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A decisão do STF, o princípio constitucional da igualdade e a vedação de discriminação.

O afeto como paradigma norteador da legitimidade das decisões judiciais. A família contemporânea e sua nova formatação

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Agenda 16/09/2011 às 15:57

6. A FAMÍLIA RECONSTRUÍDA E REPERSONALIZADA NA INDIVIDUALIDADE DE SEUS MEMBROS.

Proteger a dignidade do ser humano é, possivelmente, a mais nobre função do Direito.

Pietro Perlingieri

A família migrou da configuração de um modelo hierarquizado matrimonial e patriarcal, com seu ápice no liberalismo, para um modelo típico da sociedade pós-industrial, que, da mesma forma, também não mais atende a uma perspectiva democrática e humana, tal como reivindicada na atualidade. Configura-se, dessa forma, a crise consubstanciada exatamente no fato de que os modelos existentes já não atendem às necessidades jurídicas, filosóficas e ideológicas dos tempos atuais, mas, por outro lado, ainda não se dispõe de outra configuração consagrada e aceita socialmente.

De qualquer forma, faz-se mister enfocar a família como instância de transmissão de valores formativos do indivíduo, na construção de sua organização subjetiva, em prol da realização do pressuposto de dignidade humana. Desse modo, supera-se o modelo clássico que entendia a família como ente a ser defendido e a família se encaminha para uma nova visão resultante da miscigenação do público e o privado, que só existe em função dos indivíduos que a compõem.

Essa proposta desfigura a função contratual do matrimônio como forma de construção de um núcleo familiar, priorizando outro paradigma respaldado exatamente na socioafetividade. Em outras palavras, "começam a surgir os sentimentos de igualdade, o que sinaliza um movimento gradual da família-casa em direção à família-sentimental moderna. Tendia-se agora a atribuir à afeição dos pais e dos filhos, sem dúvida tão antiga quanto o próprio mundo, um valor novo: passou-se a basear na afeição toda a realidade familiar" (ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2ª ed. Tradução Dora Flaksman. Rio de Janeiro: LTC, 1981, p. 235).

O estudo da família processa-se atualmente sob o signo da perplexidade, ante as surpreendentes transformações por que tem passado a estrutura familiar na contemporaneidade. De instituição assentada em valores tradicionais e conservadores, hoje é influenciada pela revolução sexual, pelo questionamento dos papéis do homem e da mulher em sociedade, pela desvinculação do ato sexual da função de procriar, pelos avanços tecnológicos que propiciam o prolongamento da vida humana e, principalmente, pelo avanço substancial da tutela das prerrogativas inerentes ao próprio ser humano no plano mundial e pela valorização da individualidade existencial que pretende caracterizá-la como o ninho acolhedor de todas as horas.

A doutrina mais conectada com essa realidade vem observando que:

Ressignificar a família na função balizadora do périplo existencial é um imperativo nos dias que correm; reposicioná-la como guardiã de nossas identidades pessoais é condição sine qua non para a superação das ansiedades confusionais a que se está sujeito pelas características competitivas do mundo de hoje; revitalizá-las com o aporte de novas e mais satisfatórias modalidades de relacionamento entre seus membros é indispensável para se seguir aperfeiçoando a convivência humana; por fim, repensá-la é tarefa a ser por todos compartida, por sua transcendência com a condição humana. (ZAMBERLAM, Cristina de Oliveira. Os novos paradigmas da família contemporânea: uma perspectiva interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 150).

Mesmo admitindo que o indivíduo, pela importância transcendental, deve ser considerado e valorizado consigo próprio, independentemente de estar envolvido em qualquer relacionamento (de ordem familiar, de negócios, profissional etc.) com outro, não se pode negar, no entanto, que é exatamente no contexto da socialidade que surgem os conflitos de interesses. Mas se pretende demonstrar que, independentemente desse relacionamento, o homem existe e compete consigo mesmo, no sentido de estar permanentemente em crescimento como pessoa.

A busca pelo aperfeiçoamento e aprimoramento da individualidade se constitui na razão básica da existência dos direitos da personalidade. É o homem evoluindo num processo de mudança permanente rumo a si mesmo, movimento incessante de transformação e evolução

. Exatamente por isso, uma das características dos direitos da personalidade é sua vitaliciedade e, quando os direitos de personalidade alcançam o status de estarem inseridos na Constituição Federal, passam à categoria de liberdades públicas e recebem todo o sistema de proteção próprio.

Para superar essa aparente dificuldade, ensina Luís Roberto Barroso que "o princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo" (Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional Brasileiro. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 54, 2001, p. 47). No entanto, isso não justifica a permanência das previsões constitucionais principiológicas apenas no campo abstrato, mas é preciso sua concretização, o que é obra, como dito anteriormente, de todos: de governantes ou não e, principalmente, do intérprete. Como acentua Konrad Hesse:

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Toda Constituição, ainda que considerada como simples construção teórica, deve encontrar um germe de sua força material no tempo, nas circunstâncias, no caráter nacional, necessitando apenas de desenvolvimento [...] a Constituição, entendida aqui como Constituição jurídica, não deve procurar construir o Estado de forma abstrata. Ela não logra produzir nada que já não esteja assente na natureza singular do presente. Quanto mais o conteúdo de uma Constituição lograr corresponder à natureza singular do presente, tanto mais seguro há de ser o desenvolvimento de sua força normativa. (HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 17, 18 e 20)

Nessa linha de raciocínio, encontrar-se-á o princípio da dignidade da pessoa humana fortalecido e amparado pela Constituição Brasileira. Na ponderação de que todos os princípios devem estar a ele submetidos, esse princípio sobreleva-se a outros, de forma que a existência digna da pessoa como valor indispensável para a pacífica vida em sociedade (contrato social) está a indicar o caminho para que seja preservada a identidade e o direito à personalidade de cada pessoa, sob pena de se estar amesquinhando e diminuindo o valor maior sobre o qual se constrói uma sociedade justa e humana, qual seja o próprio direito à vida.

E, se assim o é, a ascensão do Direito Constitucional no Brasil e da própria Constituição a elemento central de todo o sistema jurídico, ao incluir o direito à dignidade humana entre os direitos fundamentais, subordinou e condicionou todo o restante das normas legais, pré ou pós-existentes à "filtragem", de forma que a Constituição passa a ser, assim, não apenas um sistema em si – com a sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Esse fenômeno, identificado por alguns autores como "filtragem constitucional", consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. A constitucionalização do direito infraconstitucional não identifica apenas a inclusão da Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional. [09]

O direito de personalidade, como direito fundamental, buscará suas origens no cristianismo, visto que na Grécia, conhecida como o berço da civilização e da democracia, esse direito sequer era considerado. Segundo informa Maurício Beuchot (La persona y la subjetividad en la filología y la filosofía. Revista Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho, México, n. 16, 1996, p. 20), a filosofia grega não conhece o homem como ser de subjetividade por completo, visto que o pensamento dos filósofos helênicos acabou por sempre atrelar o homem ao destino ou ao objetivismo, não se alcançando uma noção de pessoa como indivíduo racional e possuidor de uma vontade atuante no mundo fático.

Fundada, então, essa concepção de pessoa, abriu-se o campo para a fomentação de seus direitos, inicialmente por meio do pensamento cristão, ao determinar este a dessacralização da natureza e da sociedade, libertando o homem de ser objeto para o transformar em sujeito, portador de valores (pessoa). Para a doutrina cristã, o fiel é aquele que está em relação com Deus, que fez o homem à sua imagem e semelhança. Contudo, o ser humano é dotado de livre-arbítrio e deve conduzir, na vida terrena, suas ações de acordo com essa liberdade. Permite, assim, um juízo de apreciação meritória na ação do indivíduo, pois, agindo de forma correta, encontrará o fiel a salvação.

A pluralidade humana, afirma Hannah Arendt, "tem esse duplo aspecto: o da igualdade e o da diferença" (A condição humana. 10ª ed. Tradução Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 188).

Exatamente essa diferença pode se constituir no sucesso ou no fracasso da experiência da passagem do ser humano pela terra, em razão e em conseqüência direta da efetiva disposição de nos ajudarmos mutuamente, na aplicação diuturna do princípio da solidariedade como forma de consecução de objetivos comuns de felicidade e plenitude e, em última análise, da própria preservação da espécie humana, densificada e mesmo condicionada à qualidade do relacionamento com seus iguais. Afinal, já afirmava Karl Marx que:

Se se pressupõe o homem como homem e sua relação com o mundo, como uma relação humana, só se pode trocar amor por amor, confiança por confiança, etc. Se se quiser gozar da arte, deve-se ser um homem artisticamente educado; se se quer exercer influência sobre outro homem, deve-se ser um homem que atue sobre os outros de modo realmente estimulante e encorajador... Se amas sem despertar amor, isto é, se teu amor, enquanto amor, não produz amor recíproco, se mediante tua exteriorização de vida como homem amante não te convertes em homem amado, teu amor é impotente e um infortúnio. (MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. Ed. José Arthur Gianotti, tradução de José Carlos Bruni, José Arthur Gianotti e Edgard Malagodi. 4ª, ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 198)

Numa sensível progressão, vem o Direito, um tanto a reboque de outras ciências que lhe são afins, como a Sociologia e a Psicologia, resgatar o valor da relação afetiva entre pessoas.


8. O RESGATE DO VALOR ENTRE AS PESSOAS.

O que se pretende e se deve buscar, frenética e incessantemente, é a aproximação da Justiça com a justiça (ou seja, o Poder Judiciário com a equidade), resguardados os direitos e as prerrogativas individuais considerados como inatos a toda e qualquer pessoa. John Rawls, procurando dar conta da afirmação inicial de que cada pessoa tem a inviolabilidade fundada na Justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade pode anular, de forma que, numa sociedade justa, os direitos assegurados pela Justiça não estejam sujeitos à barganha política ou ao cálculo de interesses sociais, escreve:

A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento. Embora elegante e econômica, uma teoria deve ser rejeitada ou revisada se não é verdadeira; da mesma forma leis e instituições, por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser reformadas ou abolidas se são injustas. Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior compartilhado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por muitos. Portanto, numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual, são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais. Sendo virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a justiça são indisponíveis. (RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 3)

É essa Justiça que se anseia, humanizada, voltada à realização do ser humano e de seus direitos fundamentais. Contudo, e exatamente por ser feita e aplicada por humanos, é passível de erros e equívocos, que, se por um lado, não podem ser extirpados, devem ser, por outro lado, utilizados para o aprimoramento do sistema, para questionamento dos métodos utilizados e objetivos almejados, pois, afinal, como afirmou Platão, "uma vida não questionada não merece ser vivida". A plenitude dessa vivência só poderá ser atingida se buscada com liberdade, que inclui a liberdade de errar para se ter a possibilidade de recomeçar, pois, como declarou Mahatma Gandhi, "A liberdade não tem qualquer valor se não inclui a liberdade de errar".

Afinal, se, de acordo com Schopenhauer (apud ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 8ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2001, p. 43), o clássico representante do pessimismo filosófico em geral, todo prazer da Terra consiste em manter afastado o desprazer, segundo a teoria imperativista parece que tudo o que de positivo o Direito concede apenas consiste em não estar vinculado por imperativos, em estar liberto da penosa exigência do rigoroso dever-ser. Assim, como só nos apercebemos da meramente negativa libertação do desprazer quando a perdemos, assim como só aprendemos a apreciar o frescor da juventude, a saúde e a energia para o trabalho quando gradualmente desaparecem, também só damos conta da benção que representa a concessão de direitos quando os imperativos cada vez mais nos limitam a liberdade. Apenas sob o jugo do Estado totalitário, aprende o homem a apreciar de novo os perdidos direitos e liberdades fundamentais.

Sobre o tema, Ovídio A. Baptista da Silva desenvolve o seguinte raciocínio:

Vivemos um tempo singular, que alguém qualificou de "a era da incerteza". Além do "fim das certezas", como disse Ilya Prigogine, um dos mais respeitados físicos contemporâneos, nossa era notabiliza-se por uma compulsiva e cada vez mais ampla destruição do que fora, na véspera, acolhido com entusiasmo. Como já dissera Karl Marx, numa frase que se tornou célebre, a modernidade faz com que "tudo o que seja sólido desmanche no ar". As coisas que pareciam perenes, mesmo as coisas sagradas, ou aquelas tidas como naturais, como a família, acabam desfazendo-se, ante a voracidade das transformações culturais. (SILVA, Ovídio A. Baptista da. Coisa julgada relativa?.Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 93, vol. 821, 2004, p. 29)

Não obstante as inúmeras divergências entre as diversas teorias formuladas sobre o tema, as clássicas idéias do dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere) e do tratar os iguais na medida de suas desigualdades constituem cerne fixo de quase todas elas. A diferença básica entre os diversos conceitos de justiça consiste no preenchimento do espaço deixado por essas fórmulas, nos parâmetros determinadores do que é o de cada um e na delimitação das desigualdades relevantes. [10]Nas palavras de Luis Recaséns Siches: "El problema capital sobre la justicia no radica en la teoría de ella, sino el la medida de estimación que ella postula" (Introducción al estudio del derecho. México: Porruá, 1970, p. 387).

Em contrapartida, para Hans Kelsen, "o anseio por justiça é o eterno anseio do homem por felicidade" (O que é Justiça? Tradução Luis Carlos Borges e Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 2). Como o alcance da felicidade pelos seres humanos não é proporcionado pelos mesmos bens da vida, a justiça seria um valor relativo, dependente da concepção particular de cada indivíduo, o que impediria a construção de uma ordem social considerada justa por todos. Entre os diversos valores que informam a conduta humana em busca da felicidade, alguns são eleitos pelo legislador como fundamentais.

Tais valores são consubstanciados em normas jurídicas positivas, as quais, para o jurista austríaco, são o único parâmetro de que se dispõe para avaliar, de modo objetivo e seguro, a justiça de um evento. Sob esse prisma, o conceito de justiça transforma-se de princípio que garante a felicidade individual de todos em ordem social que protege determinados interesses, ou seja, aqueles que são reconhecidos como dignos dessa proteção pela maioria dos subordinados a essa ordem.

Sendo o direito posto o parâmetro para a aferição do justo, a única solução injusta seria aquela que afastasse a aplicação do direito positivo.

Sobre o autor
Mauro Nicolau Junior

Juiz titular da 48ª Vara Cível do Rio de Janeiro (RJ). Professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Cândido Mendes. Professor da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NICOLAU JUNIOR, Mauro. A decisão do STF, o princípio constitucional da igualdade e a vedação de discriminação.: O afeto como paradigma norteador da legitimidade das decisões judiciais. A família contemporânea e sua nova formatação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2998, 16 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20006. Acesso em: 23 nov. 2024.

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