A disputa pela guarda dos filhos leva, boa parte das vezes, à emersão em juízo, de debates acerca da moral sexual e a apreciações críticas sobre um comportamento adequado. Nas palavras de Guilherme Strenger, "a conjunção homossexualidade e família não está longe de se tornar um fato concreto a desafiar a criatividade da jurisprudência, no afrontamento desses novos impactos que reclamam jurisdição". [01] Se tornar um fato? Pode-se afirmar, indubitavelmente, que já é um fato. Atualmente, para além da questão da conduta moral pura e simples, existe uma questão um pouco mais delicada: a homossexualidade de um ou de ambos os pais. Passou a ser mais comum deparar-se com casos em que as pessoas assumem a sua inclinação sexual, mesmo depois de contrair matrimônio e ter filhos.
Tais litígios, ao desembocarem nos Tribunais, na maior parte das vezes colocam em risco a neutralidade do Magistrado na avaliação do pai ou mãe homossexuais.Prevalece a questão da orientação sexual do progenitor, e não o exercício da função materna e paterna, que é, ou deveria ser, o elemento mais importante.
A homossexualidade, por si só não é fator caracterizador de piores condições para exercer o papel paternal ou maternal. Trata-se de escolha concernente à vida sexual da pessoa humana, que pode ser exercida de forma privada, sem afetar terceiros.
O princípio da isonomia determina que, na maior medida possível, tanto fática como jurídica, furte-se da discriminação por motivo de orientação sexual. Já o critério norteador do deferimento da guarda, o interesse da criança, exige que se busque as melhores condições em favor do infante quando da outorga da guarda.
A aplicação prática desse critério se dará mediante a averiguação de todos os fatores relevantes numa querela de guarda, a saber: constatar qual dos pais cuidava do infante no dia a dia, a relação afetiva da criança com seus pais, a continuidade das relações do menor, assim como a manutenção da situação de fato (quando recomendável), a preferência da criança. Se depois de avaliados todos os fatores importantes, restar provado que o progenitor homossexual é o mais indicado para permanecer com o filho, a ele deve ser confiada a guarda, exceto se verificado que o mesmo traz algum perigo para o desenvolvimento ou vida do menor.
Uma decisão que possua como critério norteador a homossexualidade, seja para deferir a guarda do filho ao progenitor com orientação heterossexual, seja para outorgar a guarda a um terceiro, no caso de ambos os pais serem homossexuais, fere o princípio da igualdade, o da não discriminação por orientação sexual e, ainda, a garantia constitucional da motivação das decisões judiciais.
Uma decisão que tenha esse fundamento como esteio não é capaz de estabelecer nexo de coerência entre a análise dos fatos e a imputação das conseqüências (por exemplo, a conjectura de a criança vir a desenvolver a homossexualidade pelo simples fato do seu pai ou mãe ser homossexual e, por tal motivo, denegar-se o pedido de guarda).
Como bem explicita Roger Raupp Rios, "nesta medida, os desdobramentos do princípio isonômico, no que diz respeito à orientação sexual, repelem juízos preconceituosos, não fundamentados, despidos de sustentação racional à luz do desenvolvimento da contemporânea compreensão da sexualidade. Daí se deduz a invalidade de decisões e procedimentos calcados nestas bases, uma vez que, mesmo implícita ou explicitamente, não são capazes de estabelecer nexos de coerência entre a análise dos fatos e a imputação das conseqüências jurídicas. Com efeito, muitos julgados registram nexos desprovidos de lógica e coerência entre a homossexualidade e as conseqüências jurídicas obtidas, deixando insatisfeito o requisito de clareza e de correção argumentativa exigível das decisões." [02]
Neste sentido, uma pesquisa realizada pelo professor Michael Bailey, do Departamento de Psicologia da Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos, revelou que mais de 90% dos filhos de gays são heterossexuais. Outros estudos não encontraram evidências de que a orientação sexual dos pais influencie a dos filhos. [03] Vale ressaltar também que não existem, no Brasil, registros de abuso sexual contra os filhos, praticados por pais homossexuais.
Assim, diante de todo o exposto, é indispensável reafirmar que o Magistrado, diante da discricionariedade que lhe é conferida, não deve julgar as opções de vida dos progenitores, devendo concentrar-se nas questões que lhe são postas, nos elementos factuais relevantes, a fim de encontrar uma solução que não se distancie de um resultado ajustado.
Referências
DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. "Atribuição da guarda na desunião dos pais: reconstrução do instituto a partir da figura primária de referência", em Questões controvertidas no direito de família e das sucessões.São Paulo: Editora Método, p. 105-128, 2006.
RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no Direito.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
SANCHES, Mariana; VELLOSO, Beatriz. "Uma família brasileira", em Revista Época.n. 453, p. 80-87, jan., 2007.
SOTTOMAYOR, Maria Clara. Exercício do poder paternal relativamente à pessoa do filho após o divórcio ou separação de pessoas e bens. 2. ed. Porto: Publicações Universidade Católica, 2003.
STRENGER, Guilherme Gonçalves. Guarda de filhos. 2. ed. São Paulo: DPJ Editora, 2006.
Notas
- STRENGER, Guilherme. Guarda de filhos, p. 81.
- RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no Direito, p. 150-151.
- Cfr. SANCHES, Mariana; VELLOSO, Beatriz. "Uma família brasileira", em Revista Época, p. 84.