1. Introdução
Em um mundo globalizado, muitos dos problemas constitucionais a serem enfrentados já não mais se restringem aos limites geográficos de um único país. Acordos internacionais criam novos direitos e novas instâncias de jurisdição para a proteção das liberdades individuais.
Com isso, o grande problema da atualidade reside na determinação de quem dará a última palavra, ou seja, a solução final para estas questões. Marcelo NEVES (2009) aborda tal problema em sua última obra – Transconstitucionalismo. Através da idéia de cooperação e diálogo entre as ordens jurídicas envolvidas, é possível que, em um processo de aprendizado, achem-se soluções mais apropriadas para os problemas transnacionais.
Uma destas questões que vem tomando um maior vulto cotidianamente é a manifestação da religiosidade na esfera pública, seja feita pelo Estado (a utilização de símbolos religiosos em repartições públicas afeta a minha liberdade de crença?) ou pelos particulares (veda-se ou não a utilização do véu islâmico?). Em especial, os imigrantes/descendentes de islâmicos são os que mais têm sentido este problema na pele. Isto se deve ao atual estado de desconfiança que o mundo ocidental tem depositado sobre eles.
Como se pode perceber, tais questões têm um forte assento nos direitos humanos. Há uma clara contraposição entre o secularismo do Estado e a liberdade de crença e consciência dos indivíduos.
Restando demonstrada, nestas breves linhas, a relevância do tema, propõe-se neste trabalho mostrar como o transconstitucionalismo vem e pode ser utilizado para dar uma resposta a este conflito. Através dele, os limites do secularismo estatal vêm sendo desafiados e redefinidos.
Inicia-se o trabalho com uma sucinta exposição dos principais conceitos que envolvem a questão: que vem a ser o transconstitucionalismo, qual a visão moderna do secularismo e como melhor entender o Islã (será ele uma simples religião, uma cultura ou uma ideologia?). Por fim, demonstra-se como o transconstitucionalismo vem trabalhando com esta temática, através de alguns casos concretos que foram julgados pela Corte Européia de Direitos Humanos.
2.O que é o Transconstitucionalismo?
"Transconstitucionalismo" tem um significado específico para Marcelo NEVES (2009). A princípio, tal termo poderia deixar a entender que o autor pernambucano defenderia a formação de uma constituição supranacional, ou seja, uma constituição que transbordasse das fronteiras dos Estados. No entanto, segundo sua visão, o termo deve ser entendido como uma proposta de compreensão do diálogo existente entre sistemas constitucionais.
O modelo transconstitucional rompe com o dilema "monismo/pluralismo". A pluralidade de ordens jurídicas implica, na perspectiva do transconstitucionalismo, a relação complementar entre identidade e alteridade. As ordens envolvidas na solução do problema constitucional específico, no plano de sua própria autofundamentação, reconstroem continuamente sua identidade mediante o entrelaçamento transconstitucional com a(s) outra(s): a identidade é rearticulada a partir da alteridade. Daí por que, em vez da busca de uma Constituição hercúlea, o transconstitucionalismo aponta para a necessidade de enfrentamento dos problemas hidraconstitucionais mediante a articulação de observações recíprocas entre as diversas ordens jurídicas da sociedade mundial. (NEVES, 2009, p. XXV)
Assim, o transconstitucionalismo pode ser visto como sendo o "entrelaçamento de ordens jurídicas diversas, tanto estatais como transnacionais, internacionais e supranacionais, em torno dos mesmos problemas de natureza constitucional" (NEVES, 2010, p. 1). A principal característica deste processo é o fato de uma mesma questão de natureza constitucional ser enfrentada, concomitantemente, por diversas ordens. Hodiernamente, os problemas de direitos fundamentais e limitação de poder são os mais propensos a gerarem tal espécie de diálogo.
Neste diapasão, pode-se pensar que todos os Estados Nacionais compõem um sistema social global. Pela teoria dos sistemas, esta sociedade global é composta por vários outros sistemas (subsistemas) diferenciados entre si, onde se pode destacar o sistema jurídico. O que vai caracterizar tal subsistema nesta sociedade global é o fato dele também ser multicêntrico, sendo caracterizado por NEVES (2009, p. 235) como sendo um "sistema de níveis múltiplos", no qual "nenhuma das ordens pode apresentar-se legitimamente como detentora da ultima ratio discursiva" (NEVES, 2009, p. 237).
Como bem aponta Alexandre COSTA (2010, p. 9), a inter-relação entre as diversas ordens jurídicas não se dá segundo um modelo interno/externo, onde cada ordem trataria as outras como externas ao sistema, mas segundo um modelo centro/periferia, ou seja, cada ordem enxerga as demais como integrantes do mesmo sistema global. Assim, a relação transconstitucional entre ordens jurídicas
não resulta apenas das prestações recíprocas (relações de input e output), interpenetrações e interferências entre sistemas em geral, mas sobretudo de que as diversas ordens jurídicas pertencem ao mesmo sistema funcional da sociedade mundial, sistema que pretende reproduzir-se primariamente como base em um mesmo código binário, a diferença entre lícito e ilícito. (NEVES, 2009, p. 125).
É a partir do preenchimento do conteúdo do código binário que se abre a possibilidade de convívio construtivo entre as ordens jurídicas em entrelaçamento, na busca da solução do problema transconstitucional. Atualmente, conforme ressaltado anteriormente, um dos problemas que vem sendo alvo desta "análise transconstitucional" é o secularismo.
3.Secularismo
Secularismo é uma das principais características das sociedades ocidentais contemporâneas. Ele é geralmente entendido como sendo a separação explícita da religião do funcionamento do Estado e da regulação da sociedade civil. De uma forma bem simplista, pode-se colocar que o conceito de secularismo é composto tanto pela idéia da separação entre o Estado e a religião (secularismo-como-separação), como pela própria neutralidade estatal em face de questões religiosas (secularismo-como-neutralidade).
Apesar de serem largamente aceitas, tais idéias já não representam um significado totalizante para o termo. Há uma forte tendência atual para incrementar o seu conteúdo, buscando associá-lo a outras idéias, tais como liberdade de consciência e religião, tolerância, pluralismo, igualdade, razão, democracia, entre outros.
Maurice BARBIER (2010) traz um exemplo desta tendência, através do resultado final da Comissão Stasi, que foi instituída na França em dezembro de 2003. Tal comissão recebeu a incumbência de esclarecer o conceito e definir as aplicações do secularismo. Logo na introdução do seu relatório final, a comissão aponta que o secularismo "descansa em três valores indissociáveis: liberdade de consciência, igualdade na lei das crenças e religiões e neutralidade das autoridades estatais" [01]. Como se vê, tal definição já acrescenta, ao conceito inicialmente apresentado do secularismo, as noções de liberdade de consciência e igualdade, perante a lei, das crenças e religiões.
Amélie BARRAS (2010) lembra que o secularismo é um fenômeno social que assume diferentes formas nos vários países. Enquanto política pública, o secularismo é fortemente influenciado pelas experiências políticas e históricas de cada povo. Provando tal fato, Carrie KOBOLD (2010, p. 20) traz, em sua tese de doutoramento, um interessante quadro que demonstra a diversidade do relacionamento entre Estado e Religião:
Estados Teocráticos |
Estados com uma religião estabelecida |
Estado Secular |
Estado contrário a religião |
|
Legislação e judiciário |
Baseados na religião |
Secular |
Secular |
Secular |
Atitude do Estado em face das religiões |
Oficialmente favorece a uma delas |
Oficialmente favorece a uma delas |
Oficialmente favorece a nenhuma delas |
Oficialmente é hostil para todas as religiões |
Exemplos |
Vaticano, Irã e Arábia Saudita |
Grécia, Dinamarca e Inglaterra |
EUA, França, Turquia, Senegal e Índia |
China, Coréia do Norte e Cuba |
Total |
10 |
100 |
95 |
22 |
Pela tabela acima, constata-se que, apesar do termo "estado secular" designar um conceito único, na prática, há uma grande quantidade de espécies em sua categoria.
Rajeev BHARGAVA (2010) faz algumas distinções entre as diferentes espécies de estados seculares. Primeiramente, ele define o Estado Teocrático, como sendo aquele onde há uma união com uma ordem religiosa particular. Estes Estados são governados pelas próprias lideranças religiosas, tendo como base as leis divinas.
Tais estados diferem daqueles que estabelecem uma (ou várias) religião (ões). Nestes, a religião possui um reconhecimento oficial e legal. Apesar do benefício mútuo gerado por essa aliança (religião e Estado), não é a ordem religiosa que governa o país. Há um mínimo de diferenciação institucional entre estas instituições.
Por sua vez, os Estados Seculares distinguir-se-iam dos anteriores por três níveis de desconexão: (1º) fins, (2º) instituições e (3º) política pública e direito. Para BHARGAVA (2010, p. 7)
No Estado Secular, nenhum status oficial é dado para a religião. Nenhuma comunidade religiosa pode dizer que o Estado lhe pertença exclusivamente. Ninguém é compelido a pagar taxas por razões religiosas ou para receber instruções referentes à fé. Nenhum subsídio é garantido, de forma automática, para as instituições religiosas. [02]
É, justamente, no terceiro nível de distinção (política pública e direito) onde se enquadram a França e a Turquia. A relevância destes países para o presente trabalho reside no fato de ser nestes Estados que o secularismo está passando por um forte momento de tensão.
Analisando especificamente o Estado francês, vemos que o secularismo é um dos seus fundamentos mais importantes. Ao garantir que as instituições francesas sejam seculares, a França acaba por assegurar: liberdade de consciência e de adoração, liberdade para as igrejas perante a lei (não há nenhuma religião oficial), direito a locais de culto, neutralidade das instituições em face das religiões e liberdade de educação. Tal separação, apesar de, inicialmente, ter sido difícil de ser aceita por grande parte da população, levou gradualmente para um estado de coesão social em volta dos valores e princípios seculares. Nas palavras do Presidente Jaques Chirac:
O local privilegiado para encontros e compartilhamentos, onde todos podem se juntar e trazer o melhor para a comunidade nacional. É a neutralidade deste espaço público que habilita diferente religiões a co-existirem harmoniosamente [03]. (apud BARRAS, 2010, p. 9)
Um dos motivos de tão grande relevância do secularismo é o fato de muitos franceses acreditarem que os indivíduos alcançam a liberdade "através do" e não "do" Estado. Isso faz com que ele (Estado) seja considerado o responsável pela preservação do bem comum e da ordem pública. Com isto, um de seus deveres é regular e restringir a liberdade religiosa para a esfera particular quando necessário para preservação de tais objetivos.
A grande preocupação atual do estado francês é com relação ao Islã. Como a França recusa-se a adotar qualquer tipo de política multicultural de incorporação dos imigrantes como comunidades ou grupos, há fortes tensões entre as práticas islâmicas e o secularismo. Alguns dos temas em discussão são: o uso do véu, os imãs, as escolas islâmicas, as mesquitas (tamanho, localização, etc), o fundamentalismo, a radicalização e a blasfêmia.
Na Turquia, apesar de não mais ter uma religião oficial, o Estado controla o Islã através de um órgão oficial - o Diretório Estadual para Assuntos Religiosos (DEAR). Este órgão é supervisionado pelo Primeiro Ministro e tem por competência a nomeação da liderança religiosa turca, bem como pelo controle do treinamento e da educação religiosa. A idéia da formação de uma esfera pública, livre dos símbolos religiosos, tem obtido uma maior relevância para as elites seculares turcas nos últimos 20 anos.
Como se vê, a institucionalização do secularismo na Turquia não envolve uma exclusão, mas um rígido controle da inclusão do Islã na esfera pública. Isto, por si só, já é um grande diferencial com relação à experiência francesa. É através deste gesto de inclusão que a autoridade secular é consolidada no Estado.
Apesar de todo esse controle, no final da década de 80 do século passado, começaram a surgir alguns discursos islâmicos autônomos dentro da esfera pública turca. Com isso, uma nova onda de debates, acordos e contestações se seguiram.
Como se pode perceber, o Islã, atualmente, apresenta-se como um grande problema a ser enfrentado pelo secularismo. A tensão causada por ele está presente tanto em um ambiente que busca excluí-lo da esfera pública como naquele que tenta regular sua inclusão.
4.Islã
O Islã é, ao mesmo tempo, uma religião mundial e um sistema cultural. Enquanto religião, Islã significa paz, sendo que seus seguidores acreditam que Maomé foi o último de uma série de profetas enviados por Deus.
Apesar dos muçulmanos colocarem que existe apenas um único Islã, cada um tem a sua própria visão. Esta pode variar do liberal – aquele que rejeita o uso do véu e que consome bebidas alcoólicas - para o fundamentalista – aquele que mata em função da interpretação literal da letra da lei. Assim, o verdadeiro Islã pode variar entre versões fundamentalista, liberal ou até mesmo secular.
Desde a sua fundação, a religião islâmica tratou de algumas questões políticas: a criação da paz islâmica na Arábia, da comunidade islâmica (umma) com a associação das tribos árabes e do califado para governar após a morte de Maomé. Hodiernamente, conforme as colocações de Bassam TIBI (2001), esta interferência do Islã no sistema político passou a ser uma ideologia, relacionada com a politização dos conceitos e símbolos culturais islâmicos.
Tal movimento (politização do Islã) vem como uma resposta à globalização. Para TIBI (2010, p. 101):
Globalização não se refere apenas ao processo de conexão entre as diferentes partes do mundo, mas também ao mapeamento do mundo em um sistema globalizado. A ‘Revolta contra o Ocidente’ é, distintamente, uma revolta contra este mesmo sistema construído pelas linhas ocidentais. A emergência do Islã político está baseada na re-politicização da religião e no uso instrumental dos seus símbolos culturais para perseguir fins políticos. Esta é a expressão islâmica e uma variável para a ‘Revolta contra o Ocidente’. O Islã político é, em um contexto global, uma articulação desta revolta. Uma interpretação político-religiosa nas sociedades envolvidas, mostra-o como resultado de uma célere mudança social. Deste ponto de vista, o Islã político é também um resultado da falta de acomodação cultural da mudança em termos de esforço necessário para ‘repensar o Islã’, assim como a articulação de uma civilização contra o Ocidente. [04]
Em outras palavras, a doutrina islâmica tem dificuldade de conceber mudanças, necessidade esta que é trazida pelo processo de globalização. Como os fatores que forçam esta transformação são externos ao contexto social, a sociedade islâmica considera-os como ameaças a seu status quo. Com isso, os muçulmanos são "obrigados" a reagirem a esta tendência, já que aderiram a um sistema cultural que, a princípio e por dogma, seria imutável.
Quanto mais rápida a mudança social, maior se torna a indeterminabilidade do ambiente para os indivíduos enquanto sistemas pessoais que vivem neste estado de transição, e mais marcantes é a necessidade da religião em manter a identidade no processo de mudança. Mudança é percebida como uma ameaça, gerando, por consequência, uma aspiração pelo passado. Uma restauração do que foi represado pelo externo e um anseio pelo retorno dos elementos autóctones que se foram marcam uma reorientação paralela do pensamento visando à ação política [05]. (TIBI, 2001, p. 125)
Como resposta a esta ameaça externa, o Islã político passa a atacar o secularismo. Para os fundamentalistas, o secularismo é uma forma de invasão intelectual do mundo islâmico. Em sua visão, seria uma forma de reduzir a religião islâmica a uma mera cultura. Diante de tal processo, há uma veemente oposição a esta idéia por parte dos fundamentalistas, o que torna a politização do Islã a única solução pró-futuro.
Como se vê, a luta do Islã pela permanência de suas tradições confronta-se, diretamente, com o secularismo estatal. Conforme pode ser depreendido, eis a atual tensão por que passa o conceito de "secularismo" na atualidade. Tendo em vista que a questão perpassa os limites geográficos dos estados, apenas o transconstitucionalismo pode trazer respostas definitivas para o problema.