6 – A JUSTA CAUSA PARA PRISÃO, INQUÉRITO POLICIAL E AÇÃO PENAL:
A Constituição da República pátria consagrou o direito de locomoção do cidadão brasileiro, impondo ressalvas em detrimento de situações onde este direito poderia ocasionar um prejuízo maior ao Estado, como no caso da prisão, deportação, expulsão, internação em hospital de custódia, dentre outras hipóteses.
A prisão é uma das formas de impedir que o indivíduo exerça direito de locomoção, seja durante um procedimento penal ou decorrente de sentença transitada em julgado e no presente trataremos exclusivamente da prisão processual que resulta de flagrante delito ou determinação judicial.
Sua natureza cautelar exige a configuração do periculum in mora e do fumus boni iuris com intuito de assegurar e proteger os bens jurídicos envolvidos na relação processual se houver perigo à aplicação da lei penal, à ordem pública ou necessidade para instrução criminal, nos termos do art. 312 do CPP.
Observe-se que, nestas hipóteses, a justa causa para imposição da prisão apenas está demonstrada em situação de extrema necessidade, dada a gravidade da medida, caso contrário estará impedindo o exercício do direito de ir e vir do indivíduo ilegalmente.
O Código de Processo Penal exige como condição para o recolhimento à prisão a autuação do agente em flagrante delito, hipótese em que é demonstrada a justa causa para que seja imposta a prisão; caso contrário estará impedindo o exercício do direito de locomoção do indivíduo, o que será considerado ilegal.
A privação de liberdade por tempo superior ao permitido, quando inexiste causa que a determinou, quando ordenado por autoridade incompetente ou quando não admitidos fianças nos casos que a lei autoriza, a prisão torna-se ilegal, justificando a impetração de habeas corpus constitucional para garantir sua liberdade.
O inquérito policial também depende de justa causa para sua existência. Por ser um procedimento administrativo de natureza inquisitória, possui escopo de investigar a existência do fato criminoso e sua autoria, colhendo as provas tendo em vista as circunstâncias fáticas. Não se trata de pré-requisito para assegurar a ação penal, tanto que alguns procedimentos independem da existência do inquérito policial, bem como pode ser substituído por outros meios de informação, desde que suficientes para sustentar a acusação.
É instaurado ex officio, por portaria da autoridade policial, pela lavratura do auto de prisão em flagrante, mediante representação da vítima ou requisição do juiz ou Ministério Público e, sendo um procedimento administrativo extrajudicial, não se aplicam os princípios constitucionais do processo, como o contraditório e a ampla defesa, por exemplo.
Nos crimes de ação penal pública incondicionada ou havendo requisição do juiz ou Ministério Público, a autoridade policial deve iniciar as investigações qualquer que tenha sido o meio pelo qual a notitia criminis tenha chegado a seu conhecimento. Em se tratando de ação penal pública condicionada ou privada, somente se instaurará o inquérito policial com a representação ou a requerimento da vítima, ou seu representante legal.
As investigações durante a fase inquisitória objetiva dar elementos concretos acerca da autoria e materialidade para que o Querelante, ou Ministério Público, possam intentar ação penal com justa causa, sob pena de praticar coação ilegal ao acusado.
Findo o procedimento, a autoridade policial elaborará um relatório final sendo os autos remetidos ao conhecimento do Querelante ou Ministério Público para oferecimento da denúncia ou queixa.
A denúncia, ou queixa-crime deve atender às condições da ação, com a qualificação do denunciado, ou elementos suficientes sobre sua identidade, a descrição do fato praticado e sua co-relação ao tipo penal imputado, na forma do art. 41 do Estatuto Processual Penal.
A ausência de justa causa para o inquérito policial ou para ação penal é causa que prejudica o curso procedimental, configurando uma coação ilegal ao submeter o investigado, ou acusado, a um constrangimento pela existência de um procedimento judicial ou extrajudicial.
Neste sentido escreveu Vicente Sabino Júnior:
Não se deve esquecer que a justa causa não se aprecia in concreto, mas in abstrato, por que ela só existe quando se atribua ao paciente procedimento que não constitua crime. Se embora em tese, o fato, que lhe é imputado, caracteriza uma infração penal, não há falta de justa causa, mesmo sendo injusta a imputação. (SABINO JUNIOR, 1964, pág.341)
Havendo o recebimento da denúncia ou da queixa-crime inepta, a coação ilegal estará configurada, podendo-se, portanto, impetrar habeas corpus processual para trancar a ação penal face a ausência de justa causa, com base no art. 648, I do digesto Código de Processo Penal [02].
Por tal razão que, no processo penal, faz parte do interesse de agir a exigência de justa causa com fundamento probatório razoável para sustentar a acusação, salvo contrario será inepta por ausência de condições de ação. Afrânio Jardim, em Direito Processual Penal, pontua que a "justa causa é suporte probatório mínimo em que se deve lastrear a acusação, tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do imputado" (JARDIM, 2001, p. 95).
Sustenta o autor que só o ajuizamento da ação penal é suficiente para atingir o estado de dignidade do acusado, de modo a provocar graves repercussões em seu patrimônio moral, partilhado socialmente com a comunidade. Por isso, a peça acusatória deveria vir acompanhada de suporte mínimo de prova, sem os quais a acusação careceria de admissibilidade.
No mesmo sentido, o estudioso Guilherme Nucci considera que a justa causa esta relacionada com o interesse de agir, sustentando que a justa causa, em verdade, espelha uma síntese das condições da ação. Inexistindo uma delas, não há justa causa para a ação penal.
Assim, considerando a justa causa como elemento do interesse de agir é possível seu trancamento pela falta de justa causa, através de habeas corpus processual.
7 - HABEAS CORPUS POR FALTA DE JUSTA CAUSA:
Embora a Constituição da República tenha disposto acerca do habeas corpus como forma de proteção à liberdade de locomoção, o Código de Processo Penal, nos arts. 647 e 648 apresentam um rol com hipóteses do seu cabimento quando verificada coação ilegal.
Art. 647 - Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.
Art. 648 - A coação considerar-se-á ilegal:
I - quando não houver justa causa;
II - quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei;
III - quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo;
IV - quando houver cessado o motivo que autorizou a coação;
V - quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei a autoriza;
VI - quando o processo for manifestamente nulo;
VII - quando extinta a punibilidade.
De acordo com o inciso I do art. 648 supra mencionado, a falta de justa causa, seja para a prisão, inquérito policial ou ação penal, constitui constrangimento ilegal contra a pessoa.
Nas lições de Magalhães Noronha (1986, p. 414), "justa causa é o fato cuja ocorrência torna lícita a coação", fazendo entender que a coação será considerada ilegal quando exercida sem um motivo lícito, sendo o habeas corpus é o recurso cabível para confrontar a ilicitude da coação, não pela probabilidade de constatar a autoria e materialidade do delito, mas por, de forma inequívoca, sequer existir esta possibilidade.
A justa causa, como observa Sérgio Demoro Hamilton [03], fundado em Frederico Marques, "funciona como norma genérica ou de encerramento, porquanto toda coação antijurídica que não se enquadre nos demais itens do artigo 648, será subsumível no preceito amplo em que fala em justa causa". A revogação da prisão preventiva por obra de "habeas corpus" pode prestar a este colorido constitutivo, produzindo o trancamento da ação penal, porventura em curso contra o paciente, desde que o provimento cautelar combatido ressinta da total ausência de seus fundamentos.
Vários juristas, também citados por Espínola Filho (200), diziam que a justa causa, não teria definição, em forma absoluta, pelo que afirmam ficar ao critério do Juiz apreciar a injustiça, ou justiça, da razão determinante da coação, afim de considerar legal, ou não, o constrangimento, pode informar-se que falta a justa causa, quando o constrangimento, a violência, não tem um motivo legal.
De acordo com o Professor Galdino Siqueira (1997, p. 251): "justa causa é o motivo legal, e, assim, a prisão é arbitrária si o seu motivo não encontra apoio na lei, como a falta de criminalidade do facto, a falta de prova, não identidade da pessoa[...]".
O pedido juridicamente impossível impõe a rejeição da denúncia ou queixa-crime ou, se recebidas, tornam-se passíveis de trancamento por meio de habeas corpus processual.
Lado outro, apresentado a denúncia ou queixa-crime ao órgão jurisdicional, cabe uma análise preliminar dos elementos probatórios, com fulcro de verificar alguma ocorrência dos incisos contidos no art. 43 do CPP [04], e não sendo constatada justa causa, imperativa a rejeição da peça acusatória.
Contudo, a produção de prova, na maioria dos procedimentos, se dá durante a instrução criminal, não havendo contraditório prévio, tornando prejudicial a rejeição da exordial naqueles termos. Distintamente dos casos em que a lei exige a produção inicial de elementos de prova para instruir a inicial
Alguns estudiosos como José Barcelos de Oliveira refutam que a justa causa seria um elemento necessário para propositura da ação penal, sustentado que:
Admitir-se a rejeição da peça acusatória sob tal fundamento (falta de justa causa) iria unicamente em favor dos interesses persecutórios, dado que permitiria o novo ingresso em juízo, após nova coleta de material probatório. Ora, se a acusação não tem provas nem as declina na inicial, não deveria propor a ação. Uma vez oferecida a denúncia, ou queixa, pode-se argumentar, a ação deveria ter seguimento, com a absolvição do acusado – e não a rejeição da denúncia, por falta de justa causa – se insuficiente a atividade probatória da acusação. (OLIVEIRA, 2006, p. 95).
É nesse sentido que a falta de justa causa não pode ser comparada ou confundida com a insuficiência de provas. A exigência prévia de prova não deve ser fator para impedir o direito de promover a ação penal, visto que a própria legislação não exige. Entretanto, é necessária uma demonstração de elementos que comprovem a ocorrência do fato delituoso, não podendo fixar-se apenas em questões infundadas e/ou suposições.
Caso seja recebida uma denúncia ou queixa-crime que deveria ter sido rejeitada, o constrangimento ilegal por falta de justa causa para o processo estará configurado. E, ainda assim, se durante a instrução processual o juiz verificar a ausência de causa de pedir no procedimento, nada impediria a reconsideração do despacho de recebimento, extinguindo o procedimento por falta de justa causa (art. 516 do CPP)
Cumpre salientar que a decisão que rejeita a peça acusatória por falta de justa causa não é uma sentença terminativa de mérito pela improcedência da ação penal. Trata-se, apenas, de uma inadmissibilidade do procedimento, não fazendo coisa julgada material, tampouco impedirá que se levante um acervo probatório concreto para justificar a demanda.
Nesse norte, Heleno Fragoso (1967) em sua obra "Ilegalidade e abuso de poder na denúncia e na prisão preventiva" destaca que:
[...] a denúncia não pode ser um ato de arbítrio e prepotência. O Ministério Público não funciona como uma espécie de inquisidor-mor, que possa trazer ao banco dos réus, num estado democrático, o cidadão, inventando em relação a ele um crime que não houve ou que ele evidentemente não praticou, ainda que a denúncia seja formalmente incensurável. (FRAGOSO, 1967, p. 72).
A análise de provas, mesmo que de forma superficial, é necessária para a demonstração da inexistência da própria relação processual. Mesmo porque o cidadão se encontrará totalmente desamparado e violado em seus direitos constitucionais pelo simples fato de figurar como parte em um procedimento sem justa causa.
Cediço que o recebimento de uma denúncia ou queixa-crime para apuração do fato imputado, em tese, não geram nenhuma restrição à liberdade do ser humano. Entretanto, o constrangimento psicossocial gerado é tamanho que deve ter, no mínimo, justa causa para justificá-lo, sob pena de deflagrar um acervo de defeitos formais para o seu prosseguimento.
Existem decisões sustentando que o habeas corpus não se presta ao exame aprofundado de provas ou não é meio idôneo para reapreciação aprofundada de matéria de fato, bem como pela análise de elementos fáticos controversos, com o que concorda Diomar Ackel Filho:
[...] uma coisa é deferir o remédio porque manifestamente a prova demonstra que não há nenhum crime cometido pelo paciente ou sequer indício deste. Outra é a possibilidade do crime, em tese, com necessidade de exame e valoração dos elementos de prova. Nesta hipótese, o "habeas corpus" não tem espaço.(ACKEL FILHO, 1991, p. 29)
Não se defende a utilização desenfreada deste procedimento, fazendo necessário o exame da prova para julgamento da existência ou não de justa causa no inquérito policial ou processo penal, e não para exame da matéria em virtude de provas controvertidas ou complexas, que deve ser feito através de recurso de apelação ou revisão criminal, dependendo do caso.
OLIVEIRA (1998, p. 71) sustenta que "a prova é de ser considerada para impedir que alguém fique submetido a processo penal, quando evidenciada a falta de justa causa, que torna ilegal o constrangimento que o processo representa." (OLIVEIRA, 1998. p. 71).
Sustenta, ainda, demonstrando que a justa causa deve estar inserida no contexto da demonstração do interesse de agir, ainda que:
"a questão não pode reduzir-se a uma disputa entre interesses de absolvição, pela manifesta ausência de provas, e interesses de acusação, no sentido mais específico de parte (acusadora). Do ponto de vista do exercício do Poder Público, não se deve, com efeito, admitir o desenvolvimento da atividade jurisdicional inútil, ou útil apenas em relação a determinados fins e interesses". (OLIVEIRA, 2006, p. 95).
Portanto, as análises das provas através do habeas corpus estão adstritas àquelas substanciais para a comprovação da autoria e materialidade do delito, ou seja, aquelas que servem de subsídio concreto para fundamentar a denúncia ou queixa-crime. Não sendo admissível a valoração da prova para a avaliação da matéria fática pelo writ, mas sim para impedir a submissão do acusado a um procedimento penal (inquérito ou processo) manifestamente sem justa causa.