8 – O TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL E DA AÇÃO PENAL
A concepção adotada pelo direito processual penal acerca do writ é, também, de um remédio processual contra a ilegalidade e constrangimento sem justa causa e sua impetração impera diante de visível e manifesto constrangimento proporcionado pelo procedimento ilegal, visando o trancamento do inquérito policial e da ação penal.
Diferentemente do habeas corpus constitucional, que protege a liberdade de ir e vir do paciente, o processual acabou suprindo a falta de recurso próprio para trancar o inquérito policial, ou para trancar a ação penal cuja denúncia ou queixa-crime seja inepta.
O procedimento criminal apura um fato delituoso, buscando apontar sua autoria para efetiva aplicação da lei penal. Então, se o procedimento possuir alguma ilegalidade, constatar-se-á o constrangimento. Observa-se que o próprio legislador possibilitou a existência do habeas corpus processual quando dispôs, no art. 651 e 652 do CPP, que:
Art. 651 - A concessão do habeas corpus não obstará, nem porá termo ao processo, desde que este não esteja em conflito com os fundamentos daquela.
Art. 652 - Se o habeas corpus for concedido em virtude de nulidade do processo, este será renovado.
A ausência de justa causa, no modelo do inciso I, do artigo 648, do Código de Processo Penal, pode caracterizar a situação autorizadora de uma pretensão cautelar, toda vez, que o constrangimento, reputado ilegal, provenha de prisão preventiva. O mesmo se diga do "habeas corpus", requerido contra prisão em flagrante, se o auto que o formaliza afasta-se da orientação do artigo 301 e seguintes do Código. A pretensão libertária deduzida, embora acolhida, incidindo conseqüentemente, prestação jurisdicional reconhecedora do direito à liberdade do paciente, apresenta-se, no entanto, incapaz de impedir o evoluir do processo, através de seus atos procedimentais.
Assim é que a falta de justa causa para a instauração de ação penal ou mesmo de inquérito policial tem dado ensejo à impetração do mandamus, objetivando o seu trancamento. Desde já, pode-se afirmar que em hipóteses como essas a ameaça à liberdade é, muitas vezes, bastante remota ou até mesmo impossível de acontecer, mormente se analisado o caso concreto em face de todo o ordenamento jurídico.
Com efeito, é de se lembrar a existência de disposições legais aptas a afastar a ameaça concreta da pena de prisão, como, por exemplo, o sursis, a conversão da pena privativa de liberdade não superior a 6 (seis) meses em multa (art. 60, § 2° do CP), as novas hipóteses de conversão da condenação em pena de multa e/ou restritiva de direitos (Lei n° 9.714/98), os diversos institutos da Lei dos Juizados Especiais Criminais, como a composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo. Não obstante a existência de todos estes institutos afastadores da pena de prisão, que podem ser aplicados no caso concreto, o habeas corpus tem sido conhecido e processado normalmente.
A mera existência de um procedimento criminal contra alguém, uma vez detectada a falta de justa causa, já dá ensejo à impetração de habeas corpus, independentemente até mesmo de uma aferição da real ameaça à liberdade de locomoção do acusado. Isto porque, se fôssemos exigir em toda impetração de habeas corpus essa real ameaça à liberdade de locomoção, estaríamos retrocedendo, e muito, no avanço jurisprudencial e doutrinário até aqui alcançado, para só se admitir o remédio heróico em caso de prisão já efetivada ou na iminência concreta de sê-lo (p. ex., com a expedição de mandado de prisão ou ameaça ilegal de prisão por qualquer autoridade), o que de fato, como visto, não ocorre.
Ressurgindo nas últimas décadas através de nomes importantes como Luigi Ferrajoli, e principalmente, o garantismo jurídico vem com grande força abordar temas importantes dentro do Direito Penal, refletindo em profundas alterações na forma de se pensar o Direito Penal vigente, assim como o Processo Penal a ele vinculado.
O sistema garantista visa, justamente, buscar essa efetividade, através da diminuição da discricionariedade e controle de arbitrariedades estatais, além da maximização dos direitos fundamentais.
Assim, quando falta justa causa para o inquérito policial ou processo penal o que se requer com a impetração do habeas corpus é o trancamento do procedimento, já que não há razão para seu prosseguimento. A decisão que resolve pelo trancamento do inquérito policial, ou da ação penal, é sentença meramente processual, com objetivo de impedir a tramitação de procedimento manifestamente ilegal. Logo, não se trata de julgamento antecipado, tampouco se reporta ao mérito material do caso concreto por sua improcedência.
9 – CONCLUSÃO:
A jurisdição no Estado Democrático de Direito tem escopo principal, no âmbito penal, impor a penalidade adequada àquele que viola alguma norma penal sem contrariar as garantias do direito de liberdade de locomoção do indivíduo. A violação da legislação penal se configura com a verificação de uma conduta típica, antijurídica e culpável, elementos necessários para provocação da jurisdição pela denúncia, por parte do Ministério Público, ou pela queixa-crime por parte do ofendido, respeitada as legitimidades ad causam.
Em algumas situações, é imprescindível a instauração de um inquérito policial para apuração da conduta do agente, bem como levantamento de acervo probatório relativo ao fato delituoso. Não obstante, para o oferecimento da denúncia ou queixa-crime, imprescindível a demonstração de elementos mínimos que justifiquem a justa causa do petitório, sob pena de inépcia e, conseqüentemente, sua rejeição.
Os elementos de convicção que compõe o mínimo necessário para justificar a existência do inquérito policial, bem como a instauração de ação penal, são necessários tendo em vista que são procedimentos que constrangem o indiciado/acusado, possibilitando, assim, a impetração de habeas corpus, à inteligência do art. 648, I, do Código de Processo Penal.
A jurisdição penal não pode ser encarada de forma imperativa, onde o agente seria imediatamente processado, visando à punição, quando constatado o desrespeito à norma penal. O ordenamento jurídico brasileiro, pelas suas normas penais repressivas por natureza, objetiva alcançar a ressocialização do culpado pela infração penal, como forma de manutenção do equilíbrio social e não, simplesmente, sua punição.
Para provocação da jurisdição faz-se necessário a existência de indícios razoáveis de autoria e prova da materialidade delitiva, consubstanciada pelo princípio da ação penal do in dubio pro societate. Para tanto, a denúncia e a queixa-crime não necessitam vir acompanhadas de um convencimento absoluto sobre a existência do crime e de quem foi o agente, pois, presentes os indícios, a sociedade atrai a apuração dos fatos à submissão do Poder Judiciário.
Pela ausência destes indícios razoáveis que decorrem situações que permitem o trancamento do inquérito policial ou da ação penal por meio de habeas corpus processual.
Iniciado o procedimento inquisitório, ou postulatório, há uma ameaça ao estado de liberdade do acusado, vez que, mesmo havendo justa causa, provoca uma mudança significativa no meio social em que vive, pois afeta o seu caráter, sua dignidade e a sua moral. É por tal razão que o Estado necessita de um suporte mínimo de prova da autoria e materialidade do fato praticado para exercer a jurisdição. Assim não sendo, seria ilegítimo o "jus persequendi in judicio" utilizado sem um mínimo de fundamentação ou de provas aptas a viabilizar a ação penal.
Neste sentido, constata-se que a justa causa está intimamente ligada ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da garantia a liberdade. Tratando-se de um Estado Democrático de Direito, cuja Constituição da República visa zelar e resguardar as garantias fundamentais do indivíduo, não se pode permitir que, a qualquer momento e sob quaisquer circunstâncias, estes direitos possam ser violados pelo próprio Estado, através de um procedimento completamente destituído de fundamento razoável, entendido este como um conjunto probatório mínimo.
A falta de justa causa afeta diretamente as condições da ação, viciando o interesse de agir da parte. Logo, ausente uma das condições da ação, demonstrada está à coação ilegal gerado pelo procedimento, o que possibilita o seu trancamento através recurso heróico do habeas corpus processual.
O cabimento do habeas corpus processual não é determinado pelo fato do Paciente não estar preso ou na iminência de o ser, ou seja, prestes a ver sua liberdade agredida por ato ilegal. Contrariamente, é um recurso heróico que, interpretado amplamente, possibilita trancar inquéritos policiais e ações penais manifestamente desprovidos de falta de justa causa.
Com este fundamento que a doutrina e jurisprudência destacam que não bastam denúncia ou queixa-crime encontrar-se tecnicamente perfeita, sendo imprescindível elementos de prova para sua instauração, onde a ausência de justa causa deve ser tratada com a máxima prudência, exclusivamente, para verificar se o procedimento se desvinculou por inteiro dos elementos formadores da sua fundamentação, o que acarretaria uma coação ilegal ao indivíduo.
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Notas
- Termo inglês que significa mandado, ordem escrita. Quando utilizado na terminologia jurídica brasileira, refere-se sempre ao mandado de segurança e ao habeas corpus.
- "Art. 648 - A coação considerar-se-á ilegal:
- Sérgio Demoro Hamilton, Revista de Direito, nº 3, Justa Causa, Um Conceito Polêmico
- Art. 43 - A denúncia ou queixa será rejeitada quando:
I - quando não houver justa causa,
(...)
III - for manifesta a ilegitimidade da parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal.