Da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
O atual entendimento cristalizado na jurisprudência da Excelsa Corte principiou-se, como muitos outros, do espírito perspicaz do Min. Moreira Alves no julgamento do AI 120.893-AgR (DJ: 11/12/1987) havido na Primeira Turma do STF:
Não desconheço que esta Corte tem, vez por outra, admitido – por fundamento jurídico que não sei qual seja – a denominada "teoria do fato consumado", desde que se trate de situação ilegal consolidada no tempo quando decorrente de deferimento de liminar em mandado de segurança.
Jamais compartilhei esse entendimento que leva a premiar quem não tem direito pelo fato tão só de um Juízo singular ou de um Tribunal retardar exagerada e injustificadamente o julgamento definitivo de um mandado de segurança em que foi concedida liminar, medida provisória por natureza, ou de a demora, na desconstituição do ato administrativo praticado por força de liminar posteriormente cassada, resultar de lentidão da máquina administrativa.
[...]
Ora, admitir – como por vezes tem feito esta Corte – que se mantenham situações de fato consolidadas no tempo por atraso de prestação jurisdicional não implica sustentar (o que o Tribunal jamais fez) que há direito adquirido à preservação de quaisquer situações de fato que, por qualquer motivo, se prolongaram no tempo. Para que haja direito adquirido se faz necessária a existência de um direito, o que, nesses casos, não ocorrem a toda evidência.
Em suma, a situação jurídica construída por decisão judicial, posteriormente reformada, deve ser desfeita ao invés de laurear quem não é merecedor do amparo postulado.
Já na Segunda Turma, foi a voz do Min. Celso de Mello, no RMS 23.544-AgR (DJ: 21/06/2002) que ressoou com maior vibração:
(...) situações de fato, geradas pela concessão de provimentos judiciais de caráter meramente provisório, não podem revestir-se, ordinariamente, tractu temporis, de eficácia jurídica que lhes atribua sentido de definitividade, compatível, apenas, com decisões favoráveis revestidas da autoridade da coisa julgada, notadamente nas hipóteses em que a pretensão deduzida em juízo esteja em conflito com a ordem constitucional, como ocorre na espécie destes autos.
Abaixo, seguem alguns julgamentos proferidos pelo STF, cujas situações fáticas não foram capazes de atrair a teoria do fato consumado:
Em concurso público para ingresso na Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, a parte autora sustentava a ilegalidade do teste psicotécnico ou, ao menos, a aplicação da mencionada teoria, sob o fundamento de que "com espeque na liminar a ele concedida, matriculou-se no curso, frequentou-o, formou-se e foi promovido com êxito, tornado a situação fática definitiva e irreversível". Contudo, o Min. Dias Toffoli [19] não acolheu seus argumentos.
A recorrente tinha tomado posse no cargo de analista judiciário do TRT-1 há 11 (onze) anos por causa de anterior provimento liminar, mas a Minª. Cármen Lúcia [20] determinou sua exclusão do quadro de servidores daquele Tribunal, em decorrência de a decisão final ter sido contrária a sua postulação.
A Minª Ellen Gracie [21] foi categórica: "(...) Se a recorrente participou das etapas seguinte do certame, chegar a cursar a Academia da Polícia Militar por força de antecipação de tutela, e, não demonstrou a concessão definitiva em seu favor, não há que se invocar direito adquirido para proteger o ato.".
O Min. Gilmar Mendes [22] afastou a teoria do fato consumado, "mesmo tendo o agravante participado do Curso de Formação, por força de liminar, e tendo sido aprovado e convocado", haja vista "[a] Administração, buscando evitar que esta situação fática se consolidasse, contestou as decisões judiciais, defendendo a legitimidade do certame.".
O Min. Celso de Mello [23] negou os efeitos jurídicos da teoria do fato consumado, a despeito de os recorrentes terem participaram de segunda etapa do concurso de Delegado da Polícia Federal, concluído o Curso de Formação Profissional, e tomado posse nos respectivos cargos.
Conclusão
A teoria do fato consumado tem vasto de aplicação, quando o beneficiário não sabe do obstáculo na aquisição do seu direito, e a conduta da outra parte gerou certa estabilidade que carece de proteção.
No entanto, diante de um litígio judicial, as cores da pintura na moldura são outras. A parte tem ciência do entendimento, v. g., da Administração Pública em negar-lhe sua pretensão, razão pela qual ajuizou o processo. Durante seu trâmite, a parte ré utilizou os meios adequados para fazer prevalecer seu entendimento, sendo, exatamente, essa a conclusão do Poder Judiciário.
Impedir, nos moldes acima comentados, o provimento judicial final abranger todo o espaço de decisão de um processo significa prestação jurisdicional incompleta, deturpação do conceito da coisa julgada, instabilidade entre as instituições e defesa e preservação da confiança e da boa-fé onde não há.
De sorte que é preciso diferenciar situações desassimiladas, a fim de não desfigurar a teoria do fato consumado, estimulando ilegítimo e exacerbado demandismo judicial, voltado a receber o que não é direito seu.
Notas
- Art. 2° do CPC: Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e forma legais.
- BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869compilada.htm. Acesso em 07/09/2011.
- CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 134.
- DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. Vol. I. 7 ed. Salvador: JusPodivm, 2007, p. 74.
- GADELHA, Gustavo de Paiva; Guimarães, Diego Fernandes; CRUZ, Henrique Jorge Dantas da. Direito e Poder. Coletânea de artigos sobre aspectos relevantes e atuais de direito público. Nossa livraria: Recife, 2007, p. 98.
- BRASIL. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm. Acesso em 13/09/2011.
- ARAGÃO, Egas Moniz de. Sentença e coisa julgada. Rio de Janeiro: AIDE Editora, 1992, p. 189.
- DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. Salvador: JusPodium, 2007, p. 478.
- PELUSO, Cezar (coord). Código Civil Comentando. 3 ed. São paulo, Manole, 2009, p. 458.
- O Min. Gilmar Mendes, na Rcl 6512 (DJe: 22/11/2010) acentuou: "esta Corte já reconheceu que o princípio da boa-fé possui status constitucional, podendo, dessarte ser aplicado como parâmetro de controle de constitucionalidade. Nesse sentido: AI-AgR 490.551, Rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, DJ 3.9.2010; AI-AgR 410.946, Rel. Min. Ellen Gracie, Pleno, DJ 7.5.2010; RE 478.410, Rel. Min. Eros Grau, Pleno, DJ 14.5.2010.".
- Exemplo perfeito dessa harmonização ocorreu no julgamento da ADI 2.591, sobre o qual escreveu a professora Cláudia Lima Marques: "O Supremo Tribunal Federal, no histórico julgamento da ADIn 2.591, que concluiu pela constitucionalidade da aplicação do CDC a todas as atividades bancárias, reconheceu a necessidade atual do ‘diálogo das fontes’. Do voto do Min. Joaquim Barbosa extrai-se a seguinte passagem: ‘Entendo que o regramento do sistema financeiro e a disciplina do consumo e da defesa do consumidor podem perfeitamente conviver. Em muitos casos, o operador do direito irá deparar-se com fatos que conclamam a aplicação de normas tanto de uma como de outra área do conhecimento jurídico. Assim ocorre em razão dos diferentes aspectos que uma mesma realidade apresenta, fazendo com que ela possa amoldar-se aos âmbitos normativos de diferentes leis’. Em relação ao alegado confronto entre lei complementar disciplinadora da estrutura do sistema financeiro e CDC, o Min. Joaquim Barbosa, referindo-se à técnica do diálogo das fontes, observa: ‘Não há, a priori, por que falar em exclusão formal entre essas espécies normativas, mas, sim, em influências recíprocas, em aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente’." (Manual de Direito do Consumidor. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 90)
- MS 24.403, Tribunal Pleno, Relator(a): Min. Ayres Britto, DJ 10/02/2011; MS 22.357, Tribunal Pleno, Relator(a): Min. Gilmar Mendes, DJ 05/11/2004.
- MS 24.268, Tribunal Pleno, Relator para o acórdão: Min. Gilmar Mendes, DJ 17/09/2004.
- No MS 25.259-MC, o Min. Gilmar Mendes pontificou: "A propósito do direito comparado, vale a pena ainda trazer à colação clássico estudo de Almiro do Couto e Silva sobre a aplicação do princípio da segurança jurídica: ‘É interessante seguir os passos dessa evolução. O ponto inicial da trajetória está na opinião amplamente divulgada na literatura jurídica de expressão alemã do início do século de que, embora inexistente, na órbita da Administração Pública, o principio da res judicata, a faculdade que tem o Poder Público de anular seus próprios atos tem limite não apenas nos direitos subjetivos regularmente gerados, mas também no interesse em proteger a boa fé e a confiança (Treue und Glauben) dos administrados.’"
- LARENZ, Karl. Derecho Justo – Fundamentos de Ética Jurídica. Madri. Civitas, 1985, p. 91.
- LARENZ, op. cit., p. 95.
- REALE, Miguel. Revogação e anulamento do ato administrativo. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
- RE-AgR 462.909, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ: 12/05/2005 (trecho do voto).
- AI 617.917-AgR, Primeira Turma, DJe: 18/08/2011.
- AI 813.739-AgR, Primeira Turma, DJe: 01/02/2011.
- RE 476.783-AgR, Segunda Turma, DJe: 21/11/2008.
- AI 581.992-AgR, Segunda Turma, DJ: 06/10/2006.
- RMS 23.544-AgR, Segunda Turma, DJ: 21/06/2002.