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O garantismo e o abolicionismo penal: características e conflitos

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Agenda 15/02/2012 às 17:03

3  O ABOLICIONISMO PENAL

O abolicionismo penal não é uma única, mas um conjunto de doutrinas mais ou menos radicais, que têm como traço comum a proposta de abolição do sistema de penas e do próprio direito penal. Os abolicionistas não propõem a substituição das penas clássicas por penas alternativas. Tal proposta é típica do garantismo, que não contesta a legitimidade das penas em si, apenas de determinadas qualidades e quantidades de pena.

Conforme visto, os garantistas propõem a substituição das penas clássicas – pena de morte, prisão perpétua, pena privativa de liberdade – por outras sanções, também formais e institucionalizadas, que imprescindem de um processo penal (ainda que menos formal e mais célere) titularizado pelo Estado. Os abolicionistas, a seu turno, rechaçam a legitimidade das sanções estatais, ainda que diversas das penas privativas de liberdade, e propõem uma total abolição do direito penal e de instâncias formais de punição.

As teorias abolicionistas partem, sempre, da discussão do próprio conceito de crime. Despindo-se das noções jusnaturalistas, negam qualquer noção ontológica de delito, pregando que o que se chama de crime varia de sociedade para sociedade, e de momento para momento, de acordo com interesses que nada têm a ver com a natureza, em si, da ação criminosa.

Um crime nada mais é do que a qualificação de repulsa a certos costumes em defesa da sociedade, num determinado momento da história. É corriqueiro encontrar práticas consentidas transformadas em crimes e vice-versa. [...] Enfim, é pelo proibicionismo que as corrupções se expandem, multiplicam-se as seguranças, acrescentam-se novas punições.[16]

Os abolicionistas incorporam com extrema simpatia as idéias foucaultianas[17], que concebem a sociedade como um complexo de grupos em disputa pelo poder, e de dominação do grupo que o detém, sobre os demais.

A crítica abolicionista ressalta que é impossível ao sistema penal punir todos os desviantes. De fato, é sabido que nem todos as ações consideradas criminosas chegam ao conhecimento das instâncias repressivas. Considerando a instância policial, via de regra, como aquela que primeiro lidará com o fato criminoso, nem todos os crimes praticados chegam a ser notificados e formalizados em um documento policial. Dos que são registrados, boa parcela não é sequer apurada, o que aumenta a chamada “cifra negra” do sistema. Entre os indivíduos que são processados, muitos, embora culpados, não são condenados, seja porque a pretensão punitiva do Estado restou prescrita pela delonga e burocracia das instituições, seja porque os órgãos punitivos não foram eficientes em reunir as provas necessárias contra o autor do delito. Este raciocínio pode ser prolongado até a análise daqueles que, de fato, cumprem uma pena firmada em sentença condenatória. Muitos, embora condenados, frustram a execução penal por fugas. Esse fenômeno deixa explícito o déficit entre o número de crimes cometidos e as efetivas punições aplicadas.

Não bastasse esse “déficit de ineficácia”, o sistema penal também é criticado por sua seletividade. Desde a escolha dos bens jurídicos a serem tutelados pelo direito penal, até a eleição da pena a ser imposta a cada caso, o que se opera é a estigmatização daqueles que violaram as regras do jogo, dominado por instâncias de poder. “Aqueles que são oficialmente rotulados como “criminosos” constituem apenas uma pequena parte dos que estão implicados em fatos que legalmente permitem a criminalização, a grande maioria se constituindo de homens jovens provenientes dos setores mais desfavorecidos da população.”[18] Conforme leciona Passetti, o sistema penal

[...] funciona de maneira seletiva, endereçado aos que infringiram o direito de propriedade. No capitalismo, a propriedade privada material, o corpo da pessoa ou seus bens. No socialismo, a propriedade estatal e seus derivados imateriais. Em ambas as sociedades, as pessoas consideradas criminosas devem ser retiradas de circulação, caracterizando uma maneira de educar a todos, conhecida como prevenção geral. Numa, sob o regime democrático, o alvo preferencial da seletividade recai sobre o pobre que rouba, furta, estupra, mata. Noutra, é sobre o subversivo que desestabiliza a ditadura. Assim, nas duas sociedades, sob regimes democráticos ou ditatoriais, qualquer infração à lei, material ou imaterial, caracteriza um crime contra todos, combatido de modo seletivo e identificando o infrator como perigoso. Diante da infração selecionada pelo sistema, a vítima se transforma em testemunha de acusação de um crime cometido contra a sociedade. Então, em lugar de sua indenização, o Estado investe em punir o julgado culpado.[19]

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A perversão desse sistema não é acidental. Ao contrário. Os abolicionistas denunciam que a seletividade é proposital e funcional no sistema penal. O sistema penal “não quer” abater-se sobre todos os criminosos. Neste contexto, Maria Lúcia Karam explica que

[...] para a real eficácia do sistema penal é imperativa a individualização de apenas alguns deles, para que, sendo exemplarmente identificados como “criminosos”, possam emprestar sua imagem à personalização da figura do mau, do inimigo, do perigoso, e, assim, possibilitar, simultânea e convenientemente, o reconhecimento dos “cidadãos de bem” e a ocultação dos perigos e dos males que sustentam a estrutura de dominação e poder.[20]

É nítido que as sociedades ocidentais contemporâneas, na prática, admitem, ainda que não oficialmente, a figura do criminoso atávico da Escola Positivista, apenas teoricamente superada. Nas práticas subvertidas do sistema penal, o criminoso é um ser especial e desviado, destacado da sociedade de “homens bons”, fato que justifica qualquer nível de intervenção sobre seu corpo e sua mente, o que até hoje legitima internações compulsórias em casas de custódia e internação psiquiátrica. Neste contexto, a punição dissocia-se completamente do fato criminoso que a gerou, concentrando-se unicamente na personalidade e no caráter do criminoso.

A doutrina atual costuma passar por cima do dado da seletividade, o que é muito significativo, pois se trata da característica estrutural mais vulnerável à crítica política e social do poder punitivo. Diferentemente desta ignorância, ou omissão, atual e pouco explicável, a doutrina pré-moderna fazia carga contra o posicionamento crítico ou o prevenia. A doutrina pré-moderna não só admitiu a seletividade do poder punitivo como tratou de legitimá-la, aceitando implicitamente que para os amigos rege a impunidade e para os inimigos o castigo.[21]

Com a costumeira perspicácia, Zaffaroni, ainda discorrendo sobre a seletividade, aponta as razões pela qual a prevenção geral se tornou um dos argumentos para a legitimação do sistema penal e de suas práticas:

A única maneira de legitimar o poder punitivo reconhecendo a seletividade – quer passando por cima dela, quer subestimando-a – é apelando ao valor meramente simbólico da pena e à sua consequente funcionalidade como prevenção geral positiva, pois esta pode ser cumprida, ainda que a pena opere em um número muito reduzido de casos e até em nenhum, com relação a certos delitos. Por conseguinte, não é de se estranhar que a doutrina pré-moderna tenha elaborado este argumento. Embora costumem ser mostrados como tais, o valor simbólico da pena e a prevenção geral positiva não resultam de desenvolvimentos modernos e contemporâneos, e menos ainda pós-modernos. Na verdade, as teses atuais a esse respeito representam uma volta aos discursos sustentados no século XVI. Seu expositor mais claro foi ninguém menos que Jean Bodin, que, juntamente com Hobbes, é um dos fundadores do conceito de soberania.[22]

A ineficácia da execução também é apontada pelos abolicionistas como crítica ao sistema penal, pois enfraquece a legitimidade supostamente baseada na necessidade de prevenção, mormente se analisada sob o prisma da prevenção especial. “O encarceramento, por sua vez, é dispendioso para o Estado, não reintegra ou ressocializa, funcionando ainda como escola do crime.”[23]

Como vimos, o garantismo legitima as penas, basicamente, na necessidade de prevenção de novos delitos e na necessidade de evitação da vingança privada. Estes dois pilares são fortemente atacados pelas críticas abolicionistas.

No aspecto de prevenção geral negativa, estudos sociológicos demonstram que as penas não possuem efeito dissuasório comprovado. A ameaça consubstanciada na pena não tem o poder de evitar que os conflitos eclodam no meio social. Ao contrário, a ameaça da pena faz com que as práticas criminosas se tornem cada vez mais sofisticadas e complexas.

O efeito dissuasório nunca se comprovou. Ao contrário, é clara a sinalização de que a aparição de crimes não se relaciona com o número de pessoas punidas ou com a intensidade das penas impostas, bastando pensar um pouco para verificar, em relação a nós mesmos, que não é a ameaça da pena que conduz à abstenção da prática de crimes, como não é nenhuma espécie de ameaça o que nos faz deixar ou não de realizar qualquer comportamento que apareça, para nós ou para terceiros, como um comportamento negativo.[24]

Já sob o foco da prevenção geral positiva, o indivíduo é concebido como bode expiatório a serviço dos valores do Estado (ou, se preferirmos, sob uma ótica foucaultiana, a serviço dos valores de determinada classe que, naquele dado contexto histórico, detém o poder e, por isso, dita as regras do jogo). Ao ser submetido à pena, o condenado é utilizado pela máquina estatal para reafirmar os valores dela. O condenado é despido de sua condição de sujeito e transforma-se em objeto de suposta agregação social e fomento de uma fidelidade ao Direito.

Os abolicionistas desconstroem o argumento garantista, que prega que a pena se legitima enquanto evitadora da vingança privada. Para os abolicionistas, o direito penal é o próprio institucionalizador da vingança. Segundo Passetti, ao transformar o conflito entre autor e vítima em um conflito impessoal de toda a sociedade, o direito penal legitima a vingança, naturalizando o castigo. O sistema fomenta o ressentimento popular e faz com que esse seja o combustível “que faz da vingança uma política pública”.[25]

A proposta abolicionista parte do pressuposto de que a resposta ao delito prescrinde de uma instância formal do Estado e do exercício de poder que advém do direito penal, podendo ser construída mediante mecanismos conciliatórios, entre os indivíduos envolvidos.

Com frequência, as pessoas envolvidas nos debates sobre a justiça criminal estão tão “possuídas” pelos mitos e imagens que os permeiam que não se dão conta de que a ausência de reação da justiça criminal a um fato criminalizável não significa que este não seja enfrentado (quid non est in actu est in mundo). Se houver uma pessoa diretamente envolvida, para a qual um fato criminalizável é problemático, esta pessoa sempre terá o que fazer com aquele fato, de um modo ou de outro, podendo, assim, pedir ajuda a profissionais ou a não-profissionais.”[26]

Observe-se, portanto, que a proposta de “penas alternativas” de nenhuma forma atende aos anseios abolicionistas, por tratar-se, ainda, de uma resposta de instâncias formais e institucionalizadas do Estado. Neste aspecto, Maria Lúcia Karam aponta as penas alternativas são concebidas “não como reais substitutivos da prisão, no sentido de uma amenização de seus sofrimentos, de uma humanização da pena, mas sim como um meio paralelo de ampliação do poder do Estado de punir.”[27]

A proposta abolicionista, via de regra, passa pela conciliação na solução dos conflitos, de maneira a eliminar instâncias de autoridade e de imposição e, assim, horizontalizar o diálogo entre as partes. Neste contexto, as partes, em especial a vítima, assume papel de protagonista, ao invés de mera testemunha do fato ocorrido. “O Estado permanece, mas funcionando como indenizador das partes, não lhe cabendo o papel de administrar as respostas-percurso, ser guardião dos bens ou pessoas, ditar as regras da prevenção geral.”[28]

A conciliação para o abolicionista penal se volta para a imediata situação-problema, condição singular que envolve tragicamente pessoas num instante de suas existências em que foram atacadas, imoladas, violadas, mortas. Efeito do imprevisível, do intempestivo, da desrazão, do ressentimento, do desejo, a situação-problema abarca desde vítima e algoz aos envolvidos no acontecimento.

O abolicionismo penal não é só uma utopia que constata exclusões e discriminações; é uma prática de liberdade que não desconhece o poder dos juízes, promotores, advogados, técnicos das humanidades, pais, educadores, administradores e carcereiros. Diante do drama gerado por furtos, roubos, sequestros, homicídios, violentações e acidentes jamais apaziguados pelo direito penal, remete aos riscos da tragédia ao propor a conciliação para interceptar práticas punitivas.[29]

Inegavelmente, o abolicionismo peca por seu alto grau de utopia e regressão. Ao criticar o sistema penal, o faz em bloco, sem considerar as diferenças marcantes entre sistemas autoritários e sistemas liberais, e tampouco os variados graus de garantismo possíveis de serem verificados empiricamente nas diferentes comunidades jurídicas.

De fato, por mais prática e implementável que queira se fazer parecer, o abolicionismo parte de premissas e modelos utópicos. Muitos de seus adeptos adotam uma concepção jusnaturalista, conferindo a uma moral superior a função de regular a sociedade.

Moralismo utopista e nostalgia regressiva por modelos arcaicos e “tradicionais” de comunidades sem direito, constituem, por derradeiro, também os traços característicos do atual abolicionismo penal, pouco original em relação à tradição anárquica e holística. Abolicionistas como Louk Hulsman, Henry Bianchi e Nils Christie repropõem as mesmas teses do abolicionismo anárquico do século XIX, oscilando – na configuração das alternativas ao direito penal, que, por si só constitui uma técnica de regulamentação e de delimitação da violência punitiva – entre improváveis projetos de microcosmos sociais fundados na solidariedade e na irmandade, vagos objetivos de “reapropriação social” dos conflitos entre ofensores e vítimas e métodos primitivos de composição patrimonial das ofensas, com a agravante, se comparado ao abolicionismo clássico, de possuir uma maior incoerência entre pars destruens e pars construens do projeto sustentado e de uma maior e imperdoável desatenção às tristes experiências, inclusive contemporâneas, de crise e desatualização do direito penal.[30]

Mas, talvez, o “calcanhar de Aquiles” da concepção abolicionista resida justamente em um de seus principais argumentos. Como vimos, os abolicionistas deslegitimam as penas, e em última instância a própria intervenção estatal nos conflitos, por conceberem o Estado enquanto grupo dominante de indivíduos, que detém o poder em determinado contexto histórico e que, por isso, conseguiu emergir e institucionalizar-se. A imposição da pena seria, assim, a resposta do domínio de um grupo sobre os demais, o exercício de poder de alguns indivíduos sobre outros.

No entanto, a eventual abolição das penas jamais seria suficiente para eliminar da sociedade este componente de poder, que é um fenômeno advindo de práticas que prescindem da instituição estatal. Trata-se de ilusão, a nosso ver, supor que a solução dos conflitos por meio da conciliação informal e horizontalizada entre as partes seja necessariamente despida de jogos de poder e da prevalência dos interesses de grupos dominantes. As sociedades complexas não podem ser entendidas simplesmente como um modelo de sociedade primitiva com maior número de componentes. As relações, as dinâmicas, os valores e os interesses das sociedades capitalistas ocidentais contemporâneas em nada ou em muito pouco se assemelham aos das comunidades primitivas tantas vezes exaltadas pelos abolicionistas como modelos de sociedade sem Estado.

Sobre a autora
Sheyla Cristina da Silva Starling

Delegada da Polícia Civil de Minas Gerais. Professora da Faculdade Batista de Minas Gerais. Mestranda em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais. Ex-professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

STARLING, Sheyla Cristina Silva. O garantismo e o abolicionismo penal: características e conflitos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3150, 15 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21093. Acesso em: 22 nov. 2024.

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