3 PROTEÇÃO CONFERIDA AO ADQUIRENTE DE UNIDADE FUTURA PELA LEI Nº 4.591/64
Segundo dados constantes em artigo publicado por Marques Filho (2005, p. 16), o Sistema Financeiro de Habitação, em meados da década de 1960, vinha passando por uma crise. Havia o mister de se tomarem providências para incrementar o mercado imobiliário. Nesta conjuntura, no intuito de ampliar o crédito destinado às transações imobiliárias, criou-se o Sistema Financeiro Imobiliário.
No mesmo compasso dessa onda de impulsionar o mercado de construção civil, enxergou-se ainda que o problema da crise, que se instalava naquele momento, não repousava apenas na restrição do crédito para financiamento, mas consistia também na falta de credibilidade em que se encontrava a atividade incorporativa (GHEZZI, 2007, p.86).
Muitos profissionais despreparados e sem escrúpulos, atraídos pela possibilidade de grandes lucros, atiraram-se neste ramo. O resultado foi o descrédito por parte da população com relação à atividade, acarretando a diminuição da venda de imóveis em que a obra ainda ia ser iniciada ou que se encontrava em construção.
Embora, ainda hoje, não exista um controle eficaz no sentido de fiscalizar se o exercício de tal atividade está sendo desempenhado, nos moldes exigidos pela legislação, no que diz respeito às garantias oferecidas ao adquirente de unidade futura, acredita-se que com o advento da Lei nº 4.591/64, que nos trouxe diversos mecanismos diligentes à boa execução do negócio, se estes forem plenamente aplicados, tornando uma relação desfavorável para o adquirente, mais igualitária.
Não se afirme que não existe nenhum tipo de fiscalização dessa atividade, pois é necessário reconhecer que quando o incorporador age de boa fé, executando todos os passos para o correto exercício da atividade, este passa pelo crivo da Serventia Registral competente, conforme art. 32, § 1º da Lei nº 4.591/64, bem como do Órgão Municipal, de acordo com art. 32, “d” da Lei 4.591/64. O cerne do problema consiste, no entanto, quando os caminhos determinados não são seguidos.
Muitos autores, como Melhim Namem Chalhub, acreditam que a Lei nº 4.591/64 pauta-se em um sistema especial de proteção ao adquirente de unidade futura, tendo em vista que estes, geralmente, negociam com grandes construtoras ou com incorporadores possuidores de recursos financeiros e com experiência no ramo, ficando os adquirentes em desvantagem na maioria das vezes. Nesse sentido, segue o posicionamento de Chalhub (2010, p. 265-266):
O sistema de proteção dos adquirentes de unidades imobiliárias no regime das incorporações sustenta-se nos mesmos princípios do sistema de proteção dos consumidores em geral, e ambos encontram fundamento, basicamente, nos princípios constitucionais da isonomia, do devido processo legal e da garantia da propriedade privada, observada sua função social, os quais, por sua vez, inspiram-se nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (Art. 1º, III e IV), fundados no desenvolvimento humano e na dignidade da pessoa humana (Art. 5º, XXII e XXIII, e 170).
Não são poucas as exigências que devem ser atendidas pelo incorporador, quando pretende começar tal atividade. Um exemplo disso é o arquivamento da vasta documentação no Ofício de Registro de Imóveis competente, como pressuposto para iniciação da atividade, consistindo, a propósito, tal retenção da documentação em cartório num dos principais deveres do incorporador. Vejamos quais os documentos exigidos pelo art. 32 da Lei 4.591/64, no intuito de observar o zelo que a lei exige do incorporador para com a atividade:
Art. 32. O incorporador somente poderá negociar sobre unidades autônomas após ter arquivado, no cartório competente de Registro de Imóveis, os seguintes documentos:
a) título de propriedade de terreno, ou de promessa, irrevogável e irretratável, de compra e venda ou de cessão de direitos ou de permuta do qual conste cláusula de imissão na posse do imóvel, não haja estipulações impeditivas de sua alienação em frações ideais e inclua consentimento para demolição e construção, devidamente registrado;
b) certidões negativas de impostos federais, estaduais e municipais, de protesto de títulos de ações cíveis e criminais e de ônus reais relativo ao imóvel, aos alienantes do terreno e ao incorporador;
c) histórico dos títulos de propriedade do imóvel, abrangendo os últimos 20 anos, acompanhado de certidão dos respectivos registros;
d) projeto de construção devidamente aprovado pelas autoridades competentes;
e) cálculo das áreas das edificações, discriminando, além da global, a das partes comuns, e indicando, cada tipo de unidade a respectiva metragem de área construída;
f) certidão negativa de débito para com a Previdência Social, quando o titular de direitos sobre o terreno for responsável pela arrecadação das respectivas contribuições;
g) memorial descritivo das especificações da obra projetada, segundo modelo a que se refere o inciso IV, do art. 53, desta Lei;
h) avaliação do custo global da obra, atualizada à data do arquivamento, calculada de acordo com a norma do inciso III, do art. 53 com base nos custos unitários referidos no art. 54, discriminando-se, também, o custo de construção de cada unidade, devidamente autenticada pelo profissional responsável pela obra;
i) discriminação das frações ideais de terreno com as unidades autônomas que a elas corresponderão;
j) minuta da futura Convenção de condomínio que regerá a edificação ou o conjunto de edificações;
l) declaração em que se defina a parcela do preço de que trata o inciso II, do art. 39;
m) certidão do instrumento público de mandato, referido no § 1º do artigo 31;
n) declaração expressa em que se fixe, se houver, o prazo de carência (art. 34);
o) atestado de idoneidade financeira, fornecido por estabelecimento de crédito que opere no País há mais de cinco anos.
p) declaração, acompanhada de plantas elucidativas, sôbre o número de veículos que a garagem comporta e os locais destinados à guarda dos mesmos.
Segundo Ghezzi (2007, p. 83), o principal objetivo do arquivamento da mencionada documentação em cartório é dar publicidade ao projeto jurídico da obra, que ainda irá erguer-se, de modo que os adquirentes de unidades futuras possam avaliar a segurança jurídica do negócio a ser celebrado.
Para Chalhub (2010, p. 280):
[...] a exibição no Registro de Imóveis, das condições básicas de incorporação, assim como a informação periódica sobre a obra, correspondem aos deveres de lealdade, confiança e de informação que corporificam o princípio da boa-fé e possibilitam ao pretendente a formação consciente da vontade de contratar, viabilizando, em conseqüência, o exercício efetivo da vontade de contratar.
Ainda, inclinando-se sobre os ensinamentos do Ghezzi (2007, p. 87), este relaciona em sua obra uma série de obrigações do incorporador, que são de essencial acuidade para a garantia dos direitos dos adquirentes de unidades autônomas. Para ele, a principal obrigação do incorporador consiste na edificação do prédio, e tal obrigação desmembra-se em: concluir a obra no prazo acertado e a de conseguir executar o projeto de acordo com o acertado no contrato firmado com os adquirentes das frações ideais.
De fato, cumprindo-se as obrigações elencadas no rol do art. 32 da Lei nº 4.591/64, atinge-se o fim da negociação firmada, e foi na tentativa de atingir tamanho desígnio, que os juristas compuseram o rol de obrigações do incorporador.
Muito bem coloca Ghezzi (2007, p. 64), quando relata o avanço da Lei de Condomínios e Incorporações para o seu tempo ao prever em seus arts. 43, I e 60, o dever do incorporador de manter os adquirentes de frações de terrenos sempre informados acerca do andamento da construção e, ainda, o dever do incorporador de indenizar os adquirentes pelos prejuízos que possam padecer com a interrupção ou retardo das obras, mesmo que isso não ocorra por sua exclusiva culpa.
Por sinal, o direito à informação, acerca da lisura de todo o procedimento da incorporação, também é um direito do adquirente de fração ideal de terreno vinculada a unidade autônoma, uma vez que, do parágrafo 1º ao 5º do art. 32 da Lei 4.591/64, fica determinado o direito do adquirente de solicitar qualquer tipo de informação na serventia registral competente.
Postas as unidades à venda, após o cumprimento das regularidades constantes da Lei de Condomínio e Incorporações, a referida lei prevê, ainda, em seus artigos 49 e 50, a possibilidade dos adquirentes de unidades futuras reunirem-se em assembléia para deliberarem interesses seus, no tocante à obra, perante o incorporador.
Na fase de execução da obra, surge o dever do incorporador executar o projeto nos exatos moldes em que este foi aprovado, em face da regra do art. 43, IV da Lei nº 4.591/64, haja vista que, após a concessão do “habite-se” pela autoridade municipal, ou seja, de uma autorização indicando que o empreendimento está pronto para morar, o incorporador deverá providenciar a averbação da construção, para fins de individualização e discriminação de cada unidade autônoma, conforme prevê o Art. 44 da Lei de Condomínios e Incorporações.
Ocorre que, caso o promovente da obra desvie o projeto em qualquer mínimo detalhe, não será procedida à averbação da construção, de uma certidão específica para o ato emitida pela prefeitura, a qual somente emitirá tal certidão, se o fiscal verificar in loco a fidelidade da execução da obra ao projeto aprovado. Fato que, por si só, poderá causar grandes prejuízos aos compradores, por ficarem impossibilitados de registrar seu imóvel.
Ademais, a Lei em comento prevê, em seus artigos 63 e seguintes, como modo de coibir a astúcia dos incorporadores, sanções penais para os que, por má administração dos recursos ou simplesmente por mera ganância, frustrem a segurança legal do empreendimento, podendo alguns dos seus comportamentos configurarem, até mesmo, crime contra a economia popular.
Embora a lei interpretada tenha criado diversos dispositivos para tornar as relações jurídicas, que envolvam contratos, mais igualitárias, permaneceram ainda lacunas, que levaram os estudiosos do assunto e os julgadores à criação de novos mecanismos, no intuito de tornar o negócio mais isonômico.
A Lei nº 4.591/64 já previa em diversos pontos, como no § 1º do art. 44, a possibilidade de responderem solidariamente construtores e incorporadores, quando tratar-se de pessoas diversas, visando a dar maior solidez às construções. Entretanto, segundo os preceitos do art. 25, § 1º do Código de Defesa do Consumidor, a proteção ao adquirente de unidade futura teve realmente um grande avanço quando à jurisprudência pátria passou a decidir no sentindo da responsabilidade solidária entre o incorporador e a instituição financiadora da obra, sob a alegação de que o fato de haver um banco financiando a obra dá maior credibilidade ao negócio, atraindo, assim, uma gama maior de possíveis adquirentes.
Essa iniciativa passou a ser adotada por parte dos tribunais, após a falência da construtora Encol S/A Engenharia, Comércio e Indústria, em meados de 1997, visto que após esse caso, milhares de adquirentes no Brasil sofreram prejuízos frente aos diversos empreendimentos inacabados. Nesse sentido, decidiu a 3ª turma do Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso especial, senão vejamos:
CIVIL. RESPONSABILIDADE DO AGENTE FINANCEIRO PELOS DEFEITOS DA OBRA FINANCIADA. A obra iniciada mediante financiamento do Sistema Financeiro da Habitação acarreta a solidariedade do agente financeiro pela respectiva solidez e segurança. Recurso especial conhecido, mas improvido. (REsp. 51.169/RS, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, TERCEIRA TURMA, julgado em 09.12.1999, DJ 28.02.2000 p. 76). (BRASIL, on line)
Perceba-se que as preocupações em aprimorar as relações contratuais, nesse ramo, não param. Nesse cenário, sentiu-se a necessidade de se adotarem medidas que ofertassem maior confiabilidade aos adquirentes de unidade imobiliárias futuras, quando da aquisição da unidade autônoma, e uma dessas medidas foi a instituição do patrimônio de afetação que, primeiramente, foi previsto na Medida Provisória 2.221/2001 e, posteriormente, acrescentado na Lei nº 4.591/64, através da Lei nº 10.931/04.
Conforme o art. 31-A, da supramencionada lei, o incorporador poderá, a seu critério, submeter o empreendimento ao regime da afetação. Entretanto, aqui está o cerne, pois, neste ponto, a Lei de Condomínio e Incorporações não obrigou o incorporador a adotar tal medida, deixando à sua livre escolha adotar ou não essa medida tão salutar para o bom desenvolvimento da relação entre incorporador e adquirente.
Segundo Chalhub (2010, p. 62), o patrimônio de afetação propende em resguardar o patrimônio destinado à consecução daquela obra contra os riscos inerentes de outros negócios da empresa incorporadora, objetivando que seus fortuitos não interfiram de maneira a prejudicar a estabilidade da empresa, nem atinjam a incorporação afetada. Ainda, sob o esteio do citado autor, configura-se a afetação de patrimônio:
Por efeito da afetação, cria-se um regime de vinculação de receitas, pelo qual as quantias pagas pelos adquirentes fiquem afetadas à consecução da incorporação, vedado, no limite definitivo da lei, o desvio de seus recursos para outras finalidades. O volume dos recursos afetados, entretanto, limita-se ao quantum necessário à execução de obra e regularização do edifício no Registro de Imóveis, estando excluídas da afetação, portanto, as quantias que excederem a esse limite, das quais o incorporador pode se apropriar sem restrição alguma. (CHALHUB, 2010, p. 62).
Estipula o parágrafo primeiro, do art. 31-A, da Lei 4.591/64, que a incorporação, cujo responsável opta pelo regime de afetação, deverá possuir contabilidade própria, separada da contabilidade da empresa incorporadora, devendo cada empreendimento lançado ter balanço específico, pretendendo-se nitidamente evitar a dificuldade financeira de uma obra prejudicar a outra.
Por fim, outro fator importante, que também colaborou para o tema em epígrafe, refletindo na Lei nº 4.591/64, é a despatrimonialização firmada pelo Código Civil de 2002, explanada por Brito (2002, p. 146), inspirado na Constituição Federal de 1988, que trouxe para a nova conjuntura do direito, valores sociais e éticos ao estipular em seu art. 422, o dever da boa fé nas relações contratuais.
Para Chalhub (2010, p. 83), tal fator veio a influenciar diretamente as relações comerciais de compra e venda de imóvel em regime de incorporação, especialmente pela fixação do entendimento de que a propriedade privada só se dá quando existe conteúdo social bem mais relevante do que o individual.