7. HABEAS CORPUS POR FALTA DE JUSTA CAUSA
Embora a Constituição da República tenha disposto acerca do habeas corpus como forma de proteção à liberdade de locomoção, o Código de Processo Penal, nos arts. 647. e 648 apresentam um rol com hipóteses do seu cabimento quando verificada coação ilegal.
Art. 647. - Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.
Art. 648. - A coação considerar-se-á ilegal:
I - quando não houver justa causa;
II - quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei;
III - quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo;
IV - quando houver cessado o motivo que autorizou a coação;
V - quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei a autoriza;
VI - quando o processo for manifestamente nulo;
VII - quando extinta a punibilidade.
De acordo com o inciso I do art. 648. supra mencionado, a falta de justa causa, seja para a prisão, inquérito policial ou ação penal, constitui constrangimento ilegal contra a pessoa.
Nas lições de Magalhães Noronha (1986, p. 414), "justa causa é o fato cuja ocorrência torna lícita a coação", fazendo entender que a coação será considerada ilegal quando exercida sem um motivo lícito, sendo o habeas corpus é o recurso cabível para confrontar a ilicitude da coação, não pela probabilidade de constatar a autoria e materialidade do delito, mas por, de forma inequívoca, sequer existir esta possibilidade.
A justa causa, como observa Sérgio Demoro Hamilton3, fundado em Frederico Marques, "funciona como norma genérica ou de encerramento, porquanto toda coação antijurídica que não se enquadre nos demais itens do artigo 648, será subsumível no preceito amplo em que fala em justa causa". A revogação da prisão preventiva por obra de "habeas corpus" pode prestar a este colorido constitutivo, produzindo o trancamento da ação penal, porventura em curso contra o paciente, desde que o provimento cautelar combatido ressinta da total ausência de seus fundamentos.
Vários juristas, também citados por Espínola Filho, diziam que a justa causa, não teria definição, em forma absoluta, pelo que afirmam ficar ao critério do Juiz apreciar a injustiça, ou justiça, da razão determinante da coação, afim de considerar legal, ou não, o constrangimento, pode informar-se que falta a justa causa, quando o constrangimento, a violência, não tem um motivo legal.
De acordo com o Professor Galdino Siqueira (1997, p. 251): "justa causa é o motivo legal, e, assim, a prisão é arbitrária si o seu motivo não encontra apoio na lei, como a falta de criminalidade do facto, a falta de prova, não identidade da pessoa[...]".
O pedido juridicamente impossível impõe a rejeição da denúncia ou queixa-crime ou, se recebidas, tornam-se passíveis de trancamento por meio de habeas corpus processual.
Lado outro, apresentado a denúncia ou queixa-crime ao órgão jurisdicional, cabe uma análise preliminar dos elementos probatórios, com fulcro de verificar alguma ocorrência dos incisos contidos no art. 43. do CPP4, e não sendo constatada justa causa, imperativa a rejeição da peça acusatória.
Contudo, a produção de prova, na maioria dos procedimentos, se dá durante a instrução criminal, não havendo contraditório prévio, tornando prejudicial a rejeição da exordial naqueles termos. Distintamente dos casos em que a lei exige a produção inicial de elementos de prova para instruir a inicial
Alguns estudiosos como José Barcelos de Oliveira refutam que a justa causa seria um elemento necessário para propositura da ação penal, sustentado que:
Admitir-se a rejeição da peça acusatória sob tal fundamento (falta de justa causa) iria unicamente em favor dos interesses persecutórios, dado que permitiria o novo ingresso em juízo, após nova coleta de material probatório. Ora, se a acusação não tem provas nem as declina na inicial, não deveria propor a ação. Uma vez oferecida a denúncia, ou queixa, pode-se argumentar, a ação deveria ter seguimento, com a absolvição do acusado – e não a rejeição da denúncia, por falta de justa causa – se insuficiente a atividade probatória da acusação. (OLIVEIRA, 2006, p. 95).
É nesse sentido que a falta de justa causa não pode ser comparada ou confundida com a insuficiência de provas. A exigência prévia de prova não deve ser fator para impedir o direito de promover a ação penal, visto que a própria legislação não exige. Entretanto, é necessária uma demonstração de elementos que comprovem a ocorrência do fato delituoso, não podendo fixar-se apenas em questões infundadas e/ou suposições.
Caso seja recebida uma denúncia ou queixa-crime que deveria ter sido rejeitada, o constrangimento ilegal por falta de justa causa para o processo estará configurado. E, ainda assim, se durante a instrução processual o juiz verificar a ausência de causa de pedir no procedimento, nada impediria a reconsideração do despacho de recebimento, extinguindo o procedimento por falta de justa causa (art. 516. do CPP)
Cumpre salientar que a decisão que rejeita a peça acusatória por falta de justa causa não é uma sentença terminativa de mérito pela improcedência da ação penal. Trata-se, apenas, de uma inadmissibilidade do procedimento, não fazendo coisa julgada material, tampouco impedirá que se levante um acervo probatório concreto para justificar a demanda.
Nesse norte, Heleno Fragoso (1967) em sua obra "Ilegalidade e abuso de poder na denúncia e na prisão preventiva" destaca que:
[...] a denúncia não pode ser um ato de arbítrio e prepotência. O Ministério Público não funciona como uma espécie de inquisidor-mor, que possa trazer ao banco dos réus, num estado democrático, o cidadão, inventando em relação a ele um crime que não houve ou que ele evidentemente não praticou, ainda que a denúncia seja formalmente incensurável. (FRAGOSO, 1967, p. 72).
A análise de provas, mesmo que de forma superficial, é necessária para a demonstração da inexistência da própria relação processual. Mesmo porque o cidadão se encontrará totalmente desamparado e violado em seus direitos constitucionais pelo simples fato de figurar como parte em um procedimento sem justa causa.
Cediço que o recebimento de uma denúncia ou queixa-crime para apuração do fato imputado, em tese, não geram nenhuma restrição à liberdade do ser humano. Entretanto, o constrangimento psicossocial gerado é tamanho que deve ter, no mínimo, justa causa para justificá-lo, sob pena de deflagrar um acervo de defeitos formais para o seu prosseguimento.
Existem decisões sustentando que o habeas corpus não se presta ao exame aprofundado de provas ou não é meio idôneo para reapreciação aprofundada de matéria de fato, bem como pela análise de elementos fáticos controversos, com o que concorda Diomar Ackel Filho:
[...] uma coisa é deferir o remédio porque manifestamente a prova demonstra que não há nenhum crime cometido pelo paciente ou sequer indício deste. Outra é a possibilidade do crime, em tese, com necessidade de exame e valoração dos elementos de prova. Nesta hipótese, o "habeas corpus" não tem espaço.(ACKEL FILHO, 1991, p. 29)
Não se defende a utilização desenfreada deste procedimento, fazendo necessário o exame da prova para julgamento da existência ou não de justa causa no inquérito policial ou processo penal, e não para exame da matéria em virtude de provas controvertidas ou complexas, que deve ser feito através de recurso de apelação ou revisão criminal, dependendo do caso.
OLIVEIRA (1998, p. 71) sustenta que "a prova é de ser considerada para impedir que alguém fique submetido a processo penal, quando evidenciada a falta de justa causa, que torna ilegal o constrangimento que o processo representa." (OLIVEIRA, 1998. p. 71).
Sustenta, ainda, demonstrando que a justa causa deve estar inserida no contexto da demonstração do interesse de agir, ainda que:
"a questão não pode reduzir-se a uma disputa entre interesses de absolvição, pela manifesta ausência de provas, e interesses de acusação, no sentido mais específico de parte (acusadora). Do ponto de vista do exercício do Poder Público, não se deve, com efeito, admitir o desenvolvimento da atividade jurisdicional inútil, ou útil apenas em relação a determinados fins e interesses". (OLIVEIRA, 2006, p. 95).
Portanto, as análises das provas através do habeas corpus estão adstritas àquelas substanciais para a comprovação da autoria e materialidade do delito, ou seja, aquelas que servem de subsídio concreto para fundamentar a denúncia ou queixa-crime. Não sendo admissível a valoração da prova para a avaliação da matéria fática pelo writ, mas sim para impedir a submissão do acusado a um procedimento penal (inquérito ou processo) manifestamente sem justa causa.
8. O TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL E DA AÇÃO PENAL
A concepção adotada pelo direito processual penal acerca do writ é, também, de um remédio processual contra a ilegalidade e constrangimento sem justa causa e sua impetração impera diante de visível e manifesto constrangimento proporcionado pelo procedimento ilegal, visando o trancamento do inquérito policial e da ação penal.
Diferentemente do habeas corpus constitucional, que protege a liberdade de ir e vir do paciente, o processual acabou suprindo a falta de recurso próprio para trancar o inquérito policial, ou para trancar a ação penal cuja denúncia ou queixa-crime seja inepta.
O procedimento criminal apura um fato delituoso, buscando apontar sua autoria para efetiva aplicação da lei penal. Então, se o procedimento possuir alguma ilegalidade, constatar-se-á o constrangimento. Observa-se que o próprio legislador possibilitou a existência do habeas corpus processual quando dispôs, no art. 651. e 652 do CPP, que:
Art. 651. - A concessão do habeas corpus não obstará, nem porá termo ao processo, desde que este não esteja em conflito com os fundamentos daquela.
Art. 652. - Se o habeas corpus for concedido em virtude de nulidade do processo, este será renovado.
A ausência de justa causa, no modelo do inciso I, do artigo 648, do Código de Processo Penal, pode caracterizar a situação autorizadora de uma pretensão cautelar, toda vez, que o constrangimento, reputado ilegal, provenha de prisão preventiva. O mesmo se diga do "habeas corpus", requerido contra prisão em flagrante, se o auto que o formaliza afasta-se da orientação do artigo 301 e seguintes do Código. A pretensão libertária deduzida, embora acolhida, incidindo conseqüentemente, prestação jurisdicional reconhecedora do direito à liberdade do paciente, apresenta-se, no entanto, incapaz de impedir o evoluir do processo, através de seus atos procedimentais.
Assim é que a falta de justa causa para a instauração de ação penal ou mesmo de inquérito policial tem dado ensejo à impetração do mandamus, objetivando o seu trancamento. Desde já, pode-se afirmar que em hipóteses como essas a ameaça à liberdade é, muitas vezes, bastante remota ou até mesmo impossível de acontecer, mormente se analisado o caso concreto em face de todo o ordenamento jurídico.
Com efeito, é de se lembrar a existência de disposições legais aptas a afastar a ameaça concreta da pena de prisão, como, por exemplo, o sursis, a conversão da pena privativa de liberdade não superior a 6 (seis) meses em multa (art. 60, § 2° do CP), as novas hipóteses de conversão da condenação em pena de multa e/ou restritiva de direitos (Lei n° 9.714/98), os diversos institutos da Lei dos Juizados Especiais Criminais, como a composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo. Não obstante a existência de todos estes institutos afastadores da pena de prisão, que podem ser aplicados no caso concreto, o habeas corpus tem sido conhecido e processado normalmente.
A mera existência de um procedimento criminal contra alguém, uma vez detectada a falta de justa causa, já dá ensejo à impetração de habeas corpus, independentemente até mesmo de uma aferição da real ameaça à liberdade de locomoção do acusado. Isto porque, se fôssemos exigir em toda impetração de habeas corpus essa real ameaça à liberdade de locomoção, estaríamos retrocedendo, e muito, no avanço jurisprudencial e doutrinário até aqui alcançado, para só se admitir o remédio heróico em caso de prisão já efetivada ou na iminência concreta de sê-lo (p. ex., com a expedição de mandado de prisão ou ameaça ilegal de prisão por qualquer autoridade), o que de fato, como visto, não ocorre.
Ressurgindo nas últimas décadas através de nomes importantes como Luigi Ferrajoli, e principalmente, o garantismo jurídico vem com grande força abordar temas importantes dentro do Direito Penal, refletindo em profundas alterações na forma de se pensar o Direito Penal vigente, assim como o Processo Penal a ele vinculado.
O sistema garantista visa, justamente, buscar essa efetividade, através da diminuição da discricionariedade e controle de arbitrariedades estatais, além da maximização dos direitos fundamentais.
Assim, quando falta justa causa para o inquérito policial ou processo penal o que se requer com a impetração do habeas corpus é o trancamento do procedimento, já que não há razão para seu prosseguimento. A decisão que resolve pelo trancamento do inquérito policial, ou da ação penal, é sentença meramente processual, com objetivo de impedir a tramitação de procedimento manifestamente ilegal. Logo, não se trata de julgamento antecipado, tampouco se reporta ao mérito material do caso concreto por sua improcedência.
9. CONCLUSÃO
A jurisdição no Estado Democrático de Direito tem escopo principal, no âmbito penal, impor a penalidade adequada àquele que viola alguma norma penal sem contrariar as garantias do direito de liberdade de locomoção do indivíduo. A violação da legislação penal se configura com a verificação de uma conduta típica, antijurídica e culpável, elementos necessários para provocação da jurisdição pela denúncia, por parte do Ministério Público, ou pela queixa-crime por parte do ofendido, respeitada as legitimidades ad causam.
Em algumas situações, é imprescindível a instauração de um inquérito policial para apuração da conduta do agente, bem como levantamento de acervo probatório relativo ao fato delituoso. Não obstante, para o oferecimento da denúncia ou queixa-crime, imprescindível a demonstração de elementos mínimos que justifiquem a justa causa do petitório, sob pena de inépcia e, conseqüentemente, sua rejeição.
Os elementos de convicção que compõe o mínimo necessário para justificar a existência do inquérito policial, bem como a instauração de ação penal, são necessários tendo em vista que são procedimentos que constrangem o indiciado/acusado, possibilitando, assim, a impetração de habeas corpus, à inteligência do art. 648, I, do Código de Processo Penal.
A jurisdição penal não pode ser encarada de forma imperativa, onde o agente seria imediatamente processado, visando à punição, quando constatado o desrespeito à norma penal. O ordenamento jurídico brasileiro, pelas suas normas penais repressivas por natureza, objetiva alcançar a ressocialização do culpado pela infração penal, como forma de manutenção do equilíbrio social e não, simplesmente, sua punição.
Para provocação da jurisdição faz-se necessário a existência de indícios razoáveis de autoria e prova da materialidade delitiva, consubstanciada pelo princípio da ação penal do in dubio pro societate. Para tanto, a denúncia e a queixa-crime não necessitam vir acompanhadas de um convencimento absoluto sobre a existência do crime e de quem foi o agente, pois, presentes os indícios, a sociedade atrai a apuração dos fatos à submissão do Poder Judiciário.
Pela ausência destes indícios razoáveis que decorrem situações que permitem o trancamento do inquérito policial ou da ação penal por meio de habeas corpus processual.
Iniciado o procedimento inquisitório, ou postulatório, há uma ameaça ao estado de liberdade do acusado, vez que, mesmo havendo justa causa, provoca uma mudança significativa no meio social em que vive, pois afeta o seu caráter, sua dignidade e a sua moral. É por tal razão que o Estado necessita de um suporte mínimo de prova da autoria e materialidade do fato praticado para exercer a jurisdição. Assim não sendo, seria ilegítimo o "jus persequendi in judicio" utilizado sem um mínimo de fundamentação ou de provas aptas a viabilizar a ação penal.
Neste sentido, constata-se que a justa causa está intimamente ligada ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da garantia a liberdade. Tratando-se de um Estado Democrático de Direito, cuja Constituição da República visa zelar e resguardar as garantias fundamentais do indivíduo, não se pode permitir que, a qualquer momento e sob quaisquer circunstâncias, estes direitos possam ser violados pelo próprio Estado, através de um procedimento completamente destituído de fundamento razoável, entendido este como um conjunto probatório mínimo.
A falta de justa causa afeta diretamente as condições da ação, viciando o interesse de agir da parte. Logo, ausente uma das condições da ação, demonstrada está à coação ilegal gerado pelo procedimento, o que possibilita o seu trancamento através recurso heróico do habeas corpus processual.
O cabimento do habeas corpus processual não é determinado pelo fato do Paciente não estar preso ou na iminência de o ser, ou seja, prestes a ver sua liberdade agredida por ato ilegal. Contrariamente, é um recurso heróico que, interpretado amplamente, possibilita trancar inquéritos policiais e ações penais manifestamente desprovidos de falta de justa causa.
Com este fundamento que a doutrina e jurisprudência destacam que não bastam denúncia ou queixa-crime encontrar-se tecnicamente perfeita, sendo imprescindível elementos de prova para sua instauração, onde a ausência de justa causa deve ser tratada com a máxima prudência, exclusivamente, para verificar se o procedimento se desvinculou por inteiro dos elementos formadores da sua fundamentação, o que acarretaria uma coação ilegal ao indivíduo.