementadas na legislação federal (BRASIL. Presidência da República): Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência - inclusive ações de saúde pública e criminalização de condutas contra as pessoas com deficiência (MESTIERI, 2001, p. 213-221) - Lei n. 7.853/1989, regulamentada pelo Decreto n. 3.298/1999; Proteção especial à criança ao adolescente (Lei n. 8.069/1990); Saúde no trabalho (Lei n. 8.080/1990); Reserva de vagas para ingresso no serviço público federal (Lei n. 8.112/1990); Amparo previdenciário, inclusive pensão por morte, reabilitação profissional, inserção nos empregos mediante reserva de vagas nas empresas com mais de cem empregados e isenção de contribuições sociais para as entidades beneficentes que lidem com pessoas com deficiência (Lei n. 8.213/1991 e Decretos n. 3.048/1999 e n. 3.298/1999). A pensão especial às vítimas da talidomida é regida pela Lei n. 7.070/1982, como observa Séguin (2005, p. 262); Isenção de imposto sobre renda e proventos para os deficientes mentais (Lei n. 8.687/1993); Benefício mensal de prestação continuada da Assistência Social (Lei n. 8.742/1993) - desde que a pessoa com deficiência seja incapaz para o trabalho e não disponha de outros meios de subsistência, inclusive o menor (FELIPE, 2001, p. 122); Dispensa de licitação para as associações de pessoas com deficiência, sem fins lucrativos, para prestação de serviços à Administração Pública (Lei n. 8.883/1994); Passe livre nos transportes coletivos interestaduais (Lei n. 8.899/1994); Isenção de imposto sobre produtos industrializados (automóveis) para pessoas com deficiência física (Lei n. 8.989/1995, alterada pelas Leis ns. 9.144/1995, 9.317/1996 e 10.182/2001); Dedução no imposto de renda de despesas médicas, aparelhos e próteses ortopédicas e gastos com instrução da pessoa com deficiência (Instruções Normativas ns. 65/1996 e 25/1996) - conforme Coelho (2001, p. 187-188); Educação especial (Lei n. 9.394/1996); Apoio financeiro a municípios para os programas socioeducativos das pessoas com deficiência (Lei n. 9.533/1997 e Decreto n. 3.117/1999); Cooperativas sociais (Lei n. 9.867/1999); Atendimento prioritário nas repartições públicas e outras instituições (Lei n. 10.048/2000 e Decreto n. 5.296/2004); Acessibilidade (Lei n. 10.098/2000 e o mesmo Decreto n. 5.296/2004); Programa Nacional de Ações Afirmativas no âmbito da Administração Pública Federal (Decreto n. 4.228/2002); Aprendizagem no trabalho (Lei n. 11.180/2005); Compromisso dos entes federados pela inclusão das pessoas com deficiência e instituição do Comitê Gestor de Políticas de Inclusão das Pessoas com Deficiência (Decreto n. 6.215/2007); e Estágio para estudantes, com reserva de dez por cento das vagas oferecidas (Lei n. 11.788/2008).
Esse rol de leis e decretos demonstra o quanto o Estado brasileiro vem se empenhando para implementar as disposições constitucionais atinentes às pessoas com deficiência mas, nada obstante isso, ainda se está muito longe de alcançar o ideal de inclusão e integração social da minoria focalizada, pois, como demonstram os próprios dados estatísticos oficiais (BRASIL. IBGE), entre os que trabalham (em torno de nove milhões de pessoas com deficiência), mais da metade ganha menos de dois salários mínimos por mês; desempenham, na maioria dos casos, tarefas menos complexas nos setores de vendas e comércio; têm menor taxa de alfabetização, de instrução e de frequência escolar.
4 A INSERÇÃO, NO TRABALHO, DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Incluir ou inserir as pessoas com deficiência no trabalho, apesar de toda a tutela que o sistema jurídico possa oferecer, ora impondo obrigações aos particulares e ao Poder Público, ora adotando políticas compensatórias, não constitui missão fácil em um mundo sob constante transformação, dominado pela globalização da economia e pelos avanços tecnológicos que abalam o próprio sistema de oferta de empregos.
A inclusão decorre do reconhecimento de direitos sociais diferenciados a grupos em situação de vulnerabilidade, tal o das pessoas com deficiência, em consequência da especificação exigida cada vez mais pela aceitação de direitos especiais, como se pode observar na própria evolução das Declarações da ONU sobre crianças, mulheres e deficientes, por exemplo (BOBBIO, 2004, p. 78-79).
4.1 Fundamentos constitucionais: princípio da dignidade da pessoa humana e princípio da igualdade
A Constituição brasileira de 1988 (BRASIL. Presidência da República) consagra em seu art. 1º, III, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República. No art. 5º, "caput", afirma o princípio da igualdade como o primeiro entre os direitos individuais e coletivos, do qual decorrem todos os demais direitos e garantias fundamentais que formam o sistema jurídico nacional.
Nesses dois princípios, aos quais se somam os princípios da solidariedade, da justiça social e da não-discriminação também abrigados no texto constitucional, encontra-se a fundamentação para a tutela jurídica dada às pessoas com deficiência, consideradas grupo minoritário na sociedade brasileira, em situação de vulnerabilidade e vitimadas pela discriminação exatamente por causa da deficiência.
Nesse contexto, a inclusão das pessoas com deficiência no trabalho - que constitui um dos valores sociais da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV, da Carta de 1988) - apresenta-se como fator realizador desses princípios, na medida em que, neles, encontra fundamento.
Não se pode deixar de recordar a importância e o significado do valor trabalho para a "construção da natureza e do próprio homem", como ressalta Carvalho, com apoio em Marx e Engels (2003, p. 42-43):
Nesse sentido, o trabalho é inerente ao homem. Trabalhando ele constrói e reconstrói a natureza da qual faz parte. Desse modo, transforma-se, também.
O trabalho, portanto, participa da constituição pessoal. Faz parte da vida material e psíquica. Provê subsistência. Oportuniza o reconhecimento social do sujeito no mundo. Seu próprio reconhecimento como ser produto da sociedade.
O trabalho está intimamente ligado à qualidade de vida, também, pois [...] é considerado mais do que um esforço para a sobrevivência. Resgata a importância do desejo. Da consciência. Da vivência do prazer. Da possibilidade de construção do conhecimento [...]" (CARVALHO, 2003, p. 49).
Os pilares jurídicos que sustentam a tutela diferenciada dada às pessoas com deficiência, na seara do trabalho, são, como dito, os princípios da dignidade humana e da igualdade.
Conforme Bastos e Martins (1988, p. 425), a dignidade da pessoa humana, tal como referida no art. 1º da Constituição de 1988, autoriza a compreensão de que esse princípio está a abranger todos os direitos fundamentais, individuais e coletivos, consagrados no mesmo texto constitucional, e significa que em sua noção se assenta o Estado brasileiro, que tem como uma de suas finalidades o favorecimento, através do exercício da liberdade, de condições para que todos se tornem dignos e valorizados.
Por sua vez, a igualdade de que se fala aqui não é aquela meramente formal, que concebe o homem abstratamente, isolado, caracterizadora do pensamento liberal tradicional, mas, sim, a igualdade compatível com o Estado Democrático de Direito, inclusivo e comprometido com a harmonização dos variados projetos sociais. Como ressalta Lorentz (2006, p. 472-473), tem-se que compreender como igualdade a que prestigia a diversidade, respeita "[...] as especificidades de cada um [...]", respeita e preserva a forma singular "[...] de ser, pensar e agir de cada pessoa, grupo ou sociedade [...]", e que permite a "[...] aplicação de tratamentos diferenciados a certas pessoas, grupos ou categorias desde que balizados por fundamentos fáticos e constitucionais que os justifiquem [...]", como é o caso das pessoas com deficiência - carentes, no Brasil, de acessibilidade, trabalho e educação.
Importante observar que a diferenciação, em casos tais, faz-se necessária para implementar a própria igualdade, uma vez que visa a igualar pessoas ou grupos que estão em situação desigual, dando aos que estiverem em patamar inferior condições para que cresçam e alcancem nível mais elevado dentro da sociedade, respeitados certos pressupostos. Bandeira de Mello (1999, p. 47), a propósito, bem sintetiza os cinco requisitos para que o tratamento diferenciado afirme a igualdade e não se volte contra o princípio isonômico: não pode destinar-se a pessoa determinada, mas, sim, a "[...] uma categoria de pessoas, ou a uma pessoa futura e indeterminada [...]"; devem ser considerados, quando do favorecimento, elementos residentes "[...] nos fatos, situações ou pessoas por tal modo desequiparadas [...]"; o tratamento jurídico diferenciado deve "[...] guardar relação de pertinência lógica com a disparidade dos regimes outorgados [...]"; não pode conduzir a ofensa de interesses consagrados na Constituição; e o tratamento diferenciado deve, ainda que implicitamente, ser desejado pela norma.
4.2 Diversidade interna e demanda por prestações diferenciadas
É inegável que as pessoas com deficiência constituem um grupo diferenciado do restante da sociedade, consideradas suas especificidades e necessidades à parte, carecendo, por isso, de tratamento inclusivo que os liberte dos efeitos da discriminação sofrida historicamente.
Esse grupo diferenciado não é, porém, uniforme em suas necessidades, mas, sim, multifacetado, posto que as deficiências têm causas distintas, a exemplo da "[...] locomoção, visão, audição, deficiência mental [...]" e, mesmo, "[...] questões ligadas ao metabolismo [...]", como destaca Araújo (2008, p. 917-918). Nesse contexto, as dificuldades enfrentadas por um cego são diferentes daquelas que se apresentam para um surdo ou um "cadeirante", entre outros problemas que precisam ser adequadamente solucionados. Diante da exigência de prestações e providências diferenciadas, conforme a natureza da deficiência de cada sub-grupo que compõe essa coletividade especial, somente se poderá, verdadeiramente, cogitar de uma inclusão social quando consideradas essas particularidades internas.
É preciso ter em conta, nesse quadro, a subjetividade da pessoa com deficiência que será incluída no trabalho. Aqui, agrava-se, por exemplo, o problema da inserção das pessoas com deficiência mental, estigmatizadas pela sociedade, que nelas mais enxergam limitações do que as potencialidades e capacidades. Daí a necessidade de construir a "identidade do trabalhador", como adverte Carvalho (2003, p. 45-46), dando-se-lhe acesso ao trabalho para que nele viva e através dele possa constituir "[...] situações intersubjetivas co-construtivas inquestionáveis [...]", as quais, relativamente à pessoa com deficiência mental, representam grande vitória, com superação da deficiência e dos preconceitos pela participação e exercício da cidadania.
4.3 A importância das ações afirmativas
A inclusão das pessoas com deficiência dá-se mediante as denominadas ações afirmativas, consistentes de políticas sociais voltadas para a "[...] concretização da igualdade substancial ou material [...]", segundo Gomes (2001, p. 131), típicas do Estado Democrático de Direito. Postas em prática, pioneiramente, nos Estados Unidos da América, para tentar resgatar os negros daquele país da marginalidade econômica e social, as ações afirmativas foram estendidas, depois, a outros grupos discriminados, tais as mulheres, pessoas com deficiência, índios e "[...] outras minorias éticas e nacionais [...]" (GOMES, 2001, p. 132).
Ações afirmativas são, nesse contexto, "[...] políticas públicas (e privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física [...]", segundo Gomes (2001, p. 132), o qual acresce, nas mesmas obra e página, com propriedade, que, através dessas ações "[...] a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade [...]".
Esse instrumento sócio-jurídico leva em consideração que, atualmente, nenhum país, atento aos princípios do pluralismo e da diversidade, pode crescer mantendo as desigualdades sociais e econômicas, decorrentes da discriminação das minorias. Assim, o Estado abandona aquela postura liberal tradicional de neutralidade e assume papel ativo determinante na busca da reversão desse desequilíbrio, substituindo as meras proclamações formais de direitos por políticas que levam em conta as diferenças existentes na sociedade, de modo a tanto combater, efetivamente, a discriminação, como dar condições de promoção da igualdade e de inclusão aos grupos marginalizados, notadamente com a destinação de recursos financeiros para tal mister, transformando o próprio meio social.
Quaresma (2008, p. 930) adverte para a necessidade de ser preservada a diversidade e as potencialidades das minorias discriminadas, salientando que a igualdade "[...] pressupõe a adoção de políticas públicas inclusivas, pois sem elas é impossível haver igualdade". De mais a mais, prossegue essa autora na mesma obra e mesma página, "[...] uma sociedade igualitária é aquela onde os seres humanos têm amplas possibilidades de desenvolver as suas potencialidades [...]", notadamente "[...] os segmentos étnicos, sociais, culturais, de gênero, etc., que são excluídos de certos âmbitos de uma determinada sociedade [...]".
As ações afirmativas, no Brasil, encontram fundamento no princípio da igualdade, em sua concepção contemporânea, e no texto constitucional vigente, de modo implícito, por exemplo, nos arts. 3º, I e III, e 170, VII, e, também, explicitamente, como se pode constatar nos arts. 7º, XX e 37, VIII (BRASIL. Presidência da República).
4.4 Modalidades de inserção no trabalho
São as ações afirmativas que realizam a inclusão das pessoas com deficiência no trabalho e consistem, basicamente, no Brasil, de políticas de cotas de reserva de vagas nos empregos do setor privado e no serviço público civil.
O Decreto n. 3.298/1999, no art. 35, prevê as modalidades de inserção da pessoa com deficiência no trabalho, assim explicadas por Lorentz (2006, p. 255):
a) o trabalho protegido, conforme Lei n. 8.069/90, art. 66 (nas oficinas protegidas ou terapêuticas, trabalho sem vínculo empregatício); b) o trabalho em colocação competitiva; c) o trabalho em colocação seletiva; d) o trabalho por conta própria; e) o trabalho em cooperativas de trabalho; e f) o trabalho em sistema de economia familiar (sociedade ou associação, trabalho sem vínculo empregatício autônomo e societário).
A esses casos, com apoio na legislação ordinária federal vigente, Lorentz (2006, p. 255) acresce outros contratos de trabalho que servem à inserção das pessoas com deficiência: contrato de emprego especial de aprendizagem, trabalho educativo e estágio de estudantes.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (BRASIL. Congresso Nacional) traz, no artigo 27 [03], os novos parâmetros para a proteção, no trabalho e no emprego, das pessoas com deficiência, e as medidas inclusivas devem observar, doravante, tais dispositivos consagrados pelo constitucionalismo brasileiro.
4.5 Inserção no emprego
Decorre da modalidade trabalho em colocação competitiva a que se refere o Decreto n. 3.298/1999. É o contrato de emprego comum regido pela Consolidação das Leis do Trabalho, aplicável ao setor privado da economia, não havendo distinções relativamente a salários e demais direitos trabalhistas, mormente porque proibidas pelo art. 7º, XXX e XXXI, da Carta Federal de 1988 (BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. 2007, p. 28). Rege-se pela Lei n. 8.213/1991, art. 93, e pelos arts. 36 a 38, do mencionado Decreto, e consiste na reserva de percentuais de vagas nas empresas (e não por estabelecimento, setor de serviços ou localidade) - as conhecidas cotas - conforme o tamanho do quadro de pessoal na empresa, ou seja: até duzentos empregados, 2%; de duzentos e um a quinhentos empregados, 3%; de quinhentos e um a mil empregados, 4%; e mais de mil empregados, 5% (BRASIL. Presidência da República).
As empresas brasileiras que se enquadrem nesses quantitativos de empregados são obrigadas, sem compensações ou favores governamentais, a admitir trabalhadores com deficiência, habilitados ou reabilitados, e têm o dever, ainda, de, antes de dispensar um empregado especial, providenciar a substituição por outro na mesma condição.
O próprio Decreto n. 3.298/1999, no art. 36, §§ 2º e 3º (BRASIL. Presidência da República), esclarece que a pessoa com deficiência habilitada para os empregos é "[...] aquela que concluiu curso de educação profissional de nível básico, técnico ou tecnológico, ou curso superior, com certificação ou diplomação expedida por instituição pública ou privada, legalmente credenciada pelo Ministério da Educação ou órgão equivalente [...]", bem como "[...] aquela com certificado de conclusão de processo de habilitação ou reabilitação profissional fornecido pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS [...] e, ainda, a pessoa "[...] que, não tendo se submetido a processo de habilitação ou reabilitação, esteja capacitada para o exercício da função [...]" [04].
Porque a sistemática de reserva de empregos não está prevista, expressamente, na Constituição da República, e, sim, na legislação ordinária (ROMITA, 2001, p. 147-148), é taxada de inconstitucional por seus opositores - pecha, no entanto, que não prospera, pois, como visto linhas atrás, cuida-se de discriminação positiva que, na prática, implementa a inclusão no trabalho e dá efetividade ao princípio da igualdade material, estando, portanto, assentada, implicitamente, nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da justiça social e da não-discriminação, achando-se, de mais a mais, agora, amparada pelo artigo 27, alínea "h", da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência - o que encerra qualquer dúvida.
4.6 Inserção no serviço público civil
Tal providência decorre, também, de ação afirmativa, neste caso prevista de modo expresso na Constituição de 1988, art. 37, VIII, que determina a reserva, em lei, de "percentual dos cargos e empregos públicos" para as pessoas com deficiência, bem assim os critérios para sua admissão. No plano federal, a Lei n. 8.112/1990, no art. 5º, §2º, cumprindo essa disposição constitucional, prevê o oferecimento de até 20% das vagas do concurso público para preenchimento por tais pessoas. O mencionado Decreto n. 3.298/1999, arts. 37 a 43, contém os procedimentos especiais para a participação das pessoas com deficiência nos concursos públicos, nos quais pelo menos 5% das vagas dos cargos ou empregos em disputa devem ser-lhes reservados, condicionada a inscrição àqueles que comprovem a deficiência mediante atestado médico (BRASIL. Presidência da República). Os demais entes federados, em leis próprias e nos editais dos certames, disciplinam a participação das referidas pessoas em seus concursos públicos.
Note-se, também, como ressalta Gugel (2006, p. 93), que não há privilégios para as pessoas com deficiência nos concursos públicos, pois prepondera a igualdade de condições com as pessoas sem deficiência, na medida em que se submetem "[...] aos mesmos conteúdos das provas e exames; aos critérios de aferição e avaliação; ao horário e local de aplicação das provas e exames; e à nota mínima exigida para todos os demais". A distinção feita quando da aplicação das provas diz respeito a apoios técnicos e especiais fornecidos aos candidatos, conforme a natureza da deficiência de cada um, previstos no Decreto n. 3.298/1999, art. 40 e parágrafos, para que possam concorrer em igualdade de condições com os outros inscritos.
No serviço público federal, o Decreto n. 4.228/2002 obriga a participação das pessoas com deficiência também nas nomeações dos cargos em comissão (DAS). As ações afirmativas representadas pelas cotas nos concursos públicos são igualmente praticadas para o preenchimento de cargos do Ministério Público, conforme Resolução n. 14/2006, do Conselho Nacional do Ministério Público (BRASIL. CNMP) e, em 07/10/2008, o Conselho Nacional de Justiça, em decisão proferida nos autos do PP n. 200810000018125, determinou tal sistemática para o preenchimento dos cargos da magistratura (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. CNJ determina reserva de vagas para deficientes ao cargo de juiz).