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O problema da discricionariedade judicial.

Existe uma única resposta correta para os casos difíceis?

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Agenda 09/12/2011 às 13:10

4. A TESE DE RONALD DWORKIN ACERCA DA ÚNICA RESPOSTA CORRETA

As teses positivistas de KELSEN e HART de que, quando chamado a decidir um caso considerado difícil, o juiz disporia de discricionariedade para decidi-lo em favor de quaisquer das partes envolvidas no processo, é frontalmente combatida por DWORKIN. Não se admite que o juiz introduza novos direitos para serem aplicados, retroativamente, ao problema em questão. Mesmo nos casos difíceis, quando não há claramente uma resposta prevista pelo ordenamento, é dever do juiz descobrir no sistema jurídico quais os direitos das partes, sem inventar retroativamente direitos novos. O juiz não pode atuar como legislador (DWORKIN, 1981, p. 05).

Na exposição da teoria forte da unidade de solução correta, DWORKIN parte do estabelecimento de uma tese dos direitos em que distingue argumentos de princípio (arguments of principle) e argumentos de política (arguments of policy). Estes fundamentam uma decisão política, sob a justificativa de que contribuem à satisfação ou proteção de algum objetivo da sociedade como um todo. Já os argumentos de princípio fundamentam a decisão, sob a justificativa de que a mesma respeita ou garante algum direito individual ou coletivo (DWORKIN, 1981, p. 07).

Neste sentido, DWORKIN defende que os indivíduos possuem direitos anteriores e independentes do ato de adjudicação judicial. Eles estão em algum lugar do ordenamento jurídico, no conjunto de normas, princípios e diretrizes políticas, cabendo ao julgador encontrá-los a partir de um processo de construção argumentativa da decisão judicial. Não a partir da criação de direito novo, mas descobrindo o direito previamente estatuído. O juiz não possui discricionariedade para tomar a decisão em determinado sentido, devendo sempre buscar a solução apontada pelo ordenamento jurídico. Como visto, o autor está preocupado em estabelecer uma teoria da decisão judicial.

Não se pode olvidar, por outro lado, que uma análise mais apurada do pensamento dworkiniano permite situar a problemática de saber se os juízes são criadores ou intérpretes do Direito como uma falsa questão. Os juízes são ambos e nenhum.

Quando DWORKIN defende que o juiz não possui discricionariedade para decidir acerca de determinado problema levado a sua jurisdição, está fazendo referência a um sentido forte de discricionariedade. A este se opõe um sentido fraco ou mitigado, pelo qual em determinados casos exige-se certo grau de discernimento na aplicação de certas normas jurídicas. A crítica à tese positivista da discricionariedade judicial se refere, certamente, àquele sentido forte de discricionariedade (DWORKIN, 1989, p. 84-86).

A tese dos direitos de DWORKIN está respaldada por uma teoria forte dos princípios, que garante sua prevalência sempre que postos em contradição com as diretrizes políticas. Assim, cabe ao julgador encontrar a única resposta certa, inclusive para os casos difíceis, que não é algo previamente dado pelo sistema jurídico, podendo ser extraído a partir de um procedimento argumentativo norteado, essencialmente, pela teoria forte dos princípios. Essa tarefa de descobrimento da única resposta justa para todos os problemas práticos, certamente exige um juiz extremamente qualificado e dono de um aguçado poder de discernimento.

O projeto teórico dworkiniano não está pautado por um modelo de interpretação semântica, mas sim pragmática dos princípios à luz de um caso concreto e singular. A única decisão correta ocorre em face de um caso determinado, marcado por um contexto histórico-social. Desta forma, a tese da unidade não está respaldada por um procedimento atemporal que permita conduzir à decisão correta em todos os problemas práticos, até porque a integridade opera caso a caso.

Para tentar resolver essa problemática, DWORKIN estabelece seu conhecido modelo ideal de julgador, o Juiz Hércules, dotado de habilidades, aprendizagem, paciência e agudeza intelectual sobre-humanas, um modelo de juiz onisciente, que conhece o ordenamento jurídico por completo e dispõe de todo tempo necessário para encontrar a única solução correta. O sistema jurídico em que o Juiz Hércules atua não possui lacunas, sendo construído um esquema de princípios abstratos e concretos capazes de proporcionar uma justificação coerente a todos os casos julgados, bem como para as disposições constitucionais e infraconstitucionais (DWORKIN, 1981, p. 44-61).

O Juiz Hércules, onisciente e sobre-humano, sabe que não possui legitimidade para criar normas, sabe também que as partes em conflito buscam uma resposta baseada em um direito próprio e pré-existente. Sua tarefa, portanto, consiste em "desenvolver a melhor e mais coerente teoria que explique e justifique o Direito explícito e, de modo particular, que integre e compreenda todas as exigências que derivam do sistema constitucional" (PRIETO SANCHÍS, 1992, p. 111).

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A confiança de DWORKIN na unidade de solução justa está assentada, além da teoria forte dos princípios, na estrutura peculiar do raciocínio jurídico. Como sustenta o autor, as questões levadas pelas partes à apreciação jurisdicional são mutuamente excludentes, deixando ao julgador somente dois caminhos, reconhecer o direito a uma ou outra das partes. As demandas colocadas ao julgador discutem se um contrato é válido ou não, se uma pessoa é responsável por determinado fato ou não, se houve crime ou não. Não existe uma terceira via, uma resposta intermediária. Todas as pretensões levadas ao juiz devem ser devidamente justificadas, com os argumentos indicativos da existência do direito subjetivo da parte (DWORKIN, 2001, p. 178).

A concepção dworkiniana pode ser melhor entendida a partir da sua tese da fusão, ou quase uma relação de indiferenciação, entre Direito, moral e política. Seu pensamento é marcado por uma concepção objetivista da moral, um modelo de objetivismo axiológico capaz de garantir a completude do Direito, com base em uma idéia de integridade. Para aqueles casos não alcançados pelas normas institucionalizadas explícitas ou que não há claramente uma única solução justa, a moral surge como elemento garantidor da completude do ordenamento jurídico, estipulando um conjunto de princípios implícitos capazes de conduzir a decisão no caminho da única resposta correta. Portanto, mesmo nos casos mais difíceis, quando parece faltar qualquer resposta jurídica, o juiz está submetido ao ordenamento jurídico e deve encontrar a decisão a partir dos princípios explícitos ou implícitos.

O conjunto de princípios sempre deve prevalecer, inclusive quando em confronto com determinados interesses ou objetivos coletivos. O Juiz Hércules justifica sua decisão quando aplica os princípios explícitos ou implícitos em conformidade com os direitos subjetivos dos indivíduos, mesmo que sua decisão contrarie objetivos sociais expressamente estabelecidas. Os direitos subjetivos dos cidadãos devem prevalecer sobre as diretrizes políticas.

Essas concepções de DWORKIN vêm sendo muito mais refutadas que seguidas. Trata-se de uma tese que apresenta poucos pontos favoráveis e muitas objeções. Uma crítica pode ser norteada pela idéia de que suas concepções não servem para todos os sistemas jurídicos, mas somente para os substancialmente justos. Da mesma forma, em um sistema jurídico informado por uma infinidade de princípios explícitos e implícitos, a sua aplicação acarreta certa dose de discricionariedade ou eleição entre alternativas diferentes. Do ponto de vista semântico, tanto a textura aberta e imprecisa dos princípios, como a inexistência de critérios seguros para aferir o peso relativo de cada princípio que compõe o ordenamento, indicam a impossibilidade de defesa da tese da única resposta correta (PRIETO SANCHÍS, 1992, p. 122).

Há que se refutar, ainda, a carga ideológica que vem no bojo da tese da unidade, assegurando uma situação de ausência de responsabilidade dos julgadores como criadores do Direito, o que acaba fomentado a discricionariedade judicial. Pela tese de DWORKIN os juízes apenas descobrem e aplicam um Direito pré-existente, que não está limitado ao conjunto de normas jurídicas expressas, espraiando-se pelos confins da moral e da política, de onde o julgador extrai as razões justificadoras de sua decisão (PRIETO SANCHÍS, 1992, p. 123).

Pelo visto, a proposta de DWORKIN, baseada no alargamento das fronteiras do Direito estrito e no alcance dos limites da moral pela via dos princípios – o que garante a transformação do modelo lacunoso e impreciso do Direito em um sistema claro, completo e objetivo – parece suscitar vários problemas conceituais e até ideológicos. Por outro lado, essa versão forte da tese da única resposta correta, muito embora não tenha conquistado grande número de seguidores, certamente tem contribuído genuína e crucialmente para o debate dos problemas da discricionariedade e da correção das decisões judiciais.


5. A PROBLEMÁTICA NO PENSAMENTO DE AULIS AARNIO

A esta altura, faz-se sumamente relevante a análise do pensamento jurídico-filosófico de AARNIO, que ostenta lugar destacado na metodologia jurídica contemporânea, sobretudo a partir de seu modelo de justificação jurídica baseada na idéia de razoabilidade, o que se pode chamar de uma teoria social da justificação do Direito. Este autor tem oferecido uma contribuição impar à renovação da hermenêutica jurídica, além dos férteis contrapontos às propostas teóricas de DWORKIN e ALEXY [05].

Discutindo acerca do conceito de única resposta correta, AARNIO defende a prévia necessidade de se distinguir entre resposta final e resposta correta. Ora, qualquer sistema jurídico racional, informado pela idéia de Estado de direito, pressupõe a imprescindibilidade de que, em algum momento do processo jurídico, o sistema produza uma decisão aplicável a cada caso particular. Essa resposta final, não necessariamente se constitui na única correta, que implica certos critérios de correção formais e substanciais (AARNIO, 1995, p. 51).

Parece inquestionável que o conceito de única solução correta é ambíguo. Partindo dessa questão, AARNIO divide a noção em duas diferentes versões: a versão forte (DWORKIN), que defende a existência de uma única solução correta para cada caso concreto, solução esta que, por mais escondida que esteja, pode ser encontrada em algum lugar do ordenamento, exigindo a habilidade do juiz para tornar explícito o que está latente no sistema jurídico; a versão fraca ou mitigada (ALEXY), que aceita a existência da resposta correta, mas não concorda que ela possa ser sempre alcançada. O fundamento desta versão é principalmente ideológico, já que a busca pela única resposta correta serve como objetivo norteador da atuação do juiz e do jurista (AARNIO, 1990, p. 24).

AARNIO não segue nenhuma dessas correntes, defendendo que não se pode pretender a resposta correta no raciocínio jurídico, mas sim a resposta melhor justificada em um determinado momento. A explicação para sua tese parte da importância da justificação jurídica. O Estado de direito, sustenta AARNIO, garante um máximo de certeza jurídica para as partes no processo, caracterizando-se essa certeza jurídica, inclusive, como uma expectativa jurídica primária dos membros das sociedades democráticas. As sociedades modernas, desenvolvidas sob um modelo de Estado de bem-estar social, exigem uma concepção de justificação jurídica que afaste a arbitrariedade e a irracionalidade da autuação dos juízes. Exigem, portanto, respostas judiciais que possam ser justificadas de forma racional, a partir de argumentos apropriados (razões) (AARNIO, 1990, p. 25-26).

Mas o que se deve entender por razões apropriadas? Esta questão está visceralmente relacionada com a problemática da democracia e seu caráter de abertura e controle social. Em um Estado democrático de direito, o controle social exige que os tribunais justifiquem suas decisões, um processo de fundamentação baseado em razões apropriadas (substanciais), o que vai muito além da mera referência a textos jurídicos ou outras fontes formais do Direito (fontes autoritativas).

O problema da justificação dos casos difíceis tem relação direta com a perspectiva externa de fundamentação, a justificação das premissas empregadas na decisão. Essa questão deve ser analisada levando-se em conta que o discurso jurídico de justificação segue o modelo de argumentação racional, buscando o convencimento do auditório. Mas isso não garante o alcance de uma solução absolutamente correta. O que o discurso jurídico racional exige é a melhor argumentação possível às decisões, ou seja, a melhor justificação possível, a justificação ideal.

Partindo da discussão acerca dos modelos idéias de discurso e de justificação, AARNIO refuta a tese dworkiniana do Juiz Hércules. A objeção é a seguinte: se existissem dois ou mais Juízes Hercules, todos seres racionais, é possível que tomassem decisões contraditórias, mas igualmente bem justificadas? Como seria possível escolher a única solução correta? Dever-se-ia recorrer a um meta-Hércules? Isso levaria a um regresso ao infinito argumentativo (AARNIO, 1995, p. 62).

A fim de estabelecer seu conceito de justificação judicial dos casos difíceis, AARNIO remete à idéia de Comunidade Jurídica II, um conceito ideal que, da mesma forma que o Juiz Hércules, pretende medir "a racionalidade e a correção da interpretação jurídica. Ambos analisam a atividade judicial, porque nela se refletem de maneira mais clara as relações entre o Direito, a sociedade, as questões morais e políticas, e em torno delas giram as expectativas sociais de certeza e segurança jurídica" (DOBROWOLSKI, 2002, p. 114).

A Comunidade Jurídica I seria formada por todos os juristas profissionais e as demais pessoas envolvidas com os assuntos jurídicos – um auditório concreto que existe na prática jurídica. Já a Comunidade Jurídica II seria formada por todos aqueles que se comprometam com as regra e princípios da racionalidade discursiva – um auditório ideal. Mas se esta comunidade é ideal e nela todos os participantes podem usar as informações dadas sem nenhuma limitação específica, como é possível chegar a mais de uma resposta correta? É que o discurso jurídico é influenciado por valores (concepções morais) que podem ter implicação direta no raciocínio jurídico (AARNIO, 1990, p. 33-34).

Para tentar resolver o problema dos casos difíceis e da pluralidade de soluções corretas, AARNIO sustenta que uma resposta à questão pode ser dada a partir do princípio da maioria. Mesmo ante os riscos do princípio majoritário e a questão dos direitos das minorias, sustenta-se que a decisão justificada por razões apropriadas, em última análise, é aquela que tem o apoio da maioria da Comunidade Jurídica II, uma resposta justificada no momento como a melhor possível para o caso em discussão (AARNIO, 1990, p. 35-38).

Esse apelo de AARNIO ao princípio da maioria é devidamente dosado por um caráter contrafático. O autor se refere a um procedimento racional ideal, que respeite todas as regras e exigências da racionalidade discursiva, o que exige serem levadas em consideração as opiniões das minorias nos processos de tomada de decisão, até porque o que deve prevalecer nessa sociedade ideal é a força do melhor argumento. Todos os participantes desse discurso racional aceitam o critério da maioria como um critério racional de decisão, preferível a outros critérios como o sorteio (DOBROWOLSKI, 2002, p. 122-23).

Neste sentido, pode-se dizer que AARNIO descarta a possibilidade de unidade de solução correta, no caso de conflitos de valores ou interesses entre os participantes do discurso, a regra em uma sociedade democrática e pluralista. Inclina-se para a idéia de aceitabilidade racional das decisões jurídicas, funcionando o princípio da maioria como critério pragmático para a estabilização das respostas jurídicas. Os julgadores ficam obrigados a justificar da melhor maneira possível suas decisões, uma vez que as sociedades democráticas estabelecem um diálogo racional entre os juízes e os destinatários da atividade judicial. Esta exigência de justificação baseada na comunicação entre os atores do discurso jurídico serve como fator de legitimação e controle do poder de julgar.

Sobre o autor
José Sérgio da Silva Cristóvam

Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRISTÓVAM, José Sérgio Silva. O problema da discricionariedade judicial.: Existe uma única resposta correta para os casos difíceis?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3082, 9 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20582. Acesso em: 22 nov. 2024.

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