A vida e a morte, dois extremos, dois opostos, dois fenômenos em cuja seqüência se desenvolve todo o destino do homem, do ser humano considerado como pessoa de direito.
D. Gogliano
RESUMO
A interrupção da gestação nas hipóteses específicas de má formação fetal ocasionada pela anencefalia é uma questão nebulosa no Brasil. Tendo em vista que, nessas circunstâncias, a gravidez é infrutífera, posto que a anomalia torna o feto incompatível com a vida extra-uterina, todos os anos, mulheres buscam o Poder Judiciário no intuito de obter autorização para por fim à gestação. No entanto, nem sempre, a resposta obtida é favorável e o pleito e se arrasta pelas instâncias judiciais por um longo período, prolongando o martírio que as gestantes são obrigadas a suportar. Tendo em vista a indefinição a respeito do assunto, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS interpôs a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, com o fito de obter a declaração do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a interrupção da gestação do feto anencéfalo, analisada à luz dos princípios constitucionais, não deve ser interpretada como uma conduta criminosa, sendo o fato atípico, ante a inviabilidade da vida. Discute-se o tema sob duas perspectivas, quais sejam, uma que considera haver conflito entre os direitos fundamentais, pois o direito a vida do feto entraria em confronto com o direito à saúde física e psíquica da gestante; e outra que entende ser o feto um natimorto e, por isso, não merece o amparo jurídico. O presente estudo objetiva trazer argumentos jurídicos favoráveis à interrupção da gestação do feto anencéfalo e como problema de pesquisa apresenta a seguinte indagação: em casos de anencefalia, intervenção médica com o fim de abreviar a gravidez corresponde a aborto ou antecipação terapêutica do parto? Realizou-se pesquisa bibliográfica, além de consulta a jurisprudências, revistas jurídicas e artigos disponibilizados na internet.
PALAVRAS-CHAVE: Aborto; Anencefalia; Antecipação terapêutica do parto; Interrupção da gestação;
ABSTRACT
The interruption of pregnancy in specifics situations of wrong fetal formation caused by anencephaly is a matter that is nebulous in Brazil. Keeping that in mind, in these circumstances, the pregnancy is fruitless, in reason that the anomaly makes the fetus not compatible with the extra-uterine life. All these years, women search in the Judiciary State for some authorization to end up the gestation. However, not always the answer isn´t good for the women, and the process go further by the instances of the Judiciary, taking a plenty of time, prolonging the martyr of the pregnant by forcing to support this situation. Knowing the indefinable about this, the National Confederation of Health Workers interpose the ADPF n. 54, looking for obtain a declaration from the Federal Supreme Court that the interruption of pregnancy in case of anencephaly, visualized by the constitutional principles, shall not be analyzed as crime, in view of the unfeasible of life. There´s a debate of this situation about two perspectives, which is, one that consider to have a conflict between the fundamental rights, as the right to be alive of the fetus and the right of physical and psychological health of the woman; the other one see the fetus as a dead-born and, because of that, doesn´t deserves judicial support. The present study tries to bring judicial arguments propitious to the interruption of the gestation, in cases of anencephalic fetus, and, as a research problem, show the question: in these anencephaly cases, medical intervention designing to abbreviate the pregnancy would correspond to an abortion or to a therapeutics anticipation of the parturition? I´ve realized bibliographic research, over and above to jurisprudence, magazines and a judicial article consults visualized on the internet.
KEY WORDS: Abortion; Anencephaly; Therapeutics anticipation of the parturition; Fundamental rights; Interruption of pregnancy
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. CAPÍTULO I – CONSIDERAÇÕES GERAIS A RESPEITO DO ABORTO. 1.1 Conceito. 1.2 Abordagem histórica no Brasil. 1.3 Crime de aborto. 1.3.1 Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento. 1.3.2 Aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante. 1.3.3 Aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante. 1.3.4 Excludentes da ilicitude. CAPÍTULO II – ANENCEFALIA. 2.1 Conceito e diagnóstico. 2.2 Prognóstico e a interrupção da gravidez. 2.3 A anencefalia no Brasil. 2.3.1 Divergência jurisprudencial. 2.3.2 Influência religiosa. 2.3.3 O caso Gabriela Oliveira. CAPÍTULO III – DIREITOS FUNDAMENTAIS . 3.1 Direito à vida e sua inviolabilidade. 3.2 Princípio da dignidade da pessoa humana. 3.3 Direito à saúde. 3.4 Conflito entre direitos fundamentais. CAPÍTULO IV – INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO DO FETO ANENCÉFALO. 4.1. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. 4.2. Atipicidade da conduta. 4.3. A decisão do Supremo Tribunal Federal. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
Há anos o Poder Judiciário lida com a polêmica questão do aborto em casos de anencefalia, anomalia congênita que causa má-formação fetal e torna inviável a vida extra-uterina. A doença é diagnosticada ainda no início da gravidez, quando a gestante tem a notícia devastadora de que o feto poderá morrer em seu ventre ou, na eventualidade do nascimento, terá sobrevida de apenas algumas horas.
Diante do prognóstico desanimador, muitas mulheres sofrem com graves transtornos psicológicos, chegando, em alguns casos, a um quadro de depressão profunda, além de terem a saúde física abalada em decorrência da gestação. Por esses motivos, são frequentes os pleitos judiciais de interrupção da gestação. Todavia, como a legislação é omissa a respeito e não há consenso entre os magistrados sobre o assunto, observa-se a desinteligência de julgados.
Nesse contexto, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) interpôs a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. A ação tem por finalidade obter o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de que os arts. 124, 126, caput, e 128, do Código Penal sejam interpretados em conformidade com os princípios constitucionais. Desse modo, a conduta do médico que, a pedido da gestante, põe fim a gravidez de feto com anencefalia não mais seria considerada típica.
No presente trabalho, busca-se trazer argumentos favoráveis à interrupção da gestação do feto anencéfalo. Nosso objetivo é demonstrar que, em hipóteses tais, não se trata de aborto, mas antecipação terapêutica do parto. Examina-se a questão de acordo com argumentos científicos, precisamente das áreas médica e jurídica, desvencilhando-se do plano metafísico da discussão. A técnica utilizada para a pesquisa é a bibliográfica, a consulta de doutrinas, legislações, jurisprudências, revistas jurídicas, além de artigos disponibilizados na internet.
Outrossim, contempla-se duas vertentes acerca da temática. A primeira, que considera haver conflito entre direitos fundamentais, pois, de um lado, estaria o direito a vida do feto, de outro, o direito à saúde física e psíquica da gestante; e a segunda, que entende não ser o nascituro merecedor de amparo jurídico, ante a inviabilidade de sua vida extra-uterina.
Para um melhor desenvolvimento do tema, dividiu-se o trabalho em quatro capítulos. O primeiro abrange as considerações gerais a respeito do aborto, trazendo seu conceito, além de fazer uma abordagem histórica. Observa-se a trajetória do crime de aborto de acordo com as diversas leis vigentes em nosso país a partir da Constituição brasileira de 1824, incluindo a legislação que rege o tema contemporaneamente.
No segundo, busca-se compreender em que consiste a anencefalia e quais as implicações dessa anomalia, além de relatar como a jurisprudência brasileira se posiciona em relação ao feto anencéfalo. Demonstra-se que, embora o Brasil seja um país laico, encontramos forte influência religiosa nos pronunciamentos judiciais que denegam o pleito de autorização da interrupção da gestação nessas hipóteses de vida extra-uterina inviável. Analisa-se ainda o caso Gabriela Oliveira.
No terceiro capítulo aborda-se os direitos fundamentais em espécie relacionados ao tema, assim como a forma de solucionar as colisões existentes entre os direitos do feto e os da gestante. No último capítulo, faz-se uma análise de argumentos que levam à conclusão da atipicidade da conduta na interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. Finalmente, realiza-se uma reflexão sobre a possível decisão a ser tomada pelo STF na ADPF nº 54.
CAPÍTULO I – CONSIDERAÇÕES GERAIS A RESPEITO DO ABORTO
O Direito, na medida em que orienta o desenvolvimento das relações entre os indivíduos, busca, dentre outras finalidades, a ordenação social. Para isso, faz-se necessário a proteção preliminar da vida. Nesse passo, a existência humana se mostra como o fenômeno desencadeador de todas as demais relações jurídicas, lícitas ou ilícitas, que o homem, enquanto célula do tecido social, pode desenvolver.
Como constatação de que o referido bem jurídico se encontra no topo da escala de valores da sociedade, verificamos sua tutela mesmo nos estágios iniciais. Assim, o ordenamento jurídico brasileiro protege, nos arts. 124 a 127 do Código Penal (CP) a vida intra-uterina, com a vedação ao aborto voluntário. Conforme veremos no presente capítulo, essa é uma prática que sempre foi condenada pelas leis vigentes no Brasil ao longo dos séculos.
1.1 CONCEITO
De modo bastante amplo, o aborto pode ser explicado como sendo a interrupção da gravidez antes que esta possa chegar ao seu termo final. O abortamento criminoso, segundo Tardieu, ocorrerá quando o produto da concepção for expulso do ventre materno de modo violento e prematuro. Para o autor, não é necessário considerar as circunstâncias de idade, viabilidade ou regular formação. [01] Depreende-se que, de acordo com a concepção do autor, mesmo não havendo vida, como no caso em que se tem uma gestação molar, formando a mola hidatiforme [02], existe aborto. Logo, esta não parece a conceituação mais apropriada.
Já para Carrara, "aborto criminoso é a morte dolosa do ovo no alvéolo materno, com ou sem expulsão, ou a sua expulsão violenta seguida de morte". Não existe, contudo, uma definição de aborto imune a críticas. A Medicina Legal não traz diferenciação entre ovo, embrião ou feto. Assim, ocorrendo a interrupção da gestação, com a morte do ser em formação, restará configurado o aborto. Se tal fato for decorrência de ação dolosa, haverá crime.
Também há discussão quanto à terminologia a ser utilizada, se aborto ou abortamento. O primeiro termo corresponde ao produto expelido da cavidade uterina ou abortado, enquanto o segundo traduz o próprio ato, sendo o processo de ameaça à gravidez, que pode culminar no fim desta ou não. No presente trabalho, empregaremos ambos como sinônimos para designar a conduta voluntária voltada para de destruição e expulsão do feto.
1.2 ABORDAGEM HISTÓRICA NO BRASIL
Com o advento da Constituição brasileira de 1824, que previa, em seu art. 179, a criação de uma legislação penal, tornou-se necessária a elaboração do Código Criminal do Império. A nossa primeira carta constitucional, no referido dispositivo, assim dispunha: "XVIII. Organizar–se-ha quanto antes um Codigo Civil, e Criminal, fundado nas solidas bases da Justiça, e Equidade".
Com efeito, o preambular Código Criminal brasileiro foi sancionado em 1830, por Dom Pedro I. Até então, vigorou no nosso país, por mais de dois séculos, o Direito português. Segundo Cesar Roberto Bitencourt, a lei penal lusitana era severa, estabelecendo sanções bastante cruéis, como a pena de morte, açoite, amputação de membros, dentre outras. [03]
O Código de 1830, em seus artigos 199 e 200, no capítulo relativo aos crimes contra a segurança da pessoa e da vida, já criminalizava a prática do aborto voluntário. Todavia, o auto-aborto não era punido; apenas o terceiro que o provocava, com ou sem o consentimento da gestante, poderia sofrer as sanções da lei. As penas seriam mais gravosas, caso o responsável fosse dotado de conhecimentos na área da saúde. Vejamos:
Art. 199. Occasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou exteriormente com consentimento da mulher pejada.
Penas - de prisão com trabalho por um a cinco annos.
Se este crime fôr commettido sem consentimento da mulher pejada.
Penas - dobradas.
Art. 200. Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaesquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique.
Penas - de prisão com trabalho por dous a seis annos.
Se este crime fôr commettido por medico, boticario, cirurgião, ou praticante de taes artes.
Penas - dobradas.
No período da República brasileira, foi aprovado o Código Republicano de 1890, que derrogou a legislação anterior e permaneceu em vigor até o ano de 1932. Como no Código Criminal do Império, havia uma diferenciação quando o sujeito ativo do crime de aborto possuísse conhecimentos específicos, pois o novo diploma punia mais gravemente o aborto provocado por médico ou pessoa habilitada na medicina, além de estabelecer privações para o exercício da referida profissão, antes não previstas.
A lei republicana também trouxe outras inovações, tipificando a prática do auto-aborto. Por outro lado, possibilitava a redução da pena, caso o crime fosse cometido para ocultar desonra. Ademais, com o novo Código, introduziu-se no ordenamento jurídico brasileiro o aborto legal ou necessário. In verbis:
Art. 300. Provocar abôrto, haja ou não a expulsão do fructo da concepção:
No primeiro caso: – pena de prisão cellular por dous a seis annos.
No segundo caso: – pena de prisão cellular por seis mezes a um anno.
§ 1º Si em consequencia do abôrto, ou dos meios empregados para provocal-o, seguir-se a morte da mulher:
Pena – de prisão cellular de seis a vinte e quatro annos.
§ 2º Si o abôrto for provocado por medico, ou parteira legalmente habilitada para o exercicio da medicina:
Pena – a mesma precedentemente estabelecida, e a de privação do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação.
Art. 301. Provocar abôrto com annuencia e accordo da gestante:
Pena – de prissão cellular por um a cinco annos.
Paragrapho unico. Em igual pena incorrerá a gestante que conseguir abortar voluntariamente, empregado para esse fim os meios; e com reducção da terça parte, si o crime for commettido para occultar a deshonra propria.
Art. 302. Si o medico, ou parteira, praticando o abôrto legal, ou abôrto necessario, para salvar a gestante de morte inevitavel, occasionar-lhe a morte por impericia ou negligencia:
Pena – de prisão cellular por dous mezes a dous annos, e privação do exercicio da profisão por igual tempo ao da condemnação.
Posteriormente, em 1937, durante o Estado Novo, foi apresentado um projeto de Código Criminal. No ano de 1940, sancionou-se o Código Penal que hoje conhecemos. Como sabemos, a atual legislação, do mesmo modo que as anteriores, continua a considerar crime a prática do aborto voluntário, tema que será analisado de acordo com o ordenamento vigente no item a seguir.
1.3 CRIME DE ABORTO
O Código Penal vigente no Brasil, no Capítulo I – DOS CRIMES CONTRA A VIDA -, criminaliza, no art. 124, a prática do auto-aborto e o consentimento da gestante para que terceiros realizem o abortamento. Os arts. 125 e 126, tipificam o aborto provocado por terceiro, sem e com o consentimento da gestante, respectivamente. Por fim, o art. 128 abrange as hipóteses taxativas nas quais é possível realizar o abortamento sem que tal conduta seja criminosa, pois são causas de exclusão da ilicitude, ante a peculiar situação que a gestante se encontra. Vejamos a redação legal:
Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena - detenção, de um a três anos.
Aborto provocado por terceiro
Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de três a dez anos.
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.
(...)
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Em qualquer das hipóteses delitivas acima citadas, para a consumação do crime de aborto, devem ser observadas algumas condições, a saber, o dolo do agente, elemento subjetivo do crime, consistente na intenção de destruir o produto da concepção, vez que não há previsão da modalidade culposa; a gestação, pois sua ausência configuraria crime impossível; as manobras abortivas, sem as quais não se poderia falar em uma conduta voluntariamente dirigida para a interrupção gravidez; e a morte do feto ou embrião, representando o resultado naturalístico do delito.
Logo, o aborto se consuma com a eliminação do ser em formação, que se dará ainda no ventre materno ou após sua expulsão. Contudo, em virtude da exigência de que esteja presente na ação criminosa o nexo de causalidade, elo entre a conduta do agente e o resultado ocorrido, para que o fato seja típico, a morte deve ser decorrente das manobras abortivas empregadas. Não basta que o produto da concepção tenha perecido, é imprescindível a relação de causa e efeito, ou estaremos diante de uma tentativa ou de crime impossível.
1.3.1 ABORTO PROVOCADO PELA GESTANTE OU COM SEU CONSENTIMENTO
O Código Penal prevê punição para a mulher que, consciente de sua gravidez, pratica atos lesivos ou permite que terceiros os pratique, interrompendo a gestação, posto que se busca tutelar a vida intra-uterina e coibir ação dolosa que atente contra a integridade do feto ou embrião. Assim, no seu art. 124, encontramos duas espécies de condutas criminosas.
A primeira parte do retro-citado dispositivo trata do auto-aborto, que ocorre quando a própria mulher, desejando por fim à gravidez, emprega expedientes abortivos em si mesma, sejam eles químicos ou físicos, e mata o ser em desenvolvimento em seu útero. Todavia, o delito também é punido nos casos de tentativa, em que, embora os meios utilizados tenham eficácia para interromper a gestação, o crime não se consuma, contrariando a vontade da gestante.
Em se tratando do auto-aborto, a lei penal, prioritariamente, busca punir a mulher que realiza tal conduta criminosa. Por se tratar de um delito de mão própria, não podendo ser delegado a outrem a execução, somente é cabível o concurso de pessoas se um terceiro age como partícipe, fornecendo incentivos morais ou materiais, de modo co-adjuvante. Assim se posiciona Fernando Capez
É possível a participação nessa modalidade delitiva, na hipótese em que um terceiro apenas induz, instiga ou auxilia, de maneira secundária, a gestante a provocar o aborto em si mesma, por exemplo, indivíduo que fornece os meios abortivos para que o aborto seja realizado. Nessa hipótese, responderá pelo delito do art. 124 do CP a título de partícipe. [04]
A segunda parte do art. 124 abrange a situação da gestante que, embora não atue diretamente para a prática do aborto através da execução material do crime, assente o abortamento. Aqui a mulher é punida, não por interromper a gestação, mas por permitir que alguém o faça em seu lugar. O terceiro que realiza a conduta responderá de acordo com o art. 126. Do mesmo modo que o auto-aborto, essa é uma conduta personalíssima, somente podendo a mulher grávida decidir se quer destruir o produto da concepção.
A respeito do concurso de pessoas nessa hipótese, Fernando Capez esclarece
Pode haver concurso de pessoas na modalidade de participação, quando, por exemplo, alguém induz a gestante a consentir que terceiro lho provoque o aborto. Jamais poderá haver co-autoria, uma vez que, por se tratar de crime de mão própria, o ato permissivo é personalíssimo e só cabe à mulher. [05]
1.3.2 ABORTO PROVOCADO POR TERCEIRO SEM O CONSENTIMENTO DA GESTANTE
No art. 125, se enquadra aquele que, sem a permissão da gestante, pratica o aborto. O crime pode ocorrer por meio de fraude, violência, grave ameaça, simulação, dissimulação, ardil. Haverá ausência de consentimento real quando a mulher tem capacidade para consentir o abortamento, mas se mostra contrária a sua prática. Já nos casos de ausência de consentimento presumido, pode até haver a permissão, mas a gestante não tem capacidade para tanto, pois é menor de 14 anos, alienada ou débil mental.
O que se percebe é a necessidade do dissentimento para que haja a adequação típica, pois este é elemento essencial do tipo, de tal forma que a concordância da mulher capaz impede a configuração do delito em tela. Entretendo, ainda assim, estará presente uma conduta criminosa, mas haverá deslocamento para a figura constante no art. 126.
1.3.3 ABORTO PROVOCADO POR TERCEIRO COM O CONSENTIMENTO DA GESTANTE
No aborto consensual, há concurso necessário de crimes. Na medida em que o agente responsável pela interrupção da gravidez se enquadrará no delito descrito no art. 126, por provocar aborto com o consentimento da gestante. Esta, bem como já foi afirmado anteriormente, tem sua conduta permissiva amoldada ao crime do art. 124, ab initio, por consentir a prática.
Há então exceção ao art. 29 do Código Penal, pois o dispositivo estabelece que "quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade". Esta é a teoria monística, por meio da qual, todos que tomam parte a prática delituosa respondem pelo mesmo crime. Isto é, por medida de política criminal, embora vários sejam os agentes da conduta delitiva, trata-se de um crime único e indivisível. É a regra estabelecida em nossa legislação.
Em contraste com este entendimento, estão os arts. 124 e 126, como explica Cezar Roberto Bitencourt
Essa exceção à teoria monística, no crime de aborto consensual, fundamenta-se no desnível do grau de reprovabilidade que a conduta da gestante que consente no aborto representa em relação à daquele que efetivamente pratica o aborto consentido. Com efeito, a censura da conduta da gestante que consente, na ótica do legislador, é consideravelmente inferior à conduta do terceiro que realiza as manobras abortivas consentidas. [06]
1.3.4 EXCLUDENTES DE ILICITUDE
Como se sabe, quanto à caracterização do crime, o Brasil adotou a teoria da indiciariedade. Assim, praticado um fato típico, passa a incidir sobre ele a presunção de que também é ilícito. Ou seja, a ação e a omissão típicas, de acordo com uma análise perfunctória, por estarem descritas como crime pela lei penal, são dotadas de ilicitude, sendo contrárias a um determinado comando legal.
Segundo esse raciocínio, o médico que realiza um aborto para salvar a vida da gestante ou interrompe uma gravidez decorrente de estupro, em um primeiro momento, está cometendo um delito. O fato por ele praticado, além de típico, é presumidamente ilícito. Contudo, tendo em vista que o Código Penal, em seu art. 128, incisos I e II, permite tais condutas, não há que se falar na ocorrência de crime. O médico, nessas hipóteses taxativas, está acobertado por causas de justificação ou excludente de ilicitude.
No inciso I, encontra-se o aborto terapêutico ou necessário, que constitui estado de necessidade, pois o médico, com o fito de salvar a vida da gestante, emprega o único meio ao seu alcance, qual seja, o abortamento. Com efeito, para que o aborto não seja punido, devem estar presentes, cumulativamente, o iminente perigo à vida da gestante e a inexistência de outro procedimento apto evitar a sua morte, ou o médico responderá por crime. Genival Veloso de França elenca os requisitos desta espécie de abortamento:
1 – a mãe apresenta perigo vital; 2 – este perigo esteja sob a dependência direta da gravidez; 3 – a interrupção da gravidez faça cessar este perigo para a vida da mãe; 4 – este procedimento seja o único meio capaz de salva a vida da gestante; 5 – sempre que possível, com a confirmação ou concordância de outros dois colegas. [07]
Por outro lado, se as manobras abortivas empregadas visarem apenas resguardar o bem-estar da gestante, não havendo perigo atual e iminente para a vida desta, restará descaracterizado o estado de necessidade. Como ensina Bitencourt, "a necessidade não se faz presente quando o fato é praticado para preservar a saúde da gestante ou para evitar desonra pessoal ou familiar". [08] Destarte, o ordenamento jurídico somente permite o aborto em circunstâncias extremas.
Já no inciso II temos o aborto humanitário, sentimental ou ético, verificado em situações nas quais as vítimas de estupro engravidam em decorrência de relação sexual mantida, por meio de violência ou grave ameaça, com o criminoso. Para sua realização, não é preciso autorização judiciária, basta que a gestante prove ao médico a ocorrência do crime de estupro por qualquer meio, a exemplo da existência de inquérito policial, exame de corpo de delito, processo judicial relativo ao crime.
Antes de realizar o procedimento, o médico deve ter cautela, no sentido de se certificar de que tais alegações sejam verídicas. Outrossim, exige-se prévio consentimento da gestante ou, se a vítima do crime for incapaz, autorização dada por seu representante legal. Em hipótese alguma, essa permissão pode ser prescindida.