6. A seletividade na concessão do crédito
Não se diga, por fim, que o direito à reestruturação financeira ou readaptação do contrato pode ter por fundamento a "concessão irresponsável do crédito" pelas empresas financeiras, ao não investigarem adequadamente a capacidade de endividamento do consumidor.
As instituições que integram o sistema financeiro nacional, e que portanto são fiscalizadas pelo Banco Central, são obrigadas a operar observando princípios da seletividade, garantia e diversificação dos riscos, sendo-lhes vedada a concessão de crédito sem a constituição de título adequado e representativo da dívida [16]. Essas diretrizes, todavia, não foram concebidas como uma garantia para o consumidor, mas para evitar risco sistêmico, isto é, para reduzir os riscos de insolvência do sistema financeiro. Se os bancos começam a emprestar dinheiro sem as devidas garantias de recebimento futuro do capital emprestado, podem ficar com ativos de má-qualidade e não ter como honrar os compromissos representados pelo seu passivo. O que se buscou, portanto, foi evitar práticas bancárias perigosas ou inadequadas, para não comprometer o sistema financeiro.
As instituições financeiras utilizam-se de bancos de dados, públicos e privados, para a avaliação do risco de crédito, ou seja, da probabilidade de recebimento do montante emprestado ao cliente (consumidor de serviços bancários). De acordo com a avaliação que é feita pelo banco, acessando esses cadastros, estabelece-se a taxa de juros a ser cobrada em um negócio bancário específico ou mesmo o banco pode deixar de conceder o empréstimo. A inadimplência é um custo implícito no preço do crédito e, quanto maior a certeza do pagamento, menor a taxa cobrada do tomador final e menor risco para o banco. Ao conhecer melhor o potencial do tomador do crédito, através do recurso aos registros de suas atividades bancárias prévias que integram a base de dados, os bancos diminuem os riscos das operações de crédito. As informações são obtidas junto a empresas e organizações que mantêm esses bancos de dados informacionais.
Entretanto, mesmo realizando essas consultas e investigando o perfil do consumidor ou seu histórico de pagamento, o banco não tem como evitar complemente os riscos do negócio nem tampouco avaliar completamente a capacidade de endividamento. O concedente procede a uma análise da capacidade econômica do tomador do empréstimo, mas apenas como prática administrativa para diminuir os riscos quanto ao reembolso do capital emprestado, não como obrigação legal.
7. O caráter conciliatório da renegociação de dívidas
Como já observado, não existe nenhuma norma jurídica, nem princípio legal ou constitucional que imponha à uma instituição financeira o dever de renegociar as condições contratuais, sempre que o devedor pretender ou para facilitar o pagamento da dívida. A renegociação de dívidas ou alteração da forma e condições de obrigações de pagamento somente pode ser almejada por meio de composição amigável entre os contraentes, nunca como dever/direito de um deles, se não previsto expressamente no instrumento contratual. Inclusive o Estado, através do Poder Judiciário, pode desenvolver programas específicos de mediação/conciliação com a finalidade de tratamento, acompanhamento e resolução amigável de conflitos que envolvam consumidores em situação de superendividamento, de forma a reinseri-los no mercado de consumo sem restrições creditícias [17].
O que se tem observado, nesses programas de conciliação de conflitos envolvendo consumidores superendividados, é que as empresas e instituições financeiras quase sempre concordam em renegociar as dívidas, alongando os prazos para pagamento, diminuindo juros e os valores das mensalidades. Quando se convencem da incapacidade financeira do consumidor de pagar suas dívidas atuais e futuras nos respectivos vencimentos, e também como sabem que a tentativa de cobrança pela via judicial muitas vezes resulta infrutífera – em razão da ampla proteção dada pela lei brasileira ao patrimônio do devedor -, aceitam reduzir substancialmente o montante da dívida [18].
8. Conclusões:
1ª. O consumidor, ainda que em situação de (super)endividamento, não tem direito à renegociação se esse direito não foi expressamente previsto, devendo o Judiciário evitar intervir no contrato, modificando condições de pagamento de dívidas, prazos e encargos. Eventual interferência do Poder Público nos negócios jurídicos privados, sob essa roupagem, pode trazer conseqüências sociais ainda mais nefastas, em termos de quebra da segurança jurídica dos negócios, violação à liberdade de contratar e afronta ao princípio do ato jurídico perfeito, valores protegidos pela ordem constitucional.
2ª. A dignidade da pessoa humana, que se concretiza pela garantia de um mínimo de condições materiais, está plenamente protegida contra a cobrança de dívidas, em razão das inúmeras leis existentes na ordem jurídica brasileira que protegem o patrimônio do devedor (a exemplo da impenhorabilidade salarial presente no inc. IV do art. 649 do CPC, e da impenhorabilidade imobiliária disciplinada pela Lei n. 8.009, de 29 de março de 1990). O que pode ocorrer é que o consumidor, tomador do crédito, pelo volume do endividamento e comprometimento de suas finanças pessoais, perca a capacidade de pagamento e, efetivamente, deixe de cumprir com suas obrigações contratuais, mas nunca chegará a ser privado completamente de condições materiais mínimas.
3ª. A responsabilidade pelo processo de (super)endividamento de parcelas substanciais de consumidores não pode ser atribuída com exclusividade às instituições financeiras, já que elas avaliam o risco da concessão do crédito (através de pesquisas em bancos de dados), o que não é suficiente para evitar completamente o inadimplemento do cliente (consumidor de serviços bancários). Se o princípio da boa-fé tivesse de ser invocado nos casos de superendividamento, seria para penalizar o tomador do crédito que, tendo conhecimento de sua limitada capacidade de endividamento, mesmo assim aceita contrair obrigação que sabe que não vai cumprir. As pessoas precisam ter responsabilidade pelo cumprimento de suas obrigações, não podendo o Judiciário quebrar a segurança jurídica dos contratos.
4ª. A renegociação contratual, quando ocorre o superendividamento do consumidor, assim considerada a situação em que suas dívidas superam em muito sua condição de adimplemento, pode ser conseguida através de uma composição amigável entres as partes envolvidas no negócio (concedente e tomador do crédito). Em programas de renegociação de dívidas, patrocinados por órgãos estatais e entidades do setor privado, ficou comprovado que as instituições financeiras quase sempre concordam em reduzir o montante do débito e facilitar o pagamento, quando se convencem da incapacidade de adimplemento do consumidor superendividado.
Notas
- Dentre as propostas da Comissão de juristas responsável pela atualização do CDC (Lei 8.078/90), está a proibição de utilização de expressões enganosas que levem o consumidor a crer que o financiamento é oferecido sem juros ou de forma gratuita. Outra proposta é a de impedir o fornecedor de ocultar os riscos da contratação do crédito, dificultar sua compreensão ou estimular o endividamento.
- Segundo dados divulgados pelo Banco Central, em novembro de 2008 as operações de crédito o país atingiram R$ 1.187 bilhões correspondentes a 40,2% do PIB. Os saldos de créditos destinados a pessoas físicas foram de R$ 369,3 bilhões em setembro-08, com crescimento de 32,26% em relação a setembro de 2007.
- O Superendividamento, segundo Claudia Lima Marques, é a condição do consumidor, pessoa física natural, não poder saldar as dívidas que possui com os ganhos provenientes de seu labor, sem que para isso seja prejudicada a sua subsistência (em Sugestões para uma Lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº. 55, p. 11-52, jul./set. 2005, p. 11-52).
- Ob. cit., p. 198.
- O Superendividamento do Consumidor como Hipótese de Revisão dos Contratos de Crédito.São Paulo: Editora Verbo Jurídico, 2008, p. 162.
- A tutela do consumidor superendividado e o princípio da dignidade da pessoa humana. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2619, 2 set. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/17312>. Acesso em: 17 ago. 2011.
- O mínimo existencial é um dos parâmetros de dosimetria e densificação material da pessoa humana, autorizando inclusive a intervenção judicial para sua preservação na hipótese de omissão do Poder Executivo. Também denominado de mínimo fisiológico, deve ser entendido como "as condições materiais mínimas para uma vida condigna, no sentido da proteção contra necessidades de caráter existencial básico". Como ensina Rogério Gesta Leal, "um interesse ou uma carência é, nesse sentido, fundamental em nível de mínimo existencial quando sua violação ou não-satisfação significa ou a morte, ou sofrimento grave, ou toca o núcleo essencial da autonomia" (Condições e Possibilidades Eficaciais dos Direitos Fundamentais Sociais – Os desafios do Poder Judiciário no Brasil, Porto Alegre. Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 101).
- Embora exista uma discussão sobre se essa impenhorabilidade salarial é absoluta ou (não), o fato é que há consenso de que a penhora sobre salários ou vencimentos não pode ser de forma integral, comprometendo a manutenção da subsistência do devedor. A respeito do tema, sugerimos a leitura de nosso artigo Da possibilidade de penhora de saldos de contas bancárias de origem salarial. Interpretação do inciso IV do art. 649 do CPC em face da alteração promovida pela Lei nº 11.382/2006, publicado na revista Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1796, 2 jun. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11336>.
- O art. 649 do CPC tem a seguinte redação:
- O STJ, interpretando esses dispositivos, tem ampliado a garantia a praticamente todos os utensílios e eletrodomésticos existentes na casa (único imóvel residencial) do devedor, a exemplo de televisão, fogão, geladeira, computador etc. Para a Corte Superior, só são penhoráveis esses equipamentos se existentes em duplicidade. Tudo o mais que existir em forma de um único item, à exceção de obras de arte e adornos suntuosos, não pode ser penhorado.
- A Lei n. 10.820, de 17 de dezembro de 2003, dispôs sobre a autorização para desconto de prestações em folha de pagamento. Estabelece esta Lei que os empregados podem autorizar o desconto em folha de pagamento dos valores referentes a empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil (art. 1º.). O desconto pode, inclusive, incidir sobre verbas rescisórias, desde que limitado a 30% (par. 1º. do mesmo artigo). Os inativos (aposentados e pensionistas) que recebem benefícios pelo INSS também estão autorizados pela Lei a contratar empréstimos mediante desconto em folha (art. 6º.). Já em relação aos servidores públicos civis (da União), o Decreto n. 4.961, de 20 de janeiro de 2004, que regulamenta o art. 45 da Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990, também permite que eles autorizem consignações em suas folhas de pagamento, para cobertura de certos tipos de empréstimo (a exemplo de financiamentos para aquisição de imóveis residenciais e empréstimo concedido por entidade de previdência privada), mas desde que a soma mensal das consignações não exceda valor correspondente a 30% dos vencimentos (art. 11).
- Na ausência de uma limitação ao desconto, o Judiciário pode (e deve) intervir na relação contratual, de modo a restabelecer o equilíbrio entre as partes, modificando a cláusula contratual que estabelecera a prestação desproporcional (art. 6º, V, do CDC). Por analogia às Leis que regulamentam as consignações em folha de pagamento, a autorização para desconto em conta-corrente não deve comprometer mais que 30% do salário creditado mensalmente. Para melhor compreensão dessa , sugerimos a leitura de nosso artigo Cláusula que autoriza desconto em conta corrente para pagamento de empréstimo. Sua abusividade quando ilimitada, publicado na Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 350, 22 jun. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/5384>.
- Instituições de Direito Civil, vol. III, Rio de Janeiro, Forense, 2009, p. 22.
- O governo tem programas de financiamento para estudantes que não têm recursos para pagar um curso superior. Um dos principais programas implementados é o Fies, criado em 1999 para financiar estudantes carentes. Outro programa é o Prouni, criado em 2004 e destinado à concessão de bolsas para alunos comprovadamente carentes, oriundos de instituições públicas e submetidos ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Apesar dos benefícios que esses programas trazem aos estudantes, é alto o índice de inadimplência e são inúmeras as causas que chegam à Justiça questionando as formas de pagamento de um curso, bem como as taxas de juros e a cobrança de mensalidades. Segundo notícia veiculada pelo jornal Folha de S. Paulo, de julho de 2010, com dados referentes a junho de 2009, mais de 50 mil estudantes, dos 250 mil contratos em fase de quitação da dívida junto à Caixa Econômica Federal, estariam inadimplentes e solicitaram a renegociação; o que representa 25% do total.
- STJ-1ª. Turma, REsp 949.955-SC, rel. Min. José Delgado, j. 27.11.07, DJ 10.12.07.
- Resolução 3258 do BACEN:
- A título de exemplo pode ser citado o "Programa de Tratamento de Consumidores Superendividados, denominado de PROENDIVIDADOS, instituído pelo Ato nº 75/2011-SEJU, de 11 de fevereiro de 2011, do Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, sob a coordenação e a gestão da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco – ESMAPE. O Programa é vinculado, jurisdicionalmente, à Seção Especializada de Tratamento de Consumidores Superendividados da Central de Conciliação, Mediação e Arbitragem da Comarca da Capital (Primeiro Grau), onde os acordos obtidos são submetidos à homologação e execução judicial. O programa fornece inclusive, caso o consumidor tenha interesse, assistência social e psicológica, além de orientação, através de cursos específicos, com o objetivo de auxiliá-lo na sua reeducação financeira, prevenindo o superendividamento.
- No programa "Globo Repórter" da TV Globo, veiculado no dia 26.08.11, que tratou do tema do superendividamento, foi divulgada a informação de que as instituições de crédito concordam em reduzir as dívidas dos consumidores até 80% em alguns casos.
"Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:
I - os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;
II - os móveis, pertences e utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida
III - os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor;
IV - os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no § 3º deste artigo;
V - os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão;
VI - o seguro de vida;
VII - os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas;
VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família;
IX - os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social;
X - até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, a quantia depositada em caderneta de poupança.
XI - os recursos públicos do fundo partidário recebidos, nos termos da lei, por partido político.
§ 1º A impenhorabilidade não é oponível à cobrança do crédito concedido para a aquisição do próprio bem.
§ 2º O disposto no inciso IV do caput deste artigo não se aplica no caso de penhora para pagamento de prestação alimentícia.
§ 3º (VETADO)".
"IX- É vedado às instituições financeiras:
a)realizar operações que não atendam aos princípios de seletividade, garantia, liquidez e diversificação de riscos;
b)conceder crédito ou adiantamento sem a constituição de um título adequado, representativo da dívida.".