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O transconstitucionalismo como instrumento de diálogo entre o Secularismo e o Islã

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Agenda 05/11/2011 às 08:06

5.Transconstitucionalismo e os limites do secularismo estatal

Diante do movimento que busca encorpar o conceito do secularismo, resta aos irresignados desafiar os limites do controle estatal na seara religiosa através das diferentes instâncias judiciais. Estando-se diante de uma questão de direitos humanos, regulada por instâncias nacionais e transnacionais de jurisdição, fica clara a possibilidade de utilização do transconstitucionalismo para a demarcação definitiva dos limites da regulação estatal nesta seara.

Um dos primeiros casos onde tal questão foi tratada pela Corte Européia de Direitos Humanos foi o caso Dahlab v. Switzerland [06]. No caso concreto, a professora primária A. Dahlab havia sido proibida de dar aulas vestindo o véu islâmico. Sopesando os direitos em questão (o direito da professora de manifestar a sua religião x o direito dos estudantes infantes de serem preservados em um ambiente religioso harmônico), a Corte concluiu que a proibição estabelecida não era desarrazoada.

Interessante notar que, em sua decisão, a Corte Européia reiterou o posicionamento de que os Estados-Membros possuíam uma margem de apreciação na definição do nível de interferência necessária para garantir o secularismo estatal, frente à liberdade religiosa. Tais interferências, no entanto, estariam sujeitas a revisão por parte da Corte Européia, cuja missão seria determinar se as medidas adotadas estavam devidamente justificadas, ao se poder identificar a relevância e suficiência das mesmas em proporcionar o objetivo perseguido.

São justamente estas revisões, procedidas pela corte transnacional, onde são construídos os diálogos necessários para alcançar-se a solução cooperativa definitiva para as questões problemáticas que lhe são apresentadas.

Outro caso emblemático foi Lautsi v. Italy [07]. Nele, discutiu-se se a utilização de crucifixos nas salas de aula de uma escola pública era uma prática contrária ao princípio do secularismo do Estado italiano.

A demandante arguia que, ao utilizar os crucifixos nas salas de aula, o Estado dava à Igreja Católica uma posição privilegiada, que gerava uma interferência indevida da Itália em sua liberdade de consciência e de crença. Além disso, violava-se o direito da demandante em educar os seus filhos em conformidade com as suas convicções morais e religiosas.

Outrossim, tal utilização seria uma forma de discriminação contra os não-católicos. Ao usar os crucifixos em locais públicos, dava-se a impressão que o Estado havia aderido a uma determinada religião.

Por sua vez, o Estado Italiano colocou, entre as suas argumentações, que, apesar da cruz ser um símbolo religioso, ele tem outras conotações. A cruz possui um significado ético que pode ser entendido e apreciado, independentemente de adesão religiosa ou da tradição histórica de qualquer pessoa. Em suma, a mensagem da cruz é humanista, podendo ser lida, independentemente, da dimensão religiosa.

A Corte Européia entendeu que o Estado deveria evitar de impor crenças, mesmo que indiretas, nos locais onde as pessoas são dependentes ou onde elas são, particularmente, vulneráveis. Neste diapasão, as escolas infantis são locais particularmente sensíveis, onde o poder do Estado pode impor crenças em mentes muito jovens que não possuem um senso crítico muito desenvolvido.

Como se vê, a Corte Européia acabou por definir um limite claro para o secularismo italiano. Na visão da Corte, o Estado tem o dever de manter a neutralidade confessional na educação pública, onde o ensino de um pensamento crítico é que deve ser dominante. Ao Estado Italiano, é vedado impor, mesmo que indiretamente, qualquer tipo de crença.

Outra situação aonde o secularismo vem sendo fortemente tensionado é na questão da política de aculturação dos imigrantes nos países europeus, especialmente os islâmicos. Sabe-se que, a partir do ataque terrorista de 11 de setembro, os mulçumanos passaram a ser alvo de uma maior desconfiança do mundo ocidental. Países como a França e a Holanda passaram a ter uma maior preocupação com a integração destes imigrantes.

Digno de nota é a mudança de posicionamento ocorrida na Holanda (MAUSSEN, 2010). A princípio, este país adotava um modelo de ‘diversidade cultural’, onde havia uma política específica de integração dos imigrantes, que eram vistos como uma comunidade ou grupo. Atualmente, esta política multicultural vem sofrendo fortes críticas.

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Os novos requisitos para a entrada de imigrantes, naquele país, envolvem o aprendizado sobre as bases da sociedade holandesa e sua língua. Objetiva-se, com isso, a realização de um grande esforço para a adaptação do imigrante aos valores e normas da sociedade holandesa. Como se vê, houve um endurecimento das normas imigratórias, o que vem se tornando uma tônica nos membros da Comunidade Européia.

No meio desta discussão, deve-se destacar o potencial diálogo transconstitucional que pode ser desenvolvido em algumas questões. BARRAS (2010) traz alguns casos em que tal possibilidade resta bastante clara devido ao lobby desenvolvido por algumas organizações civis.

Ela coloca que, na França, após a proibição do uso do véu em espaços públicos pela lei de 2004, houve algumas tentativas de extensão desta regra para escolas primárias e secundárias. Como tal extensão não era prevista pela lei, os membros do Collectif Contre L'Islamophobie en France - CCIF (organização civil que visa combater, na sociedade francesa, a discriminação e o medo ao Islã) começaram a utilizar uma argumentação com base nos direitos humanos para demonstrar tal ilegalidade.

Em um desses casos, a CCIF garantiu o direito de algumas mães islâmicas, que costumavam usar o véu, a participarem de eventos escolares externos. Tal direito havia sido negado em função da aplicação extensiva da referida lei de 2004. A CCIF argumentou que as escolas não tinham base legal para fazer tal proibição, já que essas mulheres não eram nem servidoras públicas e nem estudantes. Com isso, elas poderiam participar destes eventos, independente de qualquer vestuário. Para a CCIF, esta proibição era uma clara violação ao princípio da laïcité, já que este princípio deveria proteger o pluralismo e a liberdade religiosa, tanto na esfera pública como na particular.

A forma de trabalho da CCIF baseia-se, inicialmente, no diálogo. Somente nos casos de insucesso desta prática é que se privilegia a discussão judicial com vistas à resolução formal da questão. Tendo em vista que a argumentação utilizada é baseada nos direitos humanos e que a própria organização tem envidado esforços para interagir junto a outros organismos internacionais, não se há de duvidar que, mais cedo ou mais tarde, um de seus casos chegará à Corte Européia de Direitos Humanos, dando mais um passo para a redefinição transconstitucional dos limites do secularismo.

A Turquia foi parte de um caso onde a utilização do transconstitucionalismo restou mais patente (Kavakci v. Turkey [08]). Em 1999, Merve Kavakci foi a primeira turca eleita pelo Partido da Virtude Islâmica. No momento em que iria tomar posse do seu cargo eletivo, Kavakci foi para o parlamento usando o seu véu. Apesar das normas regulamentares do parlamento turco não proibir nenhum tipo de vestimenta, ela foi expulsa do recinto, antes mesmo de tomar posse. Alegou-se, para tanto, que ela infringiu a legislação secular daquele país, sendo banida da política por 5 (cinco) anos.

Como resposta a esta afronta, Kavacki usou o seu direito de ação na Corte Européia de Direitos Humanos, que decidiu, em abril de 2007, que a Turquia violou o artigo 3º do Protocolo 1 da Convenção de Direitos Humanos Europeu. Tal artigo garante a liberdade de expressão e de opinião do povo na escolha de seus representantes. Em sua decisão, a Corte Européia considerou a pena desproporcional aos objetivos visados: a preservação da natureza secular do sistema político turco.

Pelo teor da decisão, fica patente que a Corte Européia não quis apreciar os limites do secularismo no Turquia. Provavelmente, a Corte não quis interferir em tal assunto, tendo em vista as condições políticas peculiares daquele país (BARRAS, 2010). Isto, por si só, demonstra a sensibilidade da Corte Transnacional em considerar as particularidades do caso concreto e do país membro envolvido, fato este que demonstra, cabalmente, a preocupação com a formação de um diálogo cooperativo entre as diferentes instâncias.

Em outra oportunidade, a mesma Corte Européia, mais uma vez, demonstrou tal sensibilidade, ao decidir o caso Sahin v. Turkey [09]. A celeuma originou-se quando a estudante de medicina Leyla Sahin foi impedida de continuar os seus estudos na universidade de Istambul devido ao uso do véu islâmico. Em sua decisão, a Corte Européia entendeu que as restrições estabelecidas ao uso do véu eram justificadas em função do contexto "especial" daquele país, onde a maioria da população aderia à religião islâmica.

Como se pode perceber, a discussão com base nos direitos humanos fornece um meio interessante para desafiar os limites do secularismo do Estado. Sendo um ponto nevrálgico nos dias atuais, as discussões sobre a efetivação destes direitos apresentam uma ampla rede de proteção, tanto no âmbito nacional como transnacional. É neste ponto que o transconstitucionalismo fornece o ferramental necessário para o estabelecimento de limites claros para o secularismo, através do diálogo construtivo entre as diferentes ordens jurídicas envolvidas (nacionais e transnacionais).


6.Conclusões

Nas últimas cinco décadas, o sistema de proteção internacional aos direitos humanos desenvolveu-se de forma extraordinária. Tal sistema visa à proteção dos direitos dos seres humanos e não dos Estados, tanto no âmbito nacional como internacional.

Claro fica que a sobreposição de Ordens Jurídicas para a salvaguarda de um mesmo conjunto de direitos, acaba por provocar possíveis colisões entre elas. Tendo tal fato em mente, Marcelo NEVES (2009) realizou um estudo aprofundado do tema, propondo como solução a efetivação de um diálogo cooperativo entre os ordenamentos jurídicos envolvidos/entrelaçados. A tal diálogo, ele denominou de transconstitucionalismo.

Assim, a reconstrução do significado das normas constitucionais de um Estado passa a ter uma nova fonte para a sua modernização: as decisões transnacionais ou a solução/experiência de outros Estados que passaram pelo mesmo problema.

Um exemplo típico da efetivação de tal diálogo se dá com a recente discussão sobre o secularismo estatal. Como se sabe, após os últimos ataques perpetrados pelos fundamentalistas islâmicos, os países da comunidade européia endureceram as suas regras seculares.

Em prol de uma maior coesão social, países como França, Holanda, Turquia, Suíça e Alemanha baniram ou buscam banir a utilização do véu islâmico do tipo burca. Tal véu, apesar de significar "modéstia de vestir" na cultura islâmica, passou a ser considerado um dos maiores símbolos do fundamentalismo radical islâmico.

Resta patente a colisão entre a liberdade religiosa e a atuação estatal com vistas a garantir o secularismo. A pergunta que fica no ar é: qual o limite da atuação do Estado no estabelecimento das "fronteiras" do secularismo?

A melhor resposta a ser dada está, justamente, no diálogo transnacional que vem se desenvolvendo na Europa. Tal diálogo é uma verdadeira instanciação do transconstitucionalismo, que vem auxiliando, de forma decisiva, no estabelecimento dos limites da separação entre o Estado e a Religião.

De acordo com as leituras dos casos apresentados, vê-se que a Corte Européia de Direitos Humanos tem tido a preocupação de atentar para as peculiaridades dos Estados envolvidos. Isto tem facilitado a sua aceitação e demonstra a correção do pensamento do autor pernambucano Marcelo Neves.


REFERÊNCIAS

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BARRAS, Amélie. Using rights to re-invent secularism in France and Turkey. Disponível em <http://cadmus.eui.eu/dspace/bitstream/1814/8870/1/RSCAS_2008_20.pdf>. Acessado em 19/09/2010.

BENSON, Iain T. Notes towards a (re)definition of the "secular". Disponível em <http://ssrn.com/abstract=1654455>. Acessado em 20/09/2010.

CINAR, Alew. Secularism and islamic modernism in Turkey. Disponível em <http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/etn/v10n1/v10n1a04.pdf>. Acessado em 21/09/2010.

COGGIOLA, Osvaldo. Islã histórico e islamismo político. Disponível em <http://www.insrolux.org/textos07/islamismocoggiola.pdf>. Acessado em 22/09/2010.

COSTA, Alexandre Araujo. O Transconstitucionalismo de Marcelo Neves. Disponível em <http://groups.google.com/group/politicaedireito/browse_thread/thread/ecccab8d1dc6e18a>. A-cessado em 19/09/2010.

KONOLD, Carrie S. Shari’ah and the secular state: Popular support for and opposition to islamic family law in Senegal. Disponível em < http://deepblue.lib.umich.edu/bitstream/2027.42/75839/1/ckonold_1.pdf>. Acessado em 20/09/2010.

MAUSSEN, Marcel. Representing and regulating Islam in France and in the Netherlands. Disponível em <http://www.ces.fas.harvard.edu/conferences/muslims/Maussen.pdf>. Acessado em 19/09/2010.

NEVES, Marcelo. Entrevista concedida ao Conjur. Disponível em <http://justicasuprema.blogspot.com/2009/07/o-que-e-transconstitucionalismo.html>. Acessado em 19/09/2010.

_______. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito constitucional Internacional. 10ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

ROY, Olivier. Secularism confronts islam. New York: Columbia University Press, 2007.

TIBI, Bassam. Islam between culture and politics. Londres: Palgrave, 2001.


Notas

  1. Livre tradução de "rests on three inextricably linked values: freedom of conscience, equality in law of spiritual and religious persuasions, neutrality of the political authorities".
  2. Livre tradução de "In a secular state, no official status is given to religion. No religious community can say the state belongs exclusively to it. No one is compelled to pay tax for religious purposes or to receive religious instruction. No automatic grants to religious institutions are available".
  3. Livre tradução de "The privileged place for meetings and exchanges, where everyone can come together bringing the best to the national community. It is the neutrality of this public space that enables the different religions to harmoniously co-exist".
  4. Livre tradução de "Globalisation does not only refer to the process linking the diverse parts of the world to one another, but also to the mapping of the world into one globalised system. The ‘Revolt against the West’ is distinctly a revolt against this very system designed along Western lines. The emergence of political Islam is based on a re-politicisation of religion and on the instrumental use of its cultural symbols in pursuit of political ends. This is the Islamic expression and variety of the ‘Revolt against the West’. Political Islam is in the global context an articulation of this revolt. An interpretation of political religion in the societies involved, shows it as a result of rapid social change. From this point of view political Islam is also the result of the missing cultural accommodation of change in terms of the effort needed to ‘Rethink Islam’, as well as the articulation of a civilisation-awareness against the West."
  5. Livre tradução de "The more rapid the social change, the more indeterminable the environment becomes for individuals as personal systems living in a state of transition, and the more marked the need for religion to maintain identity in the process of change. Change is perceived as an out-and-out threat, and a longing for the past is cultivated as a result. A restoration of what has been repressed by the alien and a yearning for a return of overlaid indigenous elements, underlie a parallel reorientation of thought aimed at political action".
  6. Disponível em < http://baer.rewi.hu-berlin.de/w/files/l_adr/dahlab_echr_2001_4239398.pdf>
  7. Disponível em <http://www.echr.coe.int/echr/resources/hudoc/lautsi_and_others_v__italy.pdf>
  8. Disponível em < https://wcd.coe.int/wcd/ViewDoc.jsp?id=1115449>.
  9. Disponível em < http://portal.coe.ge/downloads/Judgments/LEYLA%20SAHIN%20v%20TURKEY.pdf>.
Sobre o autor
Bruno de Oliveira Lira

Advogado. Especialista em Direito Processual. Mestrando em Ciência Jurídica pela Faculdade de Direito do Recife.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIRA, Bruno Oliveira. O transconstitucionalismo como instrumento de diálogo entre o Secularismo e o Islã. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3048, 5 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20351. Acesso em: 20 nov. 2024.

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