Na vida, não existem soluções. Existem forças em marcha: é preciso criá-las e, então, a elas seguem-se as soluções.
Antoine de Saint-Exupéry
É fundamentalmente importante entender o surgimento da Improbidade Administrativa como um fator cultural, produto de um determinado contexto histórico e social. Parafraseando a Professora Maria do Carmo Leão, "como a cultura do favorecimento no nosso país está muito arraigada, da mesma maneira que levou tempo se solidificando, vai levar tempo para ser exterminada. As coisas tomaram um rumo tal que as pessoas, na sua grande maioria, aceitam com naturalidade a improbidade." 1 Neste ínterim, cumpre analisar as raízes da improbidade como forma de entender o motivo da prática do ato de improbidade ser considerado, muitas vezes, comuns ou naturais. A abordagem do tema será feita de duas maneiras, um breve escorço histórico da origem da improbidade e a compreensão dos indícios práticos da improbidade por meio de uma analogia entre Saint-Exupéry e Maquiavel.
Cada povo reza a antropologia mais óbvia e rasteira de sua respectiva herança cultural. Com o povo brasileiro não foi diferente. A História do Brasil, desde 1500, foi marcada por uma política voltada para suprir os mais diversos interesses. As práticas mercantilistas e a predominância dos interesses econômicos sobre os aspectos religiosos e ideológicos refletiram até no nome definitivo da nossa terra, como protesta o cronista João de Barros: "por artes diabólicas se mudava o nome de Santa Cruz, tão pio e devotado, para o de um pau de tingir panos (Brasil)". 2 O Brasil interessava aos portugueses, inicialmente, por causa do extrativismo do pau-brasil, mas sempre se tendo em vista os metais preciosos.
No período pré-colonial o Brasil era filho do Tratado de Tordesilhas (1494), sendo dividido imaginariamente em razão interesses. Posteriormente o litoral brasileiro foi dividido em faixas lineares, sendo entregues a doze donatários da pequena nobreza, dependentes da máquina burocrática do Estado, eram as chamadas Capitanias Hereditárias. Neste lapso temporal já havia sido estatuído a vintena do pau-brasil e a dízima do quinto real sobre os metais. O Foral funcionava como um código tributário, definindo que a renda dos produtos da terra pertenceria ao donatário e a dos produtos do subsolo, da mata e do mar pertenceria à Coroa. As primeiras manifestações jurídicas do Brasil-Colônia estavam configuradas na doação das capitanias e nas cartas de foral, que era uma forma de suprir interesses imediatos da Coroa. Segundo o Professor Walter Vieira do Nascimento:
As cartas de foral constituíam uma conseqüência e um complemento das de doação; mas estas estabeleciam apenas a legitimidade da posse e os direitos e privilégios dos donatários, ao passo que aquelas eram um contrato enfitêutico, em virtude do qual se constituíam perpétuos tributos a coroa, e dos capitães-mores, os solarengos que recebessem terras de sesmarias. 3
O que se pode constatar é que não houve a preocupação em traçar, para a nova terra, uma política de colonização racional e eficiente. Nas regiões frias e temperadas da América do Norte, ao contrário da nossa colonização, formaram-se as chamadas colônias de povoamento, que receberam o excedente demográfico da Europa e cresceram à semelhança do Velho Mundo, com a economia baseada na pequena propriedade, na produção familiar, na policultura e na relativamente pequena desigualdade social.
O Brasil, como outros países da América do Sul, foi formado pelas chamadas colônias de exploração, isto é, devia existir essencialmente para atender as necessidades empresariais e mercantilistas da sua metrópole. As colônias organizadas dessa maneira formavam áreas complementares da economia central metropolitana. Entretanto, "para que esse Novo Mundo se tornasse um ‘bom negócio’, isto é, para que a exploração das terras recém-descobertas favorecesse a acumulação capitalista, era necessário colonizar, produzir". 4 Assim, mesmo quando ficou constatado que havia a necessidade da produção da agricultura tropical para a valorização das novas terras descobertas, sempre se vislumbrou o suprimento de interesses.
Na História do Brasil os Estados e as burguesias mercantis desenvolviam a concorrência colonialista e o nosso litoral foi palco de disputas entre portugueses, franceses e holandeses, com vistas ao interesse claro e premente. Não obstante ao restante da nossa história, da constante busca do ouro ao império do café, passando-se pela abolição da escravatura, chegando-se à República até o Estado Novo, do Regime Autoritário até a Democracia contemporânea, sempre se constatou a cultura do favorecimento, enraizada desde o Brasil-Colônia. Por isso que este primeiro momento histórico é muito importante, como forma de expurgar a bestialidade do favorecimento e da corrupção do âmago da nossa história moderna. As injustiças profundas, contidas nas desigualdades transmitidas, eram interpretadas como consequência de falhas na organização social, acumuladas durante muitos séculos.
Na realidade a cultura favorecimento era comum, pois a intenção dos portugueses era, inicialmente, demarcar as terras com fito à exploração e proteção contra invasões. Desta maneira não importava como a distribuição da terra era feita entre os portugueses. Também não importava o nepotismo, a expropriação das terras indígenas em nome da cruz e pela espada, não importava o roubo institucionalizado, o furto de ouro nos "santos de pau oco", a corrupção em nome da Coroa, o interesse prioritário dos portugueses transfixava qualquer barreira moral de respeito à cultura já existente na nova terra. Surgia no Brasil, sob os auspícios da Coroa portuguesa, o longo reinado da improbidade, que ficou encravado por muito tempo nas entrelinhas da nossa cultura.
Vale ressaltar, entretanto, que os valores sociais não são eternos, mudam no tempo e no espaço, portanto, buscando a perfeição, o homem altera suas convicções, e aquilo que era normal num dado momento, porque de acordo com as convicções vigentes, se faz ultrapassado, anormal. Uma convicção tida como verdadeira, num dado momento histórico, e, portanto normal, pode ruir com o passar do tempo, sendo substituída por uma nova descoberta, a qual, por sua vez, passa a ter uma aceitação normal.
O direito, como agente transformador da realidade, tem sua grande contribuição para modificação da mentalidade do cidadão brasileiro, pois este estava perdendo a sua capacidade de indignação em face desta nociva herança cultural transmitida (a cultura do favorecimento e da improbidade), "tudo é absurdo, mas nada é chocante, porque todos se acostumam a tudo". 5 Trata-se de característica fundamental do ordenamento jurídico, o dinamismo de seus preceitos, com o escopo de se acompanhar as constantes evoluções nos diversos campos da atividade humana, no sentido de harmonizar os interesses. Em ocorrendo à conduta passiva do legislador diante das alterações quotidianas, as quais, inevitavelmente, a sociedade submete-se, as normas restariam fadadas ao ostracismo.
Urge, agora, analisar as raízes Improbidade Administrativa não do ponto de vista puramente histórico, mas compreendendo os indícios práticos da improbidade, no que diz respeito aos motivos e tendências que levam o indivíduo a praticar atos ímprobos. Para chegar ao resultado almejado buscou-se uma analogia entre "O Pequeno Príncipe" e "O Príncipe", ou seja, as consagradas obras de, respectivamente, Antoine de Saint-Exupéry e Niccolò Machiavelli (Maquiavel), que devido à disparidade ideológica pode configurar a "Teoria da Transmutação" a ser utilizada como instrumento de análise.
O escorço das raízes históricas da improbidade é importante para demonstrar a base propedêutica da Teoria da Transmutação. A priori, tal analogia aparenta ser de cunho bastante simplório e evidente, entretanto, aprofunda-se na compreensão da amplitude prática da improbidade, a qual é demonstrada nas aventuras, venturas e desventuras de um cidadão público em transmutação, relegando a virtude e acolhendo a audácia ímproba.
Suponha-se que um cidadão anseie por uma função pública (lato sensu), podendo considerar esta função pública como advinda de um concurso, de eleições, de atribuições, enfim, da mais diversa forma de ingresso na carreira pública. A inteligência pessoal do indivíduo antes de ser um agente público, mesmo que esteja preparado academicamente, não oferece praticamente nenhum preparo para o torvelinho público ou as oportunidades que trazem as vicissitudes de vida pública. Saber que uma pessoa é proba, antes de ingressar na função pública, é saber apenas que ela é muitíssimo boa no rendimento avaliado por notas e títulos, os quais podem ser interpretados como uma atribuição pública de alta relevância. Surge, então, o "Pequeno Príncipe" da administração pública.
A obra literária "O Pequeno Príncipe", de Saint-Exupéry, é uma fábula que conota várias parábolas de julgamentos morais. "O Pequeno Príncipe", ao contrário do que muitos pensam, não é uma obra dirigida para crianças, mas traz justamente a mensagem da infância como forma de despertar atitudes altruístas. A obra contém metáforas que explicitam a criança virtuosa no descobrimento do mundo no meio do deserto, com uma madura reflexão do que seja certo e errado, como no exemplo a seguir: "É bem mais difícil julgar a si mesmo que julgar os outros. Se consegues julgar-te bem, eis um verdadeiro sábio." 6 Entretanto, a mensagem mais importante desta obra é sobre a importância de cativar: "O essencial é invisível para olhos. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas." 7 A importância de cativar reside no fato da responsabilidade de quem cativa, atribuindo certo ônus moral aos atos dos homens.
O agente público, enquanto Pequeno Príncipe, é o profissional virtuoso, prevenido no julgamento de si mesmo e dos outros, responsável pelo múnus público que cativou. Enfim, trata-se de uma virtude em face do que é público, mesmo que esta virtude seja decorrente de estágio probatório ou da falta de estabilidade no emprego público. O agente público "Pequeno Príncipe" é regido por uma série de princípios deontológicos que norteiam a profissão, fazendo que, em muitos casos, não pratique atos ímprobos.
No interregno temporal da prestação da função pública, o agente público "Pequeno Príncipe" pode sofrer uma transmutação para o "Príncipe". Como tal desenvolvimento fisiológico do ser humano, o agente público muitas vezes cresce, transmuta-se do "Pequeno Príncipe" ao "Príncipe". Não se trata de uma transmutação normal, como na experiência do tempo que arranca a espontaneidade da infância e enraíza a prudência da maturidade, mas uma transmutação viciada por desmandos morais e éticos.
Faz-se, agora, uma analogia ao "Príncipe", famosa obra de Nicolau Maquiavel. Esta obra política suscitou muitas polêmicas, com interpretações problemáticas, debatidas, em certos momentos obscuros e paradoxais. A obra levantou questões fundamentais, como a conquista do poder, a preservação do mandato e os cuidados para não perdê-lo, a obtenção de alianças, negociações e acordos políticos, relações entre Estado e povo, corrupção, nepotismo e favorecimento, bem como outros temas secundários não menos importantes. A ideia do "Príncipe" é bastante conhecida pelo cínico amoralismo traduzido por: "os fins justificam os meios", senão vejamos:
Trate, pois, o príncipe de conservar o poder; os meios serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo sempre se deixa levar pela aparência e pelo resultado das coisas; e no mundo só existe o vulgo e a minoria não tem lugar quando a maioria tem onde se apoiar. Triunfai sempre, pouco importando como, e sempre terás razão. 8
O agente público, enquanto "Príncipe", não mede consequências para alcançar a sua finalidade precípua, qual seja: locupletar-se com o patrimônio público. Utiliza-se inadvertidamente a teoria realista de Maquiavel, que visava implantar uma nova ordem dominada pela liberdade moral e física e capaz de tornar o homem despido de seu natural sentimento de inferioridade, para auferir-se do patrimônio público em detrimento da sociedade. As degenerações eventualmente enfrentadas pela Administração Pública são provocadas pela degeneração da virtude em corrupção, tanto por parte dos agentes públicos, como de parte da população.
A transmutação, invocada nesta teoria, é a forma de degeneração do agente público, que, não contente com o que possui, busca o seu bem no bem muitos, ou seja, a sua ambição causará a corrupção. A finalidade da teoria da transmutação, no entanto, não é apenas evidenciar a degeneração do agente público, mas afirmar o motivo desta degeneração.
A cultura arraigada do favorecimento, alhures demonstrada, explicita parte da origem da improbidade, mas não demonstra o seu sentido prático. Criou-se, então, o entendimento no Brasil de que "quem detém o poder político, detém o poder econômico". Este entendimento incute uma visão distorcida da administração pública, fazendo com que muitos agentes públicos voltem-se contra o patrimônio público. Ora, não se pode negar que, apesar de toda legislação específica, muitos agentes públicos se aproveitam do seu múnus público, por saber que este é de suma importância para a sociedade. Chega-se, então, à distorção entre interesse público e privado, surgindo, o que para muitos não é demérito, a conhecida "Lei de Gérson" , famoso jogador de futebol que, ao fazer uma propaganda comercial, criou um jargão bastante difundido, o conhecido "jeitinho brasileiro", o de querer levar vantagem em tudo.
O "querer levar vantagem em tudo", principalmente se há possibilidade em razão do múnus público adquirido, é causa da Improbidade Administrativa. Acredita-se que os homens nunca estão contentes com o que possuem, principalmente alguns homens públicos, e que a sua ambição causará corrupção, que se espalhará, tornando essencial uma intervenção de órgãos como o Ministério Público, tendência de um país que almeja muito mais do que uma simples transmutação.
Em suma, a Teoria da Transmutação do Pequeno Príncipe no Príncipe tenta evidenciar um pensamento crítico moderno acerca da improbidade na administração pública. Os princípios da administração pública só podem responder às expectativas da realidade numa perfeita harmonia com a universalidade, como a prioridade do bem comum e do interesse público, o equilíbrio das diferenças sociais e a valorização da ética. A administração pública que se impõe hodiernamente é reivindicadora de transformações, as quais só poderão ser executadas com a constante vigilância epistemológica da própria sociedade.
Referência Bibliográfica
ALENCAR, Francisco; RAMALHO, Lúcia Carpi & RIBEIRO, Marcus Venício Toledo. História da Sociedade Brasileira. 13 ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Ao Livro Técnico, 1996.
BERMAM, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar – A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
LEÃO, Maria do Carmo. A improbidade administrativa. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 30, 1 abr. 1999. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/360>. Acesso em: 8 jun. 2011.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe: com notas de Napoleão Bonaparte. 2 ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.
NASCIMENTO, Walter Vieira do. Lições de História do Direito. 8ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1996.
SAINT-Exupéry, Antoine de. O Pequeno Príncipe. Rio de Janeiro: Editora AGIR, 1987.
Notas
. LEÃO, Maria do Carmo. A improbidade administrativa. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 30, 1 abr. 1999. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/360/a-improbidade-administrativa>. Acesso em: 8 jun. 2011.
. BARROS, João de. Apud ALENCAR, Francisco; RAMALHO, Lúcia Carpi & RIBEIRO, Marcus Venício Toledo. História da Sociedade Brasileira. 13 ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Ao Livro Técnico, 1996, p. 16.
. NASCIMENTO, Walter Vieira do. Lições de História do Direito. 8ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1996, p. 222.
. ALENCAR, Francisco; RAMALHO, Lúcia Carpi & RIBEIRO, Marcus Venício Toledo. Op. Cit., p. 27.
. BERMAM, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar – A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 17.
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. SAINT-Exupéry, Antoine de. O Pequeno Príncipe. Rio de Janeiro: Editora AGIR, 1987, p. 41.
. SAINT-Exupéry, Antoine de. Op. Cit., Pág. 74.
08. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe: com notas de Napoleão Bonaparte. 2 ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 115.