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O excesso de jornada como ofensa ao direito ao lazer

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Agenda 06/04/2012 às 14:37

4 A RECEPÇÃO CONSTITUCIONAL DA CLT REFERENTE À PRORROGAÇÃO DA JORNADA

É inevitável analisar a recepção constitucional das normas celetistas sobre a prorrogação de jornada quando se estuda o direito fundamental ao lazer, principalmente depois desta conclusão de Alessandro Severino Váller Zenni (2009, p. 163):

(...) a limitação da jornada de trabalho no Brasil é letra morta, porquanto a própria CLT permite estipulação de jornada mais dilatada, desde que presente o acordo escrito e que neste estabeleça o valor adicional de horas extras, mencionando, ainda, que a jurisprudência abrandou a exigência da formalidade de acordo escrito, consagrando a integração das extraordinárias para os efeitos legais, desde que praticadas com habitualidade (Súmulas 45, 76, 94, 115, 172, 291, 347 do TST), justamente diante dos salários de fome pagos por jornadas normais, os quais requestam a complementação de extras. Com isso, toda a teoria de combate ao trabalho suplementar cede ante a realidade econômica.

Conforme a CLT, as prorrogações de jornada normal do trabalho podem acontecer nas seguintes situações:

1.                            Mediante acordo escrito, por até duas horas:

Art. 59. A duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas suplementares, em número não excedente de 2 (duas), mediante acordo escrito entre empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de trabalho.

2.                            Mediante acordo de compensação de horas:

Art. 59. (...)

§ 2º  Poderá ser dispensado o acréscimo de salário se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda, no período máximo de um ano, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado o limite máximo de dez horas diárias.

3.                            Independentemente de acordo, em casos de interrupção ou paralisação do trabalho resultante de causas acidentais ou força maior que determine a impossibilidade de sua realização, mas necessita de autorização prévia do Ministério do trabalho:

Art. 61. (...)

§ 3º - Sempre que ocorrer interrupção do trabalho, resultante de causas acidentais, ou de força maior, que determinem a impossibilidade de sua realização, a duração do trabalho poderá ser prorrogada pelo tempo necessário até o máximo de 2 (duas) horas, durante o número de dias indispensáveis à recuperação do tempo perdido, desde que não exceda de 10 (dez) horas diárias, em período não superior a 45 (quarenta e cinco) dias por ano, sujeita essa recuperação à prévia autorização da autoridade competente.

4.                            Independentemente de acordo, para atender a realização ou finalização de serviços inadiáveis, ou que possam causar prejuízo manifesto, devendo comunicar o fato ao órgão local do Ministério do Trabalho:

Art. 61 - Ocorrendo necessidade imperiosa, poderá a duração do trabalho exceder do limite legal ou convencionado, seja para fazer face a motivo de força maior, seja para atender à realização ou conclusão de serviços inadiáveis ou cuja inexecução possa acarretar prejuízo manifesto.

5.                            Independentemente de acordo, em caso de força maior:

Art. 61. (...)

§ 2º - Nos casos de excesso de horário por motivo de força maior, a remuneração da hora excedente não será inferior à da hora normal.

(...)

Art. 501 - Entende-se como força maior todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente.

Antes de prosseguir, deve-se perguntar: basta acordo escrito para prorrogar a jornada? É lícito o fato de ter horas complementares habituais?

Fica fácil responder quando se tem a definição da única possibilidade de prorrogação de jornada: serviço extraordinário é aquele prestado excepcionalmente além da jornada normal.

Sendo assim, o acordo entre as partes não é capaz de legitimar a prorrogação de jornada, pois o acordo não está, por si só, dando a natureza excepcional do serviço extraordinário.

A habitualidade é algo ainda mais grave, pois é o extremo oposto de serviço extraordinário. Seria paradoxal admitirmos um serviço extraordinário habitual. Logo, o art. 59 não foi recepcionado pela atual Constituição, pois afronta diretamente o novo ordenamento jurídico instituído em 1988.

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Porém, compensação poderá ser utilizada apenas nos outros casos, mas não por força do art. 59 da CLT, mas, sim, do Art. 7º, inciso XIII, da Constituição.

Otávio Calvet (2006) acompanha o mesmo raciocínio:

Dessa forma, por essa interpretação da Constituição, à qual nos filiamos, chega-se à conclusão de que o art. 59, caput da CLT não foi recepcionado, donde se extrai que não mais é possível a prática de simples acordo para prorrogação de jornada sem a posterior compensação.

Já o art. 61 da CLT é totalmente compatível com a Constituição por tratar-se justamente do serviço extraordinário (força maior, etc). Otávio Calvet (2006), sobre aparente contradição entre a conclusão da não recepção do art. 59, caput da CLT e a previsão constitucional da compensação, também faz referência ao art. 61 da CLT:

Referida contradição é apenas aparente, pois além das horas de prorrogação no sistema da compensação de jornadas serem também conceituadas como horas extras - já que prestadas além da jornada ordinária e, caso não compensadas, serão objeto de remuneração - ainda permanecem em vigor, por não contrariarem o texto constitucional, as horas de excesso previstas no mencionado art. 61 da CLT, que constituem as verdadeiras horas extraordinárias ante sua previsão completamente excepcional, ou seja, apenas em caso de necessidade imperiosa para fazer frente a motivo de força maior, para realização de serviços inadiáveis ou cuja inexecução possa trazer prejuízo manifesto ao empregador e, ainda, por motivo de interrupção empresarial para a recuperação das horas de trabalho, e com as cautelas e requisitos ali mencionados.

Com isso, quer-se dizer que a Constituição de 1988 apenas viabiliza prorrogação de jornada em duas hipóteses: dentro de sistema de compensação e quando a prática do labor além da duração normal seja algo esporádico. (grifos nossos)

Há um artigo que, numa leitura desatenciosa, poderia dar margem para que certos empregados possam ter sua jornada prorrogada sem qualquer limite e sem o pagamento de horas extras. De forma mais imperceptível, o art. 62 pode, no caso concreto, ser utilizado equivocadamente para ofender o direito ao lazer:

Art. 62 - Não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo:        I - os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de empregados; 

II - os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de gestão, aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste artigo, os diretores e chefes de departamento ou filial.

Parágrafo único - O regime previsto neste capítulo será aplicável aos empregados mencionados no inciso II deste artigo, quando o salário do cargo de confiança, compreendendo a gratificação de função, se houver, for inferior ao valor do respectivo salário efetivo acrescido de 40% (quarenta por cento).

Este artigo apenas exclui estes empregados do controle de entrada e saída, pois, no caso concreto, é praticamente impossível fazê-lo. Não pode ser utilizado de forma abusiva a ponto de deixar o empregado trabalhar indefinidamente, sem qualquer descanso. Ou seja, este artigo dá abertura para seu uso abusivo que, desta forma, seria um ato ilícito, pois fere o direito ao lazer. Analisando sob o prisma da dignidade da pessoa humana, pode-se concluir que o art. 62 é constitucional. É um artigo perigoso, mas constitucional.

Mas o parágrafo anterior apenas reforça que o direito ao lazer é direito de todo ser humano, logo, de todos os trabalhadores, sem exceção.


5 EXCESSO DA JORNADA COMO OFENSA AO DIREITO AO LAZER

Uma vez definido que “serviço extraordinário” é aquele unicamente previsto no art. 61 da CLT, podendo este ter “compensação” (apenas através de acordo ou convenção coletiva), qualquer espécie de prorrogação diferente do previsto não foi recepcionado pela Constituição e ofende diretamente o direito fundamental ao lazer.

Portanto é importante definir que jornada excessiva é aquela que viola o direito ao lazer, portanto, um ato ilícito que causa dano ao trabalhador, conforme já prescreve o Código Civil:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. (grifos nossos)

Enfim, havendo prorrogação de jornada que não atende ao art. 7º, XIII e XVI da Constituição e o art. 61 da CLT, o empregador cometerá ato ilícito, pois ferirá o direito ao lazer. Já o art. 187 CC se aplica ao caso do art. 62 da CLT, em outras palavras, apesar deste artigo ser constitucional, não poderá ser aplicado desviando de seus fins, por proibição expressa daquele.

Mesmo que haja acordo do empregado na prorrogação indevida, dependendo do caso concreto e com respeito à razoabilidade, haverá ofensa ao direito ao lazer, afinal é um direito irrenunciável e o empregador não pode ser aproveitar da fragilidade econômica do empregado; este que, normalmente, ganha muito pouco, principalmente cumprido apenas a jornada normal.


6 CABIMENTO DE INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA AO DANO CAUSADO

O que mais chama atenção é a grande distância entre o direito fundamental, objeto deste trabalho, e sua proteção, principalmente na dimensão infraconstitucional, praticamente indiferente a ele.

A primeira vista, nada acontece com quem não paga o adicional de horas extras. No máximo, pagará o que deixou de pagar.

Seria como roubar um carro e, no final do processo, o máximo que poderá acontecer será devolver o objeto roubado. Isso se não fizer um acordo para entregar somente o volante e ficar por isso mesmo. Esta metáfora do carro ocorre todos os dias com o adicional das horas extras.

Mas se ficar comprovado que feriu o direito ao lazer, esta situação injusta pode e deve ser equilibrada, compensada.

Uma vez estabelecido que comete ato ilícito quem ofende direito ao lazer, cabe citar o Código Civil para tratar das consequências:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

A reparação não pode ser o pagamento das horas-extras, afinal tal pagamento advém da remuneração do trabalho.

O que se está em jogo é a ofensa do direito de ter tempo livre dedicado para si. Em outras palavras, a ofensa ao direito ao lazer não se configura pela falta de pagamento das horas-extras. Até porque remuneração se refere à contraprestação ao trabalho realizado. O direito ao lazer é exatamente o contrário de trabalho realizado. Como se trata de um direito extrapatrimonial, deve ser reparado pela indenização pelos danos morais.

Otávio Calvet vai na mesma linha:

Como se viu em sua conceituação, o lazer possui várias perspectivas, sendo antes de mais nada um estado da existência humana, podendo-se concluir, nesse aspecto, que sua esfera de atuação gravita em torno de direitos extrapatrimoniais do ser humano, como um bem imaterial que a ordem constitucional reconhece como valor intrínseco ao próprio ser humano a fim de manter sua dignidade.

Nessa esteira de raciocínio, eventual lesão ao direito ao lazer finca-se na esfera dos já reconhecidos danos morais, atualmente até mesmo na ordem trabalhista como se vê no art. 114, VI da Constituição Federal com a redação da Emenda Constitucional n. 45, de 31 de dezembro de 2004, tendo, portanto, natureza indenizatória.

(...)

Dessa forma, pode-se concluir que no exemplo da prática de horas extras habituais, torna-se viável - além do óbvio pagamento da energia de trabalho pela remuneração das horas de trabalho com o adicional mínimo de 50% - a reparação pela lesão correlata sofrida quanto ao direito ao lazer, mensurando-se o valor dessa indenização, de cunho moral, pelas circunstâncias que envolverem cada caso concreto.

Portanto, não há dúvidas que cabe indenização pelos danos morais causados pela ofensa ao direito humano fundamental ao lazer. Tal valor deve ser mensurado de acordo com o caso concreto, como qualquer outra indenização envolvendo direito extrapatrimonial.


CONCLUSÕES

Este trabalho chegou à conclusão que o direito ao lazer é um direito humano fundamental do segundo grupo. Possui eficácia positiva e negativa imediata, inclusive de forma horizontal, afetando diretamente a relação de trabalho.

 Também concluiu que a Constituição limita a jornada de trabalho e autoriza a realização de serviço extraordinário, com remuneração superior à normal ou com compensação, mediante convenção ou acordo coletivo. Com a definição de “serviço extraordinário” notou-se que o art. 59 da CLT não foi recepcionado pela Constituição e que o art. 62 deve ser aplicado com cuidado, para não exceder os limites impostos pelo ordenamento jurídico.

Por fim, verificou-se que a jornada que foge dos parâmetros acima, constitui ato ilícito, por ser excessiva, por ferir o direito ao lazer. Por ser ato ilícito, ou abuso de direito, e por se tratar de um direito extrapatrimonial, a reparação deve ser feita através de indenização por danos morais.

Como foi dito no início, este trabalho é, em sua essência, um trabalho sobre a liberdade humana, sobre o tempo para ser humano. Para finalizar, vale citar uma frase famosa de Oswald de Andrade:

O ócio não é a negação do fazer, mas ocupar-se em ser o humano do homem.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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_________. Decreto-Lei Nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 09/09/2010.

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Escrituras Sagradas. Antigo Testamento. Disponível em: http://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/3?verse=19. Acesso em 01/09/2010.

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ZENNI, Alessandro Severino Váller e RAFAEL, Marcia Cristina. Remuneração e Jornada de Trabalho - Temas Atuais. 1ª Ed. Curitiba: JURUÁ, 2009.


Notas

[1] Trecho da Bíblia, no Antigo Testamento, em Gêneses 3, versículos 17 a 19. (http://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/3?verse=19. Acesso em 01/09/2010)

[2] Aforismo, conforme o Dicionário Priberam, significa “preceito expresso em forma de sentença breve”. (http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=aforismo. Acesso em 24/08/2010).

[3] Mas também se aplica às mulheres.

[4] Supondo que ela não está cursando por mero prazer e, sim, para agregar mais uma habilidade na sua vida profissional. Ou seja, é um tempo dedicado a uma atividade obrigatória.

[5] Versão eletrônica. Não possui numeração de página.


ABSTRACT

This scientific paper examines the constitutional limits of the extension of working hours: the fundamental human rights of the worker. This study compatibilizes extension of the journey with the right to leisure, both under the Constitution. For this we studied the nature of this constitutional right and the reception of norms regarding the extension of the journey. Finally, it addresses the consequences when those limits are not respected.

KEY-WORDS: Journey. Leisure. Fundamental Right. Moral Damage.

Sobre o autor
Rodrigo Maia Santos

Advogado mestrando em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Pós-graduado (especialização) em Direito Público pela Universidade Anhanguera-UNIDERP; Pós-graduado (especialização) em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera-UNIDERP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Rodrigo Maia. O excesso de jornada como ofensa ao direito ao lazer. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3201, 6 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21451. Acesso em: 22 dez. 2024.

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