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Poder de polícia e inspeção veicular à luz do regime jurídico-tributário

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Agenda 26/03/2012 às 16:39

Ao fixar a remuneração da atividade de inspeção e manutenção veicular, trata-se de inegável exercício do poder de polícia, que é fato gerador de taxa.

RESUMO

Os Programas de Inspeção Veicular organizados pelos Estados e Municípios brasileiros – inseridos numa política pública de âmbito nacional composta pelo Programa Nacional de Controle da Qualidade do Ar (Pronar) e pelo Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve) – são instrumentos para redução de emissões de gases e partículas poluentes, bem como de ruído emitido pela frota alvo circulante de veículos automotores. Várias legislações dos Estados e Municípios (instituidoras desses programas), além de prescreverem que as empresas particulares vencedoras das licitações são as responsáveis pela atividade de inspeção dos veículos automotores, instituem que a remuneração dessas empresas privadas se dá por meio de tarifa/preço público. Porém, essas legislações estaduais e municipais, nesse ponto, são inconstitucionais. A atividade da inspeção veicular é exercício do poder de polícia que não pode ser delegado à empresa particular que não possua qualquer vínculo com a Administração Pública. O Estado, ao delegar o exercício do poder de polícia a particular, o faz de modo indevido, o que afronta os princípios basilares do direito público, tais como supremacia e indisponibilidade do interesse público. O particular é desprovido do ius imperii, potestade. O Estado (ou seus órgãos) é que deve realizar esse poder de polícia fiscalizatório. A atividade da inspeção veicular deve ser remunerada através de taxa (de polícia), cujo fato gerador é o exercício do poder de polícia estatal, nos termos dos arts. 145, II, da CF/88 e 77 do CTN.

Palavras-chave: Taxa. Preço público. Tarifa. Poder de polícia. Delegação. Remuneração. Inspeção Veicular.

ABSTRACT

The Vehicle Inspection Program organized by the Brazilian States and Municipalities - inserted in a national public policy composed by the National Air Quality Control Program (Pronar) and the Motor Vehicle Air Pollution Control Program (Proconve) - are instruments to reduce pollutants gaseous and particulate emission and also reduce noise emitted by the motor vehicles. Several state and local laws (creators of these programs) prescribe that private companies winners of bids are responsible for the motor vehicles inspection activity and also for establish that the remuneration of these private companies is through tariff/public price. However, these state and local laws, on this way, are unconstitutional. The vehicle inspection activity is the exercise of Police Power which cannot be delegated to the private that has no connection with the Public Administration. The State, when it delegates the exercise of Police Power to the private sector, acts improperly, what injures the basic principles of public law, such as supremacy and unavailability of public interest. The individual is devoid of the ius imperii, potestade. The State (or its agencies) is the responsible for this supervising Police Power. The vehicle inspection activity is remunerated by fee (police fee), whose taxable event is the state exercise of Power Police, according to the art. 145, II of the Republic Constitution and 77 of the National Tributary Code.

Keywords: Fee. Public price. Tariff. Police power. Delegation. Remuneration. Vehicle Inspection


INTRODUÇÃO

O presente trabalho discorre acerca de tema bastante atual, porém ainda pouco debatido no universo jurídico-tributário, a saber: a natureza jurídica da contraprestação da atividade de inspeção veicular. Busca-se analisar a qual regime jurídico está circunscrita a contraprestação da inspeção dos veículos automotores, isto é, se se trata de taxa ou de tarifa/preço público.

Os Programas de Inspeção e Manutenção de Veículos em Uso organizados pelos Estados e Municípios brasileiros – inseridos numa política pública de âmbito nacional composta pelo Programa Nacional de Controle da Qualidade do Ar (Pronar) e pelo Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve) – são instrumentos para redução de emissões de gases e partículas poluentes, bem como de ruído emitido pela frota alvo circulante de veículos automotores.

Para que se possa examinar mais a fundo a verdadeira natureza jurídica da contraprestação da inspeção dos veículos automotores, faz-se necessário adentrar, preliminarmente, em tema pertencente mais propriamente ao Direito Administrativo, que é o poder de polícia. Tal incursão se faz necessária porque o poder de polícia estatal está intimamente ligado ao tema que ora discorrer-se-á.

Isso porque há duas modalidades de taxa: as decorrentes da prestação de serviço público (taxas de serviço) e aquelas cobradas em virtude do exercício do poder de polícia (taxas de polícia). Assim, essas últimas têm como fato gerador justamente a prestação do poder de polícia estatal.

Este trabalho tenta demonstrar que a atividade da inspeção veicular constitui exercício do poder de polícia não passível de delegação a empresas particulares que não integram a Administração Pública. O Estado, detentor do ius imperii, da postatade, é que deve desempenhar esse poder de polícia e, como decorrência, tem o poder/dever de cobrar tributo, na modalidade taxa, nos termos do art. 145, II, da CF/88 e 77 do CTN.

O poder de polícia é atividade estatal a qual a Constituição Federal impõe específica modalidade tributária, a saber, taxa, sendo a relação estabelecida entre o cidadão e o Poder Público de cunho legal, e não contratual, a que o particular se submete compulsoriamente.

Observa-se, entretanto, que várias legislações estaduais e municipais que instituem os programas de inspeção veicular prevêem, indevidamente, a delegação desse poder de polícia às empresas particulares, bem como que estas sejam remuneradas por meio de tarifa/preço público.

A taxa, diferentemente da tarifa, é exigida, em regra, por pessoas jurídicas de direito público. Veremos que, no caso da inspeção veicular, a contraprestação a ser cobrada deve ser taxa, cujo fato gerador é o exercício do poder de polícia estatal. Daí porque os diplomas normativos estaduais e municipais que prescrevem caber à empresa particular tarifa/preço público são, neste ponto, inconstitucionais.

Neste cenário, o Poder Judiciário deve apresentar papel importante no sentido de frear esses equívocos cometidos pelos legisladores desses entes federativos. Incumbe ao Judiciário, assim, reconhecer a inconstitucionalidade dos enunciados prescritivos que contenham a expressão “tarifa ou preço público”, bem como declarar que a exação (que entendemos ser taxa) deve ser recolhida pelo Estado, uma vez que à pessoa jurídica de direito público é dado o poder de exigir essa espécie tributária.


CAPÍTULO I: REGIME JURÍDICO DA TAXA E DO PREÇO PÚBLICO/TARIFA[1]

1.1 Taxa: Conceito e espécies

Taxa é espécie tributária que pode ser instituída pelos entes de direito público interno (União, Estados, DF e Municípios) em virtude da utilização, pelo contribuinte, de forma efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, ou em razão do exercício do poder de polícia estatal. Este conceito, aliás, se assemelha ao prescrito no art. 145, II, da CF/88 e no art. 77 do CTN.

 O professor Paulo de Barros assevera que as taxas são “tributos que se caracterizam por apresentarem, na hipótese da norma, a descrição de um fato revelador de uma atitude estatal, direta e especificamente dirigida ao contribuinte” [2].

No mesmo sentido, Américo Lacombe apregoa que taxa “é tributo em cuja norma está feita a previsão, no núcleo do seu antecedente normativo, de uma atuação estatal diretamente referida ao sujeito passivo” [3].

Daí se extrai as suas espécies, a saber: taxas de serviço e taxas de polícia. Vejamos cada uma delas. A criação das taxas de serviço só se verifica possível por meio da disponibilização de serviços públicos que se caracterizem pela divisibilidade e especificidade. Serão divisíveis, em linhas gerais, quando suscetíveis de utilização, separadamente, por cada um dos seus usuários. Específicos serão em sendo possível destacá-los em unidades autônomas.

Já as taxas de polícia[4] apresentam como fato gerador o exercício regular do poder de polícia – atividade administrativa –, atividade essa fundamentada no princípio da supremacia do interesse público, o qual norteia, diga-se, o direito público em geral. Por isso, o interesse público e o bem-estar geral podem justificar o condicionamento ou a restrição do exercício dos direitos individuais.

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Por fim, resta ainda consignar que, para a cobrança da taxa de polícia, não se faz necessária a comprovação da atividade fiscalizadora. Neste sentido, há julgado do STJ (AgRg no Resp 1078480/MG)[5] que, in casu, versava sobre taxa de fiscalização de anúncios. Concordamos com tal entendimento, reiterando, a propósito, que o ente fiscal encontra-se no exercício de atividade administrativa (poder de polícia) e, como tal, goza de certas prerrogativas (relação jurídica verticalizada), atraindo para seus atos a presunção relativa de legitimidade, decorrência dos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público.

1.2 Taxa e Poder de Polícia

1.2.1. O Poder de Polícia – conceito clássico (processo negativo) e moderno (processo positivo)

A conceituação do poder de polícia, em seus exatos contornos, é uma difícil tarefa para o direito público. Conquanto seja um "poder orgânico, elementar, fundamental, a que estão ligadas as exigências capitais de conservação da sociedade” [6], a renovação de seu conteúdo acompanha as mutações históricas do Estado. Mesmo contemporaneamente, não é pacífico o entendimento sobre o âmbito constitucional de sua atuação que traduz, em última análise, o endereço político do Estado, reagindo às solicitações de interesses econômicos e sociais eminentes[7].

Do ponto de vista clássico, o poder de polícia liga-se a noção de processo negativo[8] de manutenção da sociedade contra os excessos individualistas. Constitui-se, em síntese, numa garantia da segurança, da tranquilidade e da salubridade públicas.

Modernamente, tal poder vem a exercer papel mais abrangente[9] e ativo (processo positivo) do Estado na promoção do bem-estar geral. Transpassa a ordem pública e alcança a ordem econômica e social. Dessa forma, as normas limitadoras da liberdade individual vêm a ser exercidas, em grande medida, por meio do poder de polícia.

1.2.2. Poder de Polícia: Sentido amplo e estrito. Previsão no ordenamento positivo

O poder de polícia, portanto, comporta dois sentidos, um amplo e outro estrito. No sentido amplo[10], significa toda ação restritiva do Estado no que toca aos direitos individuais. Nessa visão, destaca-se a função do Poder Legislativo, incumbido da criação do ius novum, uma vez que cabe às leis, organicamente consideradas, o delineamento do perfil dos direitos, reduzindo ou alargando a sua substância. É o princípio constitucional previsto no art. 5º, II, da CF/88[11].

Na acepção estrita, o poder de polícia se configura como atividade administrativa que consubstancia verdadeira prerrogativa conferida aos agentes da Administração Pública, consistente no poder de condicionar e restringir a propriedade e a liberdade.

A Carta Política de 1988 autoriza a União, os Estados, o DF e os Municípios a instituírem taxas em razão do exercício do poder de polícia (art. 145, II).

Infraconstitucionalmente, o art. 78 do CTN, reitere-se, traz uma definição de poder de polícia, considerando-o como a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Embora não seja a ideal, essa definição legal foi capaz de delinear a noção do poder de polícia, destacando o aspecto referente às limitações que a Administração Pública pode instituir sobre direitos.

Marcelo Caetano[12] bem coloca que o poder de polícia é o modo de atuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das atividades individuais suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objeto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que a lei procura prevenir.

Nesse sentido, importante frisar que não é lícito ato administrativo instituir tarifa para remunerar o poder de polícia[13], posto que, em verdade, este tem de ser instituído mediante taxa, a ser processada por lei.

1.2.3. Poder de Polícia como poder discricionário. Distinção entre poder discricionário e arbitrário

Caio Tácito[14] conceitua poder de polícia como sendo “o conjunto de atribuições concedidas à administração para disciplinar e restringir, em favor do interesse público adequado, direitos e liberdades individuais”.

Anote-se que tal faculdade administrativa não ofende o princípio da legalidade, na medida em que é da própria essência constitucional das garantias do indivíduo a supremacia dos interesses da coletividade. Como bem pontua Seabra Fagundes, “não há direito público subjetivo absoluto no Estado moderno"[15]. Todos se submetem, com maior ou menor intensidade, à disciplina do interesse público, seja em sua formação ou em seu exercício. O poder de polícia é uma das faculdades discricionárias do Estado, visando à proteção da ordem, da paz e do bem-estar sociais[16].

Descabe confundir o poder discricionário com o arbítrio irresponsável. A capacidade de autodeterminação naqueles setores em que a lei não vinculou o procedimento do administrador se executa somente no que tange a determinados elementos do ato administrativo, numa espécie de “liberdade vigiada”, vez que, consoante Seabra Fagundes, "no que concerne à competência, à finalidade e à forma do ato discricionário está tão sujeito aos textos legais como qualquer outro” [17].

Em suma, o poder discricionário constitui-se numa faculdade concedida à administração para apreciar o valor dos motivos e fixar o objeto do ato administrativo, quando não o preestabeleça a regra legislativa. Ele se submete não somente a limites externos (que Vítor Nunes Leal[18] denominou de horizontais), como sejam a competência, a forma e a existência material dos motivos; mas também a limites internos (verticais), os quais dizem respeito à observância da finalidade legal.

1.2.4. Indelegabilidade do poder de polícia ao particular. Inspeção veicular e poder de polícia

A prestação do serviço público constitui uma atribuição privativa do Estado, podendo ser exercida por particular, desde que haja regular delegação e seja precedida de licitação.

Há certa discussão na doutrina a respeito da remuneração dos serviços públicos delegados (concedidos ou permitidos). Noutros termos, ainda persiste divergências acerca da possibilidade ou não de o delegatário (concessionário/permissionário) ser remunerado por meio taxa (de serviço).

Com a máxima vênia aos que pensam de modo diferente, temos para nós[19] que quando ocorre a delegação do serviço público do Estado para o particular, a remuneração deve ser dar por meio de tarifa/preço público[20].

No ordenamento jurídico pátrio, a regra é a de que as pessoas jurídicas de direito público são as legitimadas a figurar como sujeitos ativos em relações obrigacionais tributárias. Ou seja, pessoas privadas não possuem aptidão ou competência para exigir[21] tributos, nem mesmo por meio de delegação do poder público. Desta feita, os particulares delegatários de serviços públicos, em regra, não podem ser remunerados através de taxa. Portanto, a remuneração da prestação de serviço público delegado deve ser realizada mediante preço público, cobrada pelo concessionário ou permissionário pela utilização efetiva do benefício pelo administrado.

Ultimamente, ao que consta, vem predominando no âmbito jurisprudencial este entendimento. Em precedentes do STJ[22], fixou-se a tese de que teria natureza jurídica de preço público/tarifa a contraprestação dos serviços (no caso, de água e esgoto), prestados por concessionária de serviço público, e não de taxa, como outrora havia-se entendido (quando se tratou da remuneração referente ao serviço de fornecimento de água).

Caio Tácito[23] também comunga de semelhante entendimento. Para o ilustre doutrinador, a natureza jurídica da contraprestação dos serviços públicos concedidos é a de preço público.

Na mesma trilha, Vladimir da Rocha França[24] assevera que está vedado, constitucionalmente, que serviços públicos cuja prestação é realizada por pessoa jurídica de direito privado e sob o regime de concessão (ou de permissão) componham o critério material da hipótese tributária da taxa pela prestação de serviço público.

Pois bem. Feito esse esboço a respeito da (im)possibilidade da remuneração, mediante taxa, dos serviços públicos delegados (objeto de concessão e permissão), passemos ao tema da (im)possibilidade de delegação do poder de polícia ao particular.

Dividiremos nossa análise em dois pontos: (i) possibilidade de delegação do poder de polícia a entidade integrante da Administração Pública; e (ii) impossibilidade de delegação do poder de polícia a particular (pessoas da iniciativa privada).

Já vimos que o poder de polícia constitui-se numa prerrogativa de direito público que, com respaldo na lei, legitima a Administração Pública a restringir o gozo e o uso da propriedade e da liberdade em favor do interesse de toda a coletividade.

Muito bem. Ab initio, consigne-se que é de um todo pacífico, por óbvio, o exercício do poder de polícia pelas próprias pessoas políticas da federação (Administração Pública Direta). Ora, se lhes cabe editar as próprias leis limitativas, logicamente é razoável que se lhes conceda, em decorrência, o poder de minudenciar as restrições. Em verdade, trata-se, aqui, do poder de polícia originário, o qual abarca, em sentido amplo, as leis e os atos administrativos advindos de tais pessoas.

No entanto, certa discussão há em torno da viabilidade da delegação do poder de polícia a entidade que faz parte da Administração Pública Indireta que tenha personalidade jurídica de direito privado. Nesse caso, acreditamos ser viável tal delegação[25], desde que observados os seguintes requisitos, cumulativamente[26]: (i) a pessoa jurídica integrar a estrutura da administração indireta; (ii) a competência delegada ser conferida por lei; e (iii) o poder de polícia restringir-se à prática de atos de natureza fiscalizatório (partindo-se da premissa de que as restrições são preexistentes e de que se trata de função executória, e não inovadora).

Panorama distinto é o verificado quando o Estado pretende delegar o poder de polícia a particular (pessoa da iniciativa privada) [27]. Isso não é permitido[28]. Veja. O poder de polícia não pode ser outorgado a pessoas da iniciativa privada, desprovidas de vinculação oficial com os entes públicos. Ora, por maior que seja a parceria que tenham com estes, jamais serão dotadas da potestade, isto é, o ius imperii - que se faz necessário ao desempenho da atividade de polícia - não se encontra presente, in casu.

Trazendo essas lições para caso específico da inspeção e manutenção de veículos automotores[29], não é difícil perceber que o Estado outorgou (indevidamente) o exercício do poder de polícia a particular[30], o que afronta, quando menos, os princípios basilares do direito público, verbi gratia, supremacia e indisponibilidade do interesse público.

Isso é o que está previsto, aliás (e à título de exemplo), na Lei do Estado do Rio Grande do Norte n. 9.270/09 (e seu Decreto n. 21.542/09). Vejam-se apenas os parágrafos 1º e 3º do art. 1º do referido diploma normativo para confirmar o acerto do que acabamos de asseverar[31], vale dizer, a indevida previsão legal de delegação do poder de polícia a pessoa privada[32].

Algumas vozes poderiam alegar que se trata, nesse caso, de mera delegação de atos materiais preparatórios ao efetivo poder de polícia, tal como ocorre, excepcionalmente, em dois casos: (i) empresas que fixam e dão manutenção aos equipamentos (aparelhos eletrônicos) de fiscalização que identificam o excesso de velocidade (infrações de trânsito); e (ii) nas hipóteses de atribuição, a pessoas privadas, por meio de contrato, da operacionalização material da fiscalização através de máquinas especiais, usadas na triagem em aeroportos, que visam detectar eventual porte de objetos ilícitos/proibidos. Nesses dois raríssimos exemplos, e somente nestes, inocorre a delegação do poder de polícia, mas tão-somente a outorga de atos materiais preparatórios ao poder de polícia.

Entretanto, o que se transpassa na inspeção veicular feita pelo particular não é mera delegação de atos materiais preparatórios ao efetivo poder de polícia, mas, ao revés, o que ocorre é, inegavelmente, o próprio exercício do poder de polícia pela pessoa privada (como se possível fosse, sem afronta ao sistema de direito positivo).

Ora, imaginemos que a pessoa da iniciativa privada (concessionária), quando da realização da inspeção de determinado veículo, constate que este esteja emitindo poluentes (e/ou ruídos) acima dos níveis permitidos pela legislação. O que irá ocorrer? A pessoa privada não emitirá o certificado que atesta a adequação do veículo automotor aos níveis de emissão de poluentes permitidos pela lei e, consequentemente, o veículo não poderá transitar regularmente[33].

Em assim sendo, o proprietário desse automóvel verá restringido/tolhido[34], de certo modo, o seu direito de propriedade (art. 5º, XXII, CF/88), que é um direito fundamental individual. Restringir o gozo e o uso de direito individual (o direito de propriedade) em prol do interesse de toda a coletividade é, justamente, exercício do poder de polícia. Portanto, transversal e indevidamente a pessoa privada estaria desempenhando o poder de polícia.

Convencidos estamos, pois, de que tal exercício do poder de polícia fiscalizatório (na inspeção veicular) não pode ser feito por empresa privada que não integre a administração pública, justamente porque é vedada a delegação a particular[35].

1.3 Distinção entre Taxa e Preço Público

Passemos a diferenciação entre taxa e preço público. Antes, no entanto, imprescindível que se diga que em ambos se faz presente o interesse público[36].

As taxas, como visto, são espécies de tributo caracterizadas por apresentar, em sua hipótese normativa, a descrição de fato que evidencia uma dada ação estatal, específica e diretamente voltada ao contribuinte.

Como se vê, as taxas (tanto as de serviço quanto as de polícia) decorrem de uma prestação estatal voltada ao contribuinte, sendo regidas pelo direito público.

Por outro giro, o preço público (ou tarifa) [37], consoante Paulo de Barros “consiste na remuneração decorrente da prestação de serviço de interesse público, ou do fornecimento ou locação de bens públicos, efetivada em regime contratual e não imposta compulsoriamente às pessoas” [38].

O preço público ou tarifa remunera o serviço público prestado, sob regime de direito privado, por meio de empresas concessionárias. Analisada pelo ângulo daquele a quem onera, consiste no valor pecuniário que devem pagar os usuários à empresa concessionária sempre que se utilizarem do serviço prestado; vista pela óptica de quem desempenha, a tarifa é a remuneração que a empresa concessionária está legitimada a cobrar, dos usuários, em face dos serviços públicos efetivamente prestados. Em síntese, sua cobrança busca, entre outras finalidades, i) garantir o custeio da prestação dos serviços concedidos; (ii) remunerar, de forma justa, o capital investido pelas concessionárias; e iii) melhorar e expandir os serviços, assegurando o equilíbrio econômico do contrato[39].

Tanto na taxa quanto no preço público[40], subsiste vantagem mensurável para o indivíduo. Entretanto, enquanto na taxa há a obrigatoriedade do serviço mensurável; no preço público[41] o que existe é facultatividade dos serviços mensuráveis.

Acrescente-se, ainda, que a taxa está jungida a atividade legislativa, vale dizer, conditio sine qua non para sua instituição é a edição de lei, e dependem, para sua arrecadação, de serem inscritas na previsão orçamentária; ao passo que o preço público não se subordina a esses requisitos.

Alberto Deodato, distinguindo taxas e preços, registra: “As características da taxa são estas: obrigatoriedade e divisibilidade. Enquanto isso, o preço se caracteriza pela facultatividade. Se a prestação a pagar é por um serviço pedido, não obrigatório, então o que se paga se chama preço” [42].

Há quem diga o traço diferenciador entre os institutos em comento não está na compulsoriedade ou facultatividade, mas na inerência ou não da atividade à função estatal[43]. Para os que assim entendem, em havendo evidente vinculação e nexo do serviço com o desempenho de função eminentemente estatal, estar-se-á diante de taxa. Ao revés, se ocorre uma desvinculação deste serviço com a ação estatal e inexiste óbice ao desempenho da atividade por particulares, tarifa será. Nessa linha de pensamento, quando o serviço público[44] deva ser prestado diretamente pela Administração Pública, por imposição legal ou constitucional, o regime será o de taxa, ainda que a lei adote outro.

Na esteira das ideias de Edwin Siligman[45], Rubens Gomes de Souza[46] insere entre as características das taxas o fato de serem destinadas ao custeio de atividades próprias do Estado, tocando aos preços públicos o custeio de atividades impróprias, ou seja, aquelas que poderiam, igualmente, ser exercidas por qualquer particular, não fosse o monopólio estatal.

No entender do ilustre relator do Código Tributário Nacional, o traço distintivo entre preço público e o tributo deve ser perquirido na própria natureza da atividade realizada pelo Estado. Pertinente esta breve passagem: “Sob este ponto de vista, são preços públicos as exações instituídas pelo Estado para custear atividades que, por sua natureza, não sejam específicas das funções do Estado em sua qualidade de entidade soberana de direito público: por outras palavras, atividades que, por sua natureza intrínseca, seriam próprias da atividade particular, mas cujo exercício é avocado pelo Estado em razão do interesse público que exija a sua instituição, o seu efetivo exercício, ou a sua difusão. Em resumo, o preço público é o próprio preço privado, sempre que perca esse caráter privado em razão do monopólio legalmente instituído pelo Estado” [47].

Conclui Caio Tácito[48] que no plano da elaboração legislativa, como no da exegese jurisdicional, a noção de preços públicos já adquiriu foros de autonomia, inconfundindo-se com o conteúdo das taxas. Ambas correspondem à propiciação de bens ou serviços divisíveis e caracterizados. Mas, enquanto as taxas pressupõem a obrigatoriedade e dispensam a utilização efetiva[49] (é necessário, apenas, que os serviços se encontrem à disposição dos usuários), os preços públicos equivalem a serviços facultativos e não se impõem senão em virtude do ato direto de uso ou aquisição.

Em síntese, enquanto as taxas são regidas pelo regime jurídico de direito público, as tarifas estão circunscritas ao regime contratual privado, ou seja, o preço público visa remunerar o serviço público prestado por empresas concessionárias, sob regime de direito privado. Tarifa, portanto, não é tributo, é apenas uma contraprestação que decorre do consumo, pelas pessoas, de bens ou serviços públicos.

E ainda, em notas rápidas, algumas outras distinções: na taxa, o sujeito ativo é uma pessoa jurídica de direito público, enquanto no preço público pode ser pessoa de direito público ou privado; a taxa pode ser cobrada em virtude de utilização efetiva ou potencial de serviço público, já quanto à tarifa só haverá a sua cobrança em caso de efetiva utilização do serviço; na taxa, a receita arrecadada é derivada, ao passo que na tarifa a receita é originária; por fim, em virtude de ser tributo, a taxa se sujeita aos princípios tributários (anterioridade, noventena, legalidade, entre outros), o que não ocorre com o preço público/tarifa, posto não ser tributo.

Nesse sentido, dispõe a súmula 545 do STF: “Preços de serviços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias e tem sua cobrança condicionada a prévia autorização orçamentária, em relação a lei que as instituiu”.

Por fim, reitere-se uma observação já feita no sentido da divergência existente no ordenamento jurídico acerca da remuneração dos serviços públicos concedidos[50]. Vejamos algumas opostas jurisprudências do STJ na linha do tempo[51].

Num primeiro julgamento (REsp n. 167.489-SP[52]), firmou-se a posição de que o critério para a diferenciação entre taxa e preço público não seria a natureza da relação entabulada entre consumidor/usuário e a entidade prestadora/fornecedora do serviço/bem, vale dizer, não decorre a lógica de ser taxa quando a entidade prestadora do serviço público for de direito público, e, quando de direito privado, ser preço público/tarifa. Assentou-se a ideia de que a natureza jurídica da remuneração é decorrência da essência da atividade realizadora, não sendo afetado pela existência da concessão. “O concessionário recebe remuneração da mesma natureza daquela que o Poder Concedente receberia, se prestasse o serviço”. Inferia-se, portanto, que o Concessionário (ente privado) podia receber também taxa, o que de fato foi entendido no caso concreto.

Por outro lado, hoje vem predominando no âmbito jurisprudencial outro entendimento. Arestos do STJ vêm trazendo posicionamento diametralmente oposto ao primeiro acima apontado. Isso porque, conforme se vê (AgRg no Ag 819.677-RJ[53]), fixou-se a tese de que teria natureza jurídica de preço público (tarifa) a remuneração dos serviços (in casu, de água e esgoto), prestados por concessionária de serviço público, e não de taxa, como noutra ocasião se havia entendido. A mesma orientação é manifestada no AgRg no REsp 985522-RS[54].

Sobre o autor
João Eduardo de Carvalho Costa

Advogado em Natal (RN). Especialista em Direito Tributário pelo IBET.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, João Eduardo Carvalho. Poder de polícia e inspeção veicular à luz do regime jurídico-tributário . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3190, 26 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21369. Acesso em: 22 dez. 2024.

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