3. A PRIVATIZAÇÃO
O termo privatizar a rigor significa trazer algo anteriormente público para o setor privado, particular. Para melhor compreensão deste fenômeno será analisada a questão neoliberal na qual ele se insere. Veremos ainda sua chegada ao Brasil, passando pela observação dos modelos de terceirização e pelo modelo das parcerias público privados (PPP's), usualmente encontrados nas penitenciárias brasileiras.
3.1 A Política Neoliberal
Como se sabe, a manutenção do Estado de Previdência nos países desenvolvidos se mostrou incompatível com a economia de mercado do mundo globalizado. Principalmente a partir da década de 80 com fortalecimento do neoliberalismo econômico o Estado tem se reservado o papel de regulador da economia, não se imiscuindo diretamente nas atividades econômicas. Em consequência, a iniciativa privada vem se responsabilizando por uma parcela cada vez maior de atividade até então prestadas pelo poder público.
Essa nova ideologia tem suas raízes na corrente econômica do movimento conhecido como Escola de Chicago, assim chamada por ter sido forjada na Universidade de Chicago, reduto dos mais ferrenhos defensores do livre mercado. Ela foi um espécie de contra-revolução, em referência à sua oposição às ideias keynesianas que lastrearam a formação do Estado de bem estar social. Já nos anos 70, as influências desse ideário se faziam sentir de forma veemente na América Latina. O Chile, após o golpe militar que levou Pinochet ao poder, pondo fim, de forma brutal, o governo social democrático de Salvador Allende, passou a implementar em sua economia medidas oriundas das ideias da Escola de Chicago.
Contudo, a mais conhecida expressão dessa transição foi o "Thatcherismo". Expressão que designa as políticas defendidas pelo Partido Conservador britânico, desde que Margaret Thatcher foi eleita líder do partido, em 1975, e, posteriormente, o estilo do governo Thatcher, no período em que foi primeira-ministra (1979-1990).
O "Thatcherismo" é um modelo de política econômica caracterizado pela redução da intervenção do Estado na economia, pela exaltação das virtudes do livre-mercado e dos méritos da "ordem espontânea". Há ainda o alinhamento a uma política econômica monetarista, nos moldes da Escola de Chicago, bem como a defesa das privatizações de empresas estatais; pela redução dos impostos diretos (ou progressivos, como o imposto sobre a renda e os impostos sobre as propriedades) e pelo aumento dos impostos indiretos (ou regressivos, como os impostos sobre o consumo).
Finalmente, e de modo mais radical, o "Thatcherismo" chega a advogar o combate aos sindicatos de trabalhadores além da eliminação do salário mínimo e de outros direitos trabalhistas, com a consequente redução do chamado Estado do bem-estar social.
O ideal neoliberal espalhou-se por todo o globo tendo sido amplamente implementado nos EUA no período Ronald Reagan (1981-1989). Na mesma época do desenvolvimento do setor privado no sistema prisional.
É inegável que a violência e a criminalidade, ou melhor, a criminalização, avançaram em grande parte como consequência desse novo Estado neoliberal que propõe menos políticas públicas e sociais e mais ações policiais e penitenciárias. Conforme Wacquant [30] assinala, haveria a emergência de um Estado Penitenciário.
De sorte que, é possível compreender as influências do momento político-econômico e os reflexos privatizantes em diversos setores tradicionalmente ocupados pelo setor público. Naturalmente que na área da segurança pública, em especial no que concerne às prisões, tais influências também se fizeram sentir.
Feitas tais considerações, passamos à analise da participação dos atores privados no sistema prisional. Para melhor compreensão do tema, o mesmo será abordado a partir dos principais modelos privatizantes já implementados no mundo. Será observado o grau de participação do setor privado no sistema prisional em cada caso. Pois, como é sabido, a sua participação na administração dos presídios se dá em níveis variados.
Há modalidades em que a iniciativa privada tão somente financia a construção de novas instalações, em outras ocorre também a administração do trabalho prisional, e a prestação de serviços penitenciários específicos, como alimentação, assistência médica etc, como existem contratos que estabelecem a administração integral do presídio.
Em verdade, a primeira idéia sobre a participação de particulares na administração de presídios partiu de Jeremy Bentham, em 1834, na Inglaterra. O modelo criado foi o panóptico, uma construção circular que permitiria o que se chamou de inspeção total sobre os presos, conforme o próprio autor definiu:
O edifício é circular. Os apartamentos dos prisioneiros ocupam a circunferência. Você pode chamá-los, se quiser, de celas. Essas celas são separadas entre si e os prisioneiros, dessa forma, impedidos de qualquer comunicação entre eles, por partições, na forma de raios que saem da circunferência em direção ao centro [...] O apartamento do inspetor ocupa o centro; você pode chamá-lo, se quiser, de alojamento do inspetor. [...] Cada cela tem, na circunferência que dá para o exterior, uma janela, suficientemente larga não apenas para iluminar a cela, mas para, através dela, permitir luz suficiente para a parte correspondente do alojamento. A circunferência interior da cela é formada por uma grade de ferro suficientemente firme para não subtrair qualquer parte da cela da visão do inspetor. [...] Para impedir que cada prisioneiro veja os outros, as partições devem se estender por alguns pés além da grade, até a área intermediária [...] As janelas do alojamento devem ter venezianas tão altas quanto possa alcançar os olhos dos prisioneiros – por quaisquer meios que possam utilizar – em suas celas. [...] um pequeno tubo de metal deve ir de uma cela ao alojamento do inspetor [31].
O intuito de Bentham era a geração de lucros para os particulares através de contratos de administração de penitenciárias com o Estado, que, em contrapartida, ao privatizarem esse serviço, reduziriam seus custos. Na ocasião, entretanto, esta proposta, essencialmente mercantilista, não foi aceita pelo Governo inglês.
3.2 Influência no Brasil
No Brasil é antiga a crítica ao crescimento demasiado da máquina pública. A criação excessiva das empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações para a assunção de atividades que nada têm a ver com os interesses da coletividade dificultam o controle interno finalístico, tornando o Estado praticamente ingovernável.
As modificações no campo econômico, anteriormente assinaladas, foram fazendo com que o Estado fosse perdendo progressivamente sua capacidade de investimentos, de forma a comprometer a qualidade dos serviços públicos. Daí, porque já há muito fala-se da necessidade de uma reengenharia do Estado para reduzir sua participação em funções públicas não essenciais podendo assim prestar com maior eficiência suas atividade básicas [32].
Nessa linha, foi promulgada a lei 8031, de 1990, instituindo o Plano Nacional de Desestatização, alterado pela lei 9491, de 1997 e pela MP 2161-35, de 2001. Em seu artigo 1º o Plano define seus objetivos fundamentais, quais sejam: reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público; contribuir para a reestruturação econômica do setor público, reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público; contribuir para a reestruturação econômica do setor público, especialmente através da melhoria do perfil e da redução da dívida pública líquida; permitir a retomada de investimentos nas empresas e atividades que vierem a ser transferidas à iniciativa privada; contribuir para a reestruturação econômica do setor privado, especialmente para a modernização da infra-estrutura e do parque industrial do País, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia, inclusive através da concessão de crédito; permitir que a Administração Pública concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para a consecução das prioridades nacionais; e contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais, através do acréscimo da oferta de valores mobiliários e da democratização da propriedade do capital das empresas que integrarem o Programa.
Entende-se por desestatização, a transferência para a iniciativa privada da execução de serviços públicos explorados pela União direta ou indiretamente. Observando que esta transição será sempre precedida de licitação, realizada por meio de concessão, permissão ou autorização.
3.3 Terceirização
Esta modalidade de participação no setor privado na economia permite às empresas e ao poder público repassarem ao particular tarefas secundárias de sua atividade, possibilitando a transformação de um custo fixo em custo variável bem como permitindo uma maior convergência de esforços da empresa ou do ente público em torno de sua atividade fim.
A terceirização tem sido meio hábil largamente utilizado pelos gestores públicos nas mais diversas instâncias. Via de regra, recorre-se a ela com o escopo de adaptar no setor público as práticas originariamente desenvolvidas pelo setor privado. Tais recursos, em tese, podem emprestar flexibilidade às operações, normalmente marcadas pela burocracia e excessiva rigidez nos processos.
A prática da terceirização se insere no contexto neoliberal na medida em que os governos têm procurado se afastar da direção de entidades que atuam no mercado. Assumindo uma posição de regulador das atividades e por consequência cada vez menos provedor direto de serviços.
Essa tendência de aumentar a participação de empresas terceirizadas nas chamadas atividades satélites dos entes públicos tem sido prestigiada pelos gestores no Brasil. Nesta mesma linha é o disposto no artigo 10 do decreto-lei 200/67 que orienta a administração pública no sentido de descentralizar a execução das atividades da administração federal.
Esta descentralização, fundamentada no parágrafo 7º do referido dispositivo, teria a finalidade de melhor desincumbir a administração das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e controle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, de sorte que a administração deverá desobrigar-se da realização material das tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução.
3.4 As PPP's
O instituto das parcerias públicos privadas, consiste em um tipo de contrato na modalidade patrocinada ou administrativa na qual haverá contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado [33].
Em 30 de dezembro de 2004, através da lei de n° 11.079, fundamentou-se a Parceria Público Privada, conceituada como "contrato administrativo de concessão, na forma administrativa ou patrocinada". Devido a esta legislação, houve a regulamentação de forma mais precisa dos procedimentos da contratação.
No artigo segundo da lei das PPP's, são apresentadas duas modalidades de contrato administrativo de concessão, que podem se dar na forma patrocinada ou administrativa. Sendo que a primeira é aquela em que, ao prestar o serviço público, é permitido ao particular cobrar uma tarifa dos usuários do serviço prestado, bem como uma contraprestação orçamentária do parceiro público ao parceiro privado. Já o contrato de concessão administrativa que é aquele em que não é exigida nenhuma tarifa do cidadão pelo uso do serviço, pois o parceiro privado presta o serviço e é remunerado diretamente pela administração pública.
As PPP's nos presídios constituem-se em concessão administrativa. Ocorre repasse financeiro do Estado, sem cobrança de tarifa do "usuário"do serviço que é o preso. Obviamente que o preso não é um típico usuário já que não lhe é dada esta opção de usar ou não o sistema. O detento é não apenas um usuário forçado, compelido, mas também um "beneficiário" dos serviços públicos internos e destinatário de outros serviços públicos como vigilância, segurança, monitoramento.
Sendo, desta feita, detentor de direitos fundamentais perante o Estado, resulta, em tese, a possibilidade de o preso reivindicar os padrões de qualidade, segurança, higiene, saúde. No Brasil, o modelo de parcerias, no que respeita às prisões, é semelhante ao da França, que possui aproximadamente 15% dos presídios sob administração conjunta [34].