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O Estado transnormativo e a democracia em Hans Kelsen

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Agenda 08/10/2011 às 14:00

A partir do ponto de vista do autor da Teoria Pura do Direito, busca-se harmonizar seu conceito de Estado com as últimas atualizações de seu pensamento, para entender problemas contemporâneos, como a interação entre política e direito e o aperfeiçoamento da democracia.

1.Introdução

O Estado é uma realidade complexa e pouco afeita a definições. É um objeto de conhecimento disputado, sobretudo, entre a Ciência do Direito, a Sociologia e a Ciência Política. Cada uma dessas ciências exprime definições de Estado que, na maior parte das vezes, não se harmonizam. Pelo contrário: excluem-se.

Um dos grandes problemas de fechamento da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, foi exatamente tentar definir e recepcionar o Estado de forma exclusiva, com base no vetusto postulado que condicionava autonomia científica a objeto privativo.

Na contemporaneidade, é cada vez mais evidente que realidades complexas como o Estado, a democracia e o próprio Direito desafiam abordagens transversais, que não se ajustam ao esquema compartimentalizado de produção de conhecimento ainda predominante nas universidades.

Na Teoria Pura do Direito, porém, Kelsen reconstruiu a noção de Estado segundo os cânones de afirmação científica vigentes àquele tempo, na década de 30 do século passado. Enfrentou o duplo desafio de assegurar a autonomia da Ciência do Direito segundo os imperativos da época e desvelar o Direito como objeto de especulação científica genuína, sem as intercorrências metafísicas herdadas do direito natural.

Com o passar do tempo, à medida que sua doutrina é exposta a críticas à luz das novas premissas epistemológicas que reconfiguram o próprio saber científico, Kelsen enriquece seu pensamento, flexibiliza o Direito autárquico formulado nas versões originais da Teoria Pura, mas não chega a reelaborar o conceito de Estado.

Como demonstra Paulson (2007), a três fases bem distintas e definidas na evolução do pensamento kelseniano: a fase do construtivismo crítico (1911-1921), a fase clássica (1921-1960) e a fase cética (1960-1973). Na primeira fase, as posições de Kelsen estavam ainda pouco desenvolvidas e, na última fase, ele não chegou a fechar uma teoria, o que, de certa forma, explica o fato de que a maioria dos juristas só dê atenção a doutrina kelseniana da fase clássica.

Muitas dos erros atribuídos a Kelsen, como a fragilidade teórica da norma fundamental, referem-se a posições sustentadas nessa fase intermediária, superadas em trabalhos posteriores.

O monismo Estado-Direito nunca foi expressamente rejeitado pelo autor da Teoria Pura, mas dificilmente poderia ser harmonizado com os postulados da doutrina kelseniano desenvolvidos na fase cética, em que o Direito torna-se mais permeável à realidade. A identidade entre Estado e Direito, como visto, é pressuposto da blindagem do Direito em face do mundo empírico.

Nesse artigo, pretendo assumir o ponto de vista do autor da Teoria Pura e harmonizar seu conceito de Estado com as últimas atualizações de seu pensamento. Esse exercício especulativo pode lançar luzes sobre intrigantes problemas contemporâneos, como a interação entre política e direito e o aperfeiçoamento da democracia.


2.As fases do pensamento kelseniano

Stanley L. Paulson, na obra já referida, subdivide a trajetória científica de Kelsen em três fases: construtivismo crítico (circa 1911-1921), fase clássica (circa 1921-1960) e fase cética (circa 1960- até a morte de Kelsen, em 1973) (Paulson, 1998, pp. xxiii-xxvii).

A primeira fase corresponde ao período em que Kelsen constroi seus principais conceitos e preocupa-se, fundamentalmente, com a afirmação da Ciência do Direito como disciplina normativa. Nas palavras de Paulson, o autor procurava "to stablish legal science as a ‘normative disciple" [01] (Paulson, 1998, p. xxiv).

A diretriz do pensamento de Kelsen, nesse introito, era destacar os elementos próprios da análise jurídica. Definiu-se que o discrímen do objeto da Ciência do Direito caráter normativo peculiar.

A ciência jurídica rudimentar que aparece nessas formulações iniciais de Kelsen tinha acentuado caráter descritivo e estático. A preocupação era definir o que é o Direito e não como funciona o Direito.

Na segunda fase, Kelsen formula e consolida a Teoria Pura do Direito. No esforço para sistematizar o Direito e compreender seu funcionamento, incorpora a doutrina da estrutura hierárquica de Adolf Merkl, conhecida como pirâmide normativa.

Essa doutrina apresenta o Direito em processo dinâmico no qual recria a si mesmo de forma ininterrupta. Normas inferiores são determinadas por normas superiores. Sobressai desse sistema dinâmico a premissa básica de que uma norma é sempre criada por outra.

Kelsen vale-se na Teoria Pura do princípio da imputação, de matriz kantiana, estruturar a unidade básica do Direito, a norma, segundo a fórmula se a, deve ser b, em que a é, em termos gerais, é o fato sobre o qual incide a norma e b a sanção decorrente. O princípio da imputação, segundo o qual funciona oDireito, é um simulacro do princípio da causalidade, segundo o qual funciona a natureza .

Na terceira fase, Kelsen rompe com as doutrinas kantianas, que tanto o influenciaram no período anterior. Começa a formular uma teoria mais voluntarista do direito, com menos apelo à razão. Em suma,

Kelsen abandons his early view to the effect that norms are subject to constraints imposed by logic. Second, He gives up the idea that legal science has a normative dimension. Third, he defends an utterly emaciated version on the basic norm thesis, namely, the basic norm qua fiction [02] (Paulson, 1998, p. xliii).

Nessa fase cética, pouco conhecida pelos juristas, o próprio Direito é reconhecido como uma ficção, em vez de construção teórica lógica, absolutamente sistemática e pura.

Kelsen assume, como David Hume assumiria, que o Direito lógico e pura é uma crença, um imperativo, um dever ser, que deveria ser perseguido a todo custo, mas que jamais seria alcançado.

Todos conhecem a Teoria Geral de Estado da fase clássica de Kelsen, mas o autor não chegou a formular uma Teoria Geral do Estado compatível com sua doutrina da fase cética.

Não me proponho a fazê-lo, apenas a indicar algumas linhas gerais nesse sentido, com objetivo de extrair conteúdo para aperfeiçoamento da teoria democrática contemporânea. Preliminarmente, problematizo, de maneira crítica, os principais postulados da Teoria Pura.


3.Contornos da Teoria Pura

A Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, constitui um esforço intelectual para peneirar o Direito e separar-lhe as impurezas. O jurista insistia que o adjetivo "pura" se referia à teoria e não ao Direito:

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De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo dato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito. Quando a Teoria Pura do Direito empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo não para ignorar ou, muito menos, negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza de seu objeto (2009, p. 1-2)

Como bem demonstra Arnaldo Vasconcelos, com base nas exposições do próprio Kelsen, é "igualmente puro o Direito da teoria pura" (2003, 108).

Kelsen, ao formular uma técnica para flagrar o Direito em sua essência, tal como é, livre de qualquer impureza, seguia o imperativo de que para fundar uma ciência é necessário especificar seu objeto, distingui-lo do objeto de outros campos de investigação.

A pureza do Direito em Kelsen não significa que se pode abstrair o Direito da realidade que contorna e permeia, mas que o Direito não se confunde com o objeto de análises de outras ciências.

O simples fato de haver zonas de interseção entre o objeto da Ciência do Direito e o de outras ciências não significa que o Direito assim concebido perdeu sua pureza, até porque não se pode confundir o todo com suas partes, porque a distinção fundamental é de perspectiva e de metodologia.

Aos críticos que objetaram que a impermeabilização do Direito é impraticável, com base na descoberta de que mesmo nas ciências exatas é impossível a neutralidade axiológica, Kelsen responderia, com suporte em Weber, que o Direito puro é um tipo ideal, um dever ser.

Qualquer discrepância entre o Direito ideal e o Direito empírico deveria ser tratada como déficit de eficácia, irrelevante do ponto de vista estritamente normativo. O juiz, diante do dever de julgar o caso concreto, jamais será neutro, mas deve se esforçar para decidir de maneira objetiva e isenta.

O fechamento do Direito em si mesmo ajudava a resolver o problema fundamental de toda a doutrina de Kelsen, que consistia em separar o Direito de contingências externas, as quais ele sintetizava como ideologia.

A separação do Direito da realidade empírica adjacente é decorrência da separação absoluta entre ser e dever ser, emprestada do pensamento de David Hume. Harmoniza-se com a noção de razão formal do Estado moderno, formulada por Weber, segundo a qual os valores que pautam a conduta dos indivíduos são formalmente anulados pela objetivação da lei.

O abismo entre dever ser e ser já distinguia o objeto da Ciência do Direito (normas) do objeto das ciências empíricas (coisas, fenômenos). O passo seguinte seria separar entre Direito e os demais objetos confinados ao mundo do dever ser conhecíveis pela Ciência, como a moral.

Na Teoria Pura, o que distingue o Direito, nesse âmbito, é a sanção oficial (aplicada com exclusividade pelo Estado) e a coerência interna. O Direito é coerente porque é sistemático. Configura um sistema piramidal de normas escalonadas, cada qual com fundamento de validade na norma imediatamente superior.

Restava ainda solucionar o seguinte paradoxo que decorre da doutrina da estrutura hierárquica: se apenas uma norma cria outra norma, o que criou a primeira norma? Kelsen vai procurar resposta em Kant.

Kant tenta demonstrar a absoluta necessidade de existência de leis morais universais, descoladas do indivíduo e da realidade empírica. "A razão pura é por si mesma prática, e dá (ao homem) uma lei universal, que denominamos lei moral [Sittengesetz]" (2005, p. 41).

No vértice do sistema normativo que configura o Direito, Kelsen instala a norma fundamental, que emula o imperativo categórico de Kant, que sintetiza em si todas as demais normas morais válidas e constitui o ponto de interseção entre a razão pura (meramente especulativa) e a razão prática (dirigida a fins).

Diferentemente dos imperativos categóricos de Kant, a norma fundamental não tinha conteúdo. Na fase clássica, a que pertence a versão da doutrina kelseniana mais conhecida, essa norma era meramente hipotética, que o jurista deveria supor para dar sentido ao Direito.

Kelsen poderia, então, advogar que a norma original, que orienta todo o sistema jurídico-normativo, tinha caráter objetivo, universal, atemporal e extra-empírico. O problema é que semelhante formulação era mais apropriada ao direito natural, fundado na ideia de razão divina.

O artifício da norma fundamental deixou o sistema normativo sem lastro efetivo, porque, ao contrário de todas as demais normas, a norma fundamental não era imperativa.

A regra de controle das normas que configuram o Direito ficou sendo simplesmente sua estruturação hierárquica, que tinha como referência última uma norma não imperativa, quando, segundo o próprio Kelsen, o que define uma norma é exatamente sua imperatividade. Esse fechamento forçado da teoria pura e do próprio Direito que dela se deduz foi sempre sua fonte de instabilidade.

A Teoria Pura exclui, a priori, considerações sobre pressões políticas e sociológicas a forçar a reelaboração ou a ressignificação das normas a partir da base das pirâmides, processo que acabaria por violar a norma fundamental e distorcer, por consequência, o próprio Direito.

A luta [contra a Teoria Pura do Direito] não se trava na verdade – como as aparências sugerem – pela posição da Jurisprudência dentro da ciência e pelas conseqüências que daí resultam, mas pela relação entre Ciência Jurídica e política, pela rigorosa separação entre uma e outra, pela renúncia ao enraizado costume de, em nome da Ciência do Direito e, portanto, fazendo apelo a uma instância objetiva, advogar postulados políticos que apenas podem ter um caráter altamente subjetivo, mesmo que surjam com a melhor das boas-fés, como ideal de uma religião, de uma nação ou de uma classe (Kelsen, 2009, p. XII).

Além disso, observa o imperativo lógico deduzido por David Hume de que do ser não decorre o dever ser e vice-versa (apud Kelsen, 1986, p. 109). Ou seja, o ato normativo, como ato de vontade circunscrito ao campo do dever ser, só pode originar-se de outro ato normativo.

Para não contradizer esse princípio, no topo da pirâmide normativa Kelsen instala, como visto, uma norma fundamental hipotética, que interrompe a regressão ad infinitum que colocaria estabeleceria o direito na metafísica. Ainda assim, a norma fundamental não deixa de refluir ao apriorismo, que era próprio do direito natural.

Esse problema, repise-se, só foi solucionado com concessão de que a da norma fundamental era pura ficção (não podia ser deduzida logicamente). Na última versão da Teoria Pura do Direito, Kelsen acaba por desistir o rigor científico que o impulsionava nas duas fases iniciais.

Na Teoria Pura, o sistema normativo piramidal, auto-referenciado, pressupunha a neutralizalização das fontes "não jurídicas" do Direito. A única fonte não puramente jurídica admitida é a norma fundamental. Era o elo perdido que, mesmo sem existência empírica, podia integrar logicamente todas as normas existentes por simples encaixe lógico.

Na obra General Theory of Law and State (Teoria Geral do Direito e do Estado), de 1945, sob influência da Common Law, Kelsen admite, na segunda fase de seu pensamento, a interdependência entre a validade e a eficácia do Direito:

Uma norma é considerada válida apenas com a condição de pertencer a um sistema de normas, a uma ordem que, no todo é eficaz. Assim, a eficácia é uma condição de validade; uma condição, não a razão da validade (Kelsen, 2005, 58).

Antes, na primeira fase, o critério da efetividade valia apenas para a norma fundamental ou para o ordenamento como um todo. Com a mudança de posicionamento, Kelsen concede que os fatos sociais podem gerar Direito à revelia do estrito formalismo da ordem jurídico normativa.

Na Segunda Edição da Teoria Pura, de 1960, Kelsen admite a desuetudo – anulação do Direito estatuído pelo costume –, mas insiste que o costume não pode criar Direito (2009, pp. 237 e 425). Mas a anulação de uma norma nada mais é que a criação de uma norma invalidadora. Vale dizer: o costume só pode anular uma norma se detém poder normativo.

O pensamento de Kelsen continua a evoluir. Em 1963, já na terceira fase, ele admite que estava errado quanto à natureza da norma fundamental:

En obras anteriores he hablado de normas que no son el contenido significativo de acto de volición. En mi doutrina, la norma básica fue siempre concebida como una norma que no era el contenido significativo de un acto de volición sino que estaba presupuesta por nuestro pensamiento. Debo ahora confesar que no puedo seguir manteniendo esta doutrina, que tengo que abandonarla. Puedem crerme, no há sido fácil renunciar a una doctrina que he defendido durante décadas. La he abandonado al comprobar que una norma (Sollen) deve ser correlato de uma voluntad (Wollen). Mi norma básica es una forma ficticia basada em un acto de volición ficticio... En la norma básica se concibe un acto de volición ficticio, que realmente no existe (apud Alf Ross, 1971, 147).

Se a norma fundamental é uma forma vazia, ou menos que isso, uma suposição do pensamento, ela não tem nada de coercitivo. Mas, se ao contrário, a ficção não diz respeito à norma fundamental, mas à sua vontade criadora, ela torna-se coercitiva e o Direito passa a ter uma força cogente mais consistente.

A ideia de vontade geral, de Rousseau, é, em última análise, uma ficção, produto de wishful thinking. Assim, é possível convergir uma Teoria Pura projetada a partir das inovações da doutrina kelseniana da terceira fase com a democracia republicana. A vontade fictícia que configura a norma fundamental e que estabiliza o direito é a mesma que deve guiar a política.


4.O Estado na Teoria Pura

O plano de ação da Teoria Pura consiste, exceto na fase cética de Kelsen, em demarcar o campo de incidência da Ciência do Direito em face de disciplinas adjacentes ao Direito.

Kelsen anda relativamente bem em seu intuito até se deparar com o fenômeno Estado. Destilar o Direito é bem mais simples que destilar o Estado, que se compreende no objeto consolidado da Sociologia e da Ciência Política.

A Teoria Pura solucionou o litígio com as ciências rivais da forma mais prosaica possível: ao negar a cindibilidade epistemológica do Estado por meio do expediente de subsumi-lo ao Direito, que concebe como monopólio da Ciência Jurídica, a Teoria Pura exime-se do problema da análise multifacetada do Estado, que exige a demarcação exata do campo de investigação das ciências concorrentes.

Hans Kelsen, na fase clássica, sustentava que "o Estado, como pessoa, não é mais do que a personificação da ordem jurídica" (1939, 106). Para ele, a doutrina dualista que dissociava Estado e Direito estava comprometida com o vício da hipóstase do Estado.

Assim como no campo religioso a figura de Deus deformava-se na medida em que era equiparada à figura do homem, no campo da Ciência Jurídica, Estado se empobrecia ontologicamente quando antropoformizado.

Kelsen aponta a impossibilidade lógica de atribuir direitos e deveres a um ente que não apenas é a fonte desses direitos e deveres, como também os contém, na medida em que se confunde com a ordem normativa em que se integram. A personificação da ordem jurídica, segundo Kelsen, malgrado possa ajudar a organizar o pensamento, não tem qualquer respaldo científico (Kelsen, 2009, 315).

Para o autor da Teoria Pura do Direito, "em si as comunidades jurídicas [como é o caso do Estado] carecem de personalidade jurídica, mas podem ser representadas como se fossem pessoas e tivessem essa personalidade" (Kelsen, 1959, p. 94). O fato, porém, de o Estado ser representado como pessoa não significa que seja uma pessoa.

A visão monista de Estado harmoniza-se com a concepção fundamental da Teoria Pura do Direito de que a norma é a única realidade jurídica (Dallari, 2011, p. 124) ou o único substrato sob o qual devem incidir toda e qualquer análise da Ciência do Direito.

A identidade entre Estado e Direito impede, porém, uma necessária divisão de trabalho harmoniosa entre o Direito, a Sociologia e a Ciência Política, como discutiu-se acima. Se o Estado nada mais é que um sistema de normas, não há fenômeno sociológico ou político a ser nele observado.

Note-se que essa concepção foi descartada na terceira fase, em que Kelsen deixa de defender que Ciência do Direito tem apenas uma dimensão normativa. Se o Direito não está restrito ao campo normativo [03], muito menos o Estado.

O projeto kelseniano de simplificar a realidade para ajustá-la perfeitamente a uma teoria que se afirma pura é, obviamente, puro solipsismo. A Teoria Pura do Direito, nesse aspecto, está em conflito com a realidade. O Direito é essencialmente dever ser e o Estado, ser, e ambos estão em relação dialética, em retroalimentação recíproca.

O Direito programa e empodera o Estado, que configura e realiza o Direito, e essa interação é dinâmica e contínua, e submete-se a algum grau de controle social, mesmo nas mais austeras ditaduras.

O Estado não dá à luz o Direito para em um segundo momento ser concebido com ele. Estado e Direito não surgem instantaneamente prontos, mas são construídos no tempo. Como qualquer pessoa capaz de direitos, o Estado concorre na criação do Direito, mas ao mesmo tempo é constrangido pelo Direito.

O Estado não pressupõe necessariamente o Direito, nem o Direito não pressupõe necessariamente o Estado. Direito e Estado quase que se pressupõem mutuamente apenas na Era Moderna.

Mais recentemente, o eclipse entre Estado e Direito, que nunca foi total, começa a desfazer-se. A Ciência do Direito começa a se ocupar de micro-estruturas jurídicas extra-estatais, como o faz a abordagem do Direito Achado na Rua, e com macro-estruturas jurídicas extra-estatais, como o Soft Law.

A fusão entre Estado e Direito pretendida por Kelsen, ademais, não resolve o problema da manipulação do Direito pelo Estado. Se o Estado é o Direito, a quem recorrerá a sociedade quando o Estado-Direito se tornar opressor?

Para blindar o Direito, em vez de fundi-lo com o Estado, Kelsen deveria ter proposto uma inversão: não é o Estado que deve dar o Direito, mas é o Direito que deve dar o Estado. Essa ilação, porém, à luz da Teoria Pura, seria objeto da Ciência Política, e não do Direito Positivo.

O Direito controla o Estado até certo ponto, mas mesmo ao Estado mais democrático de que se tem notícia reserva-se uma margem de discricionariedade imune a qualquer constrangimento jurídico, controlável tão somente por mecanismos da política.

Poderia se objetar que é o Direito que define esses graus de liberdade. Parece muito mais plausível a hipótese de que é o poder social que constitui o próprio Direito e as limitações intrínsecas deste (não é possível nem conveniente a regulação total do mundo da vida) é que concorrem para a demarcação do espaço de atuação do Estado sujeito apenas ao controle político.

Um dos efeitos colaterais do monismo Estado-Direito é contaminar o próprio objeto da análise e arruinar, por consequência, a capacidade explicativa da Teoria Pura. Esta dá conta de explicar não o Direito com que se depara na ordem empírica, mas aquele que é reelaborado conceitualmente para encaixar-se no sistema kelseniano. O Direito, na Teoria Pura, é mais que uma estrutura normativa a incidir sobre a realidade: é essa estrutura condensada na realidade.

A purificação que Kelsen promove, então, não é substancial e procedimental, como alegam muitos de seus detratores (por todos, Vasconcelos, 2003, 107), nem meramente procedimental, como defendia o próprio: é sobretudo uma purificação conceitual. Kelsen não parte dos fatos para o conceito, mas do conceito para os fatos.

Outra externalidade da concepção monista do Estado é a redução da unidade de análise da Ciência Jurídica. Só cabe a essa ciência a análise do Direito e nada mais; e se o Direito é o Estado, ficam de fora o Direito internacional (que Kelsen considera em estágio rudimentar) e o Direito extra-estatal (que Kelsen simplesmente ignora).

A dinâmica do Direito, na Teoria Pura, é simplesmente o processo por meio do qual a norma transforma a realidade. Entretanto, essa dinâmica deveria abarcar também o ciclo de vida total do próprio Direito, desde suas origens rudimentares até seus desenvolvimentos últimos.

O Direito da Teoria Pura tem um substrato formalista. É preciso, porém, atentar-se para a advertência de Miguel Reale, de que essa abordagem não é informada por um formalismo transcendental [04].

A Teoria Pura consiste em um formalismo que tem pretensão constitutiva em relação à realidade em que está referenciado. Então, pode tomar da realidade o Estado e reprocessá-lo em conformidade com suas premissas metodológicas e ainda negar a validade de qualquer análise concorrente. É, assim, um solipsismo esquizofrênico. Que teoria, porém, não o é em alguma medida?

O Estado entendido como um conjunto de atos concretos ou como manifestação de poder é irrelevante e deve ser diluindo na noção de ordem jurídica. "O que existe como objeto do conhecimento é apenas o Direito" (op. cit., 346).

É por essa razão que não faz sentido, em seu entendimento, sujeitar o poder do Estado ao Direito ou ainda descolar o Estado do Direito. As ações imputadas ao Estado e o próprio poder do Estado seriam, dessa forma, meras normas incidindo no campo da realidade.

Sobre o autor
Edvaldo Fernandes da Silva

Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, da Universidade Cândido Mendes (IUPERJ-UCAM), especialista em Direito Tributário pela Universidade Católica de Brasília (UCB), bacharel em Direito e em Comunicação Social-Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professor de Direito Tributário em nível de graduação e pós-graduação no Centro Universitário de Brasília (UniCeub); e de Pós-Graduação em Ciência Política no Instituto Legislativo Brasileiro (ILB) e advogado do Senado Federal (de carreira).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Edvaldo Fernandes. O Estado transnormativo e a democracia em Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3020, 8 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20163. Acesso em: 23 dez. 2024.

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