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O contratualismo de Thomas Hobbes e a reação contemporânea do neotomismo jurídico.

Uma reorganização epistemológica das ideias em favor da dignidade da pessoa humana

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Agenda 21/03/2012 às 06:22

6. Refutando a ideologia hobbesiana

Na hipótese do estado de natureza hobbesiano as pessoas não se encontram motivadas a formalizar uma comunidade fraterna e solidária, inspirada nos direitos naturais divinos. Os homens apresentam no modelo juspolítico de Hobbes animalidade antissocial e racionalidade possessiva, limitando-se apenas a calcular perdas e ganhos materiais em suas transações econômicas, excluindo a cooperação fraterna como critério fundamental de celebração dos acordos. No materialismo pessimista de Hobbes, o “homem é o lobo do próprio homem”. Como consequência dessa premissa, não existe confiança generalizada entre as pessoas, predominando assim o livre arbítrio, o egoísmo e o sentimento possessivo de cada um sobre os demais.

Na ausência do poder público, a animalidade das pessoas delimita o espaço privado, empregando critérios estritamente utilitaristas, pragmáticos e violentos. Também, não existindo meios legais para frear publicamente os abusos generalizados, configura-se o estado de guerra de todos contra todos, onde os indivíduos ficam motivados a não respeitar a presença do outro, consolidando-se negativamente os princípios imorais da força, malandragem, terrorismo, vingança e mentira. No estado de natureza hobbesiano há uma profunda escassez de capital moral e religioso. Faltam confiança, respeito mútuo, justiça, fraternidade e solidariedade entre os indivíduos. Valores esses básicos e fundamentais para o mínimo de coexistência social.

De acordo com Hobbes (cap. XVII), o fim último, causa final e desígnio dos homens é o cuidado com a sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Portanto, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra (que é a consequência necessária das paixões naturais dos homens quando não há um lugar visível capaz de mantê-los em respeito) força-os paradoxalmente por medo do castigo ao cumprimento de seus pactos e ao respeito às leis da natureza. Por outro lado, na visão otimista do neotomismo jurídico a humanidade interior (que se acha adormecida na alma do ser humano) pode conduzir a maioria dos homens para outro patamar existencial a partir do estado de natureza hobbesiano, apresentando uma saída virtuosa contra a animalidade que ameaça a vida, a liberdade, a paz e a segurança de todos, indistintamente, pobres e ricos.

Entretanto, a redescoberta da humanidade nesse contexto precisa contar fundamentalmente com a militância e o otimismo ético do juspolítico (que pode ser um advogado, professor, aluno, governante, simples cidadão, etc.).

A humanidade é uma virtude inerente da Pessoa Humana que foi criada por Deus à sua imagem e semelhança. É justamente essa qualidade natural que pode reacender na maioria dos indivíduos o desejo de se buscar, contratualmente, a mudança na direção de uma sociedade mais justa e fraterna, coordenada pelo direito positivo com a expectativa de se proteger e operacionalizar, racionalmente, os direitos naturais universais e ahistóricos no dia a dia, instituídos na origem do mundo pelo amor e pelo poder de Deus. Entretanto, na opinião do neotomismo jurídico não são exatamente o medo social e a racionalidade econômica que determinam a passagem para o estado civil, como sugerem as reflexões hobbesianas e diversos analistas posteriores. Para o neotomismo, é a redescoberta da humanidade dos indivíduos e o desejo pela digna existência que marcam ou podem marcar a reinstalação do contrato público, embora Hobbes e a maioria de seus intérpretes atuais adotem uma filosofia materialista, fisicalista, geométrica e econômica que não admite a possibilidade de qualquer abordagem ético-espiritualista na celebração dos contratos sociais nesses termos.

Na crítica do neotomismo jurídico, a redescoberta da vida, da liberdade, da dignidade da Pessoa Humana, da necessidade de paz e também da segurança jurídica motiva as pessoas comuns a transformarem o ambiente histórico racionalmente através do pacto social, sem perder de vista a sua espiritualidade. Entretanto, nesse caso, a crise da animalidade humana não determina necessariamente a hegemonia da racionalidade instrumental, como assim descreve a filosofia de Hobbes, mas sim da humanidade, desde que haja, obviamente, boa vontade e militância cristã transformadora.

Para a maioria dos intérpretes de Hobbes, a mudança do estado de natureza para o estado civil é impulsionada unicamente pela racionalidade instrumental, que assim reprime a animalidade e passa a dominar a rotina civil dos indivíduos, produzindo regras, instituições e até pessoas artificiais com a finalidade de garantir a plenitude da civilização moderna. No modelo hobbesiano, a Pessoa Humana é totalmente desprezada tendo em vista a natureza antissocial dos indivíduos. Assegura Hobbes (cap. XI) nesse sentido que a competição pela riqueza, honra, mando e por outros poderes leva à luta, à inimizade e à guerra. O caminho seguido pelo competidor nesse quadro visando realizar o seu desejo consiste naturalmente em matar, subjugar, suplantar ou repelir o outro. A solução hobbesiana para escapar dos males coletivos (desordem, injustiça, imprevisibilidade, vandalismo, poluição, etc.) consiste, racionalmente, na adoção de uma estratégia física ou maquínica, instituindo-se a máquina pública, o moderno autômato burocrático com aparência de Leviatã, capaz não só de amedrontar, mas também de produzir e fiscalizar a execução pública e privada das leis em geral. Tal estratégia deve ser amparada necessariamente pelo princípio da obediência na manutenção ordinária do poder soberano do Estado. Importa para Hobbes neste contexto que os homens cumpram fielmente os contratos que venham a celebrar na ordem civil. Se não houver uma disposição racional ou instrumental entre eles, os pactos não terão, conclusivamente, efetividade alguma na História. Por isso mesmo, é necessário um agente externo, fiscalizador, repressivo, público, o Leviatã, cuja responsabilidade maior é exatamente garantir a expectativa dos indivíduos oficializada na estrutura formal dos contratos civis (“Leviatã”, cap. XV). Impulsionados pela racionalidade instrumental e aceitando pagar um preço em troca de algum benefício público, os indivíduos constroem coletivamente um novo cenário social, baseado na cultura maquínica, onde o Estado, instituído contratualmente, é uma criatura moderna da racionalidade, uma pessoa artificial, um autômato, uma máquina inteligente que se alimenta, pode ficar doente, pensa, observa, decreta e julga os indivíduos (cf. BOBBIO, no livro “Thomas Hobbes”).

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Da mesma forma, notamos hoje que se expande na sociedade moderna a cultura maquínica entre os indivíduos que são gradativamente transformados à imagem e semelhança desse Deus Mortal, o Leviatã, na condição de pessoas físicas ou jurídicas, ou seja, pessoas artificiais, evitando a animalidade dos “lobos” dominantes no estado de natureza, supervalorizando-se, por outro lado, a ideologia cartesiana da máquina, o grande símbolo da civilização e, particularmente, do estado civil hobbesiano. Com essa visão de mundo, a política artificial hobbesiana oficializa o ideal da impessoalidade máxima, tanto nos contratos como na vida pública em geral. Os contratos civis do cotidiano passam a refletir essa nova cultura jurídica, instaurando o máximo de objetividade e impessoalidade entre as partes contratantes a fim de evitar qualquer proximidade com o estado de natureza ou anarquia desordenada na concepção hobbesiana.

O absolutismo da racionalidade instrumental hobbesiana rejeita explicitamente a animalidade das pessoas, mas não valoriza a emergência da humanidade como virtude possível de ser incluída na estrutura dos contratos civis. No modelo hobbesiano, os contratos ignoram os princípios morais, cristãos e humanistas em geral. As leis devem ser rígidas a fim de garantir a ordem e a obediência aos termos declarados nos contratos que são firmados entre os indivíduos, guardando sempre a possibilidade da coerção que pode intervir nas práticas ilegais dos “lobos” contratantes. Além disso, deve ser garantida a eficácia dos contratos através de um ordenamento jurídico fundado na impessoalidade e objetividade máxima entre as partes, visto que a inclinação natural dos homens não vai para o lado da sociabilidade aristotélica ou durkheimiana, muito menos para o lado da fraternidade cristã. Em decorrência dessa compreensão pessimista da natureza humana o sistema hobbesiano massifica e despersonaliza as relações humanas e contratuais.

Apesar do esforço intelectual do modelo hobbesiano, a animalidade reaparece indesejavelmente no imaginário materialista dos contratualistas em pelo menos dois momentos cruciais do cotidiano: quando há desordem na máquina pública e quando a ordem jurídica encontra lacunas que deverão ser preenchidas pelo intérprete oficial. No primeiro caso, redescobre-se que a máquina estatal só pode ser obviamente manipulada por seres humanos. De acordo com Hobbes (cap. XXIX): “[...] a popularidade de um súdito poderoso constitui uma perigosa doença, porque o povo através da adulação e da reputação de um homem ambicioso é desviado de sua obediência às leis para seguir alguém cujas virtudes e desígnios desconhece”. Outro momento em que ressurge no cotidiano o risco da presença da animalidade está relacionado com a interpretação da lei, objetivando especificamente preencher determinadas lacunas do direito. Segundo Hobbes, as coisas que fazem um bom juiz ou um bom intérprete da lei são, em primeiro lugar, uma correta compreensão daquela lei principal de natureza a que se chama equidade, que não depende da leitura das obras de outros homens, mas apenas da sanidade da própria razão e meditação natural de cada um e, portanto, deve-se presumir existir em maior ou menor grau nos que têm maior oportunidade e maior inclinação para sobre ela meditarem. Em segundo lugar, completa Hobbes, é preciso ter desprezo pelas riquezas desnecessárias e pelas preferências. Em terceiro lugar, ser capaz no julgamento de despir-se de todo medo, raiva, ódio, amor e compaixão. Em quarto e último lugar, é preciso ter paciência para ouvir, atenção diligente ao ouvir, e memória para reter, digerir e aplicar o que se ouviu (HOBBES, “Leviatã”, cap. XXVI).

Diferentemente da postura hobbesiana, o pesquisador neotomista deve realizar um processo militante intenso e esclarecedor dos fatos sociais, indo muito mais além que simplesmente descrever e aceitar o pessimismo ético e a visão fria e calculista da Lei. A meta não uma vivência plenamente utilitarista, sem qualquer conteúdo metafísico; busca-se, na verdade, princípios transcendentais onde a caridade, a solidariedade e a racionalidade podem ser usadas como instrumentos éticos e práticos da pesquisa, objetivando facilitar o diálogo neotomista com a realidade planetária. Ao mesmo tempo, rejeita-se o monismo jurídico do Leviatã onde os padrões de conduta não levam em consideração a ética espiritualista e a diversidade cultural dos povos, preocupando-se muito mais com a padronização técnica e laica das relações burocráticas na qual o cidadão cristão é historicamente refém e massacrado.

Para o neotomismo jurídico, a ordem natural é o referencial único e indeclinável de uma verdadeira ordem de justiça e será através dela, portanto, que chegaremos às verdadeiras questões sobre a validade, a eficácia e a modificação das normas empíricas (idem, p. 223). Na antropologia jurídica hobbesiana, diferentemente, os direitos naturais são inerentes do existir humano. Como resultado, as técnicas jurídicas representariam a preocupação número um de reprimir as condutas humanas irregulares e dissipadoras da ordem social desejada. Não se postula, em Hobbes, por exemplo, que a tecnologia jurídica seja flexível no cotidiano pelo menos para realizar contratos atípicos, adaptações e livres negociações (MONTARROYOS, 2009).

Inversamente, portanto, é a partir da Ética solidária e do otimismo antropológico que a política neotomista pretende justificar todo o seu conteúdo programático na realidade, afastando-se, claramente, do receituário coercitivo do direito hobbesiano. Quando a política jurídica neotomista for introduzida criticamente no ordenamento jurídico tradicional, usando meios não violentos, espera-se deste modo a emergência de um novo padrão de relacionamento humano fundado na ética humanista e cristã.

No ordenamento jurídico hobbesiano, diferentemente, a tendência desumana é criar pessoas artificiais (ou pessoas civis), dominando uma determinada releitura meio cartesiana que separa mente e corpo, objetividade e subjetividade, consagrando assim a analogia da máquina mecânica como fonte de libertação da animalidade humana em relação ao estado de natureza hobbesiano (cf. BOBBIO, 1991, no livro “Thomas Hobbes”). Para o neotomismo, entretanto, todos os indivíduos são ontologicamente iguais, porque são dotados de uma natureza idêntica (espiritual e divina); porém, há neles diferenças acidentais decorrentes da diversidade de virtudes, de dotes intelectuais e também de outras qualidades físicas e morais que tornam a sociedade dividida em classes e etnias. Nem todos possuem realmente os mesmos recursos de inteligência, vontade e sensibilidade para estabelecer os meios prudenciais e técnicos de ação necessários à consecução da finalidade espiritual e do bem comum do grupo ao qual pertencem. Nesse contexto, obediência e diferença se complementam positivamente.

Para Hobbes, entretanto, a incapacidade política dos homens não seria objeto de uma educação e de trabalho religioso libertador, mas fundamentalmente objeto de subjugação e de controle cada vez mais sofisticados do poder público, repressivo e tecnicista. A meta da educação hobbesiana é o adestramento estatal dos indivíduos.

Diferentemente, na convivência humana, ou seja, na relação ecológica do homem com outros seres vivos e com a Natureza em geral, o humanismo neotomista pretende equilibrar os sistemas fundamentais (sociopolítico e biológico, por exemplo), no sentido amplo da universalidade da vida humana.

Para Hobbes, só existem dois estados humanos consideráveis na experiência histórica, que são a animalidade e a racionalidade instrumental ou maquínica. Consequentemente, o conceito básico do humanismo jurídico cristão, ou seja, o conceito ontológico da Pessoa Humana, criada à imagem e semelhança de Deus, não exerce nenhuma influência no modelo físico, geométrico e racionalista de Hobbes no momento em que ele produz a estrutura juspolítica do Leviatã. No esquema hobbesiano, existem apenas dois extremos teóricos: a pessoa animal do estado de natureza; e a pessoa artificial ou racional do estado civil. Para Thomas Hobbes, a beleza da alma da Pessoa Humana é apenas uma ficção.

Na filosofia neotomista, por outro lado, o passado ensina que certas instituições não podem sofrer mudanças arbitrárias sem pôr em risco a segurança comum das pessoas. Qualquer modificação na estrutura social, mínima que seja, terá de respeitar, portanto, as unidades essenciais que asseguram as condições de liberdade e de dignidade da Pessoa Humana ao longo da História, dentre elas, o poder da família, a unidade social, a eternidade do vínculo matrimonial, a garantia absoluta da vida e a legitimidade da prole, que são alguns preceitos imutáveis da natureza humana expressos nos mandamentos do Decálogo (idem).

O ponto de partida do neotomismo jurídico não está exatamente na regra de obediência, mas no princípio da cooperação. Entretanto, a obediência deve ser preservada e dignificada na direção da Pessoa Humana entrosada, obviamente, com os direitos naturais criados por Deus.

O acesso ao Direito Positivo é, necessariamente, Metafísico. Com essa visão de mundo, a justiça penal humana, por exemplo, deve declarar suas normas não somente usando conceitos técnicos, mas também resgatando a noção do pecado, pois o crime perverte a ordem universal do governo divino mais amplo entre as criaturas humanas. Por isso mesmo, é necessário reparar a ordem social por imposição de Deus e de sua Justiça, o que não constitui, entretanto, a vitória da razão suprema do direito penal materialista neste caso (OLIVEIRA, 2001, p. 217). Também é preciso admitir uma enorme variação penal em tempos e lugares distintos, pois os fatos mostram a emergência de novas criminalidades a todo instante.

Sintetizando as ideias, o esforço intelectual para compreender a realidade mundial se reveste de alta complexidade para o neotomismo diante da diversidade do planeta, com tendências muito variadas; entretanto, acima de tudo, há certas condutas que por sua intrínseca maldade e gravidade não poderão deixar de ser apenadas, principalmente o homicídio, o aborto e a pedofilia que são crimes naturais e universais. Por exemplo, a proibição do homicídio é uma exigência de justiça fundada na tutela de um direito natural, que é a vida humana.

Sobre o autor
Heraldo Elias Montarroyos

Professor da Faculdade de Direito da UNIFESSPA MARABÁ, PARÁ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTARROYOS, Heraldo Elias. O contratualismo de Thomas Hobbes e a reação contemporânea do neotomismo jurídico.: Uma reorganização epistemológica das ideias em favor da dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3185, 21 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21328. Acesso em: 20 nov. 2024.

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