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Interrupção da gravidez de feto anencéfalo: a preponderância dos direitos da gestante

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Agenda 11/04/2012 às 11:13

5 DOS DIREITOS DA GESTANTE

5.1 DIREITO À SAÚDE

A saúde é um direito social de todos e dever do Estado previsto no art. 196 da Constituição Federal.

De acordo com Eduardo Rocha (2011, p. 79), durante muitos anos a saúde foi concebida apenas como ausência de doenças, mas que no decorrer do processo histórico constatou-se que este conceito negativo não era capaz de proporcionar uma vida com qualidade, ampliando-se a noção de saúde a uma dimensão positiva.

A Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2012), define a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”.

Como se verifica, o conceito de saúde não compreende apenas a ausência de doença, mas abrange o bem estar tanto físico como mental e social.

No caso da gravidez de fetos anencéfalos, os especialistas apontam muitos complicadores que podem comprometer a saúde e até mesmo a vida das gestantes, como por exemplo, risco de óbito intra-uterino, possibilidade de toxemia gravídica em razão do excesso de líquido amniótico, aumento dos riscos obstétricos no parto e no pós-parto, risco de hipertensão e diabetes, parto prematuro, gravidez prolongada, descolamento placentário, esterectomia, etc. Igualmente relatado foi o abalo psicológico sofrido pelas gestantes.

Sobre esses riscos falaram na Audiência no STF do dia 28.08.2004 alguns especialistas. O Doutor Roberto Luiz D’Ávila, representando o Conselho Federal de Medicina assim se posicionou (BRASIL, 2008c, p. 07-08):

A gravidez impõe um risco à mulher. Por que submetê-la a um risco, que para nós é desnecessário, se ela não desejar? E esse é o grande problema, ficamos absolutamente reféns das decisões judiciais.

Geralmente o que acontece, infelizmente, é que as decisões não favorecem ao desejo dos pais, elas são postergadas, e, quando se decide, o bebê já nasceu e já morreu. É assim que acontece. Na grande maioria, sessenta e cinco por cento das estatísticas mostram que os anencéfalos morrem intra-útero, numa provável seleção natural. A natureza faz isso com má-formações incompatíveis com a vida. Mas alguns chegam a nascer, e a grande maioria morre poucas horas depois; aqueles que duram mais tempo são absolutamente exceções. E nós que fazemos medicina, ciência, não nos pautamos por exceções, nos pautamos por regras, e a regra geral exige isso.

E ainda em resposta ao questionamento do MINISTRO MARCO AURÉLIO que indagou se a saúde da gestante, em si, é afetada pela gravidez de feto com anencefalia, assim respondeu:

Excelência, sou cardiologista, mas é claro que, por dever de ofício, lemos muito sobre o assunto, até por ser um estudante ainda de Bioética. É sabido que, na gestação de um anencéfalo, é muito freqüente a ocorrência simultânea do que chamamos de polihidrâmnio, excesso de líquido amniótico, já que ele não deglute, há uma contínua produção, e essa associação é muito comum. Essa condição de polihidrâmnio é acompanhada de toxemia gravídica, caso grave que expõe a saúde da mãe.  (BRASIL, 2008b)

Por sua vez, falou pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, o Professor Doutor Jorge Andalaft Neto, que enumerou uma série de complicadores da gravidez de anencéfalo (BRASIL, 2008b, p. 15-19):

A anencefalia é uma malformação mais frequentemente diagnosticada no primeiro trimestre da gestação.

No primeiro exame de ultra-som, já dentro do primeiro trimestre da gestação, antes de doze semanas é possível diagnosticar a patologia – o professor Roberto Alberto D’Ávila fala em um caso de nove semanas.

O impacto psíquico é muito grande para as mulheres, é devastador. Elas são acometidas por choro, tristeza profunda, frustração, culpa, indignação, sofrimento, pensamentos de morte e acham que elas são as responsáveis por estar acontecendo aquela coisa com o seu bebê.

A anencefalia é incompatível com a vida – isso explicamos para a mulher. Ela é letal, multifatorial e decorre de defeitos de fechamento de tubo neural. O feto também pode ter outras malformações associadas. Agora, o problema é que o prosseguimento gestacional aumenta muito os riscos para as mulheres. Esses são dados da Organização Mundial da Saúde em um estudo feito em 2005, muito bem estruturado.

Aí estão as repercussões para a vida da mulher que é forçada a prosseguir a gestação: aumento da morbidade; aumento dos riscos durante a gestação; aumento dos riscos obstétricos no parto e no pós-parto e conseqüências psicológicas severas. São dados da Organização Mundial da Saúde e do Comitê da Associação de Ginecologia e Obstetrícia Americana.

Um estudo com oitenta pacientes realizado na Universidade Federal de São Paulo mostrou os seguintes dados, Excelência: variações do líquido amniótico, 50% - isso foi uma tese de Doutorado muito estruturada, passou por uma banca examinadora de muita competência, sendo os dados muito confiáveis –, inclusive sendo o mais importante o polidrâmnio; a hipertensão e o diabetes apareceram em 9,3% das mulheres; o parto prematuro em 58% das mulheres; a gravidez prolongada em 22%; descolamento placentário, 7% - esses são dados muito confiáveis -; óbito intra-uterino, 7%; 4,8% das mulheres precisaram tomar transfusão de sangue porque o útero não contraía depois do parto; 4% sofreram esterectomia, perderam o útero; apenas 2,8% destas mulheres não apresentaram nenhuma intercorrência.

Um outro trabalho, feito no Japão por Hitomi, em 2007, mostra uma situação parecida: 50% de polidrâmnios; 23% de óbito intra-uterino; 46% de apresentações anômalas - o bebê não fica na posição correta, não fica de cabecinha para baixo, mas fica atravessado ou sentado, não conseguindo se posicionar -, o que aumenta muito o risco na hora do parto; partos de emergência, 29%; e esterectomias pós-parto, 5% - 5% das mulheres sofrem esterectomia, perdem o útero em decorrência disso. Polidrâmnio provoca - Vossa Senhora havia perguntado - insuficiência venosa, partos prematuros, dificuldades respiratórias e ruptura prematura da bolsa ocorrem em 50% das vezes.

Agora, o impacto sobre a saúde mental das mulheres é impressionante. O risco de depressão é oito vezes maior. O stress psíquico, a angústia, a culpa, pensamentos de suicídios - temos casos em que a mulheres queriam se suicidar por se sentirem culpadas, fora que a situação conjugal dessas mulheres fica muito comprometida -, fixação na imagem fetal, sofrimento e tristeza profunda.

O Doutor Thomaz Rafael Gollop, representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, também elencou alguns problemas relacionados á gestação de anencéfalos (BRASIL, 2008c, p 98-99):

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Fiz bem. Trouxe alguns dados com referência bibliográfica: Polihidrâmnio, cinqüenta por cento dos casos; gravidez prolongada, dezoito por cento dos casos; anomalias na posição do feto que complicam o parto e arriscam a mãe, vinte e cinco por cento dos casos.

Notem senhores: um quarto das grávidas têm posições inadequadas do feto que complicam a dinâmica do parto. O descolamento da placenta do útero antes do parto é três vezes maior e pode trazer graves complicações obstétricas. O acrômio é o osso do ombro. O desprendimento do ombro que tem altas implicações e complicações do assoalho pélvico da mulher é seis vezes maior; rotura prematura da bolsa das águas, três vezes maior.

Nós somos cuidadosos nas referências, no estudo. Portanto, na retenção de placenta e atonia do útero que não se contrai, não há dados na literatura. E eu não me permito fazer chutes.

Esta é a condição de um feto anencefálico: ele não tem crânio nem cérebro. Logo, não pode ter nenhum tipo de sentimento, porque não há uma estação que processe isso.

Suelen Chirieleison Terruel (2012, p.01) também expõe os riscos que a saúde da gestante corre com a gravidez nessas circunstâncias:

Com relação aos períodos do parto, nota-se que, em geral, a fase de dilatação e de expulsão fetal são mais demoradas. Orienta-se que deve ser observado que, nos casos onde há cicatrizes uterinas anteriores (cesarianas), a estimulação do parto deve ser criteriosa. A escolha da via parto é sempre difícil, com preferência ao parto por via vaginal, mesmo sendo mais penoso. Cria-se um risco elevado no momento do parto devido ao trauma que o tecido nervoso residual sofre por não estar protegido pelas estruturas ósseas.

Quanto à gestante, há divergência sobre o fato da gestação de anencéfalo ser prejudicial ou não à mulher. Significativa é a representação de médicos que dizem não haver nenhum risco para a gestante, os quais afirmam ser a gestação de anencéfalo idêntica à gestação de feto saudável.

Entretanto, existe uma vertente que defende ser a gestante de anencéfalo prejudicada pela gestação, afirmando que há evidências muito claras de que a manutenção da gestação pode elevar o risco de morbi-mortalidade materna. Neste sentido se posiciona a Febrasgo, afirmando ser freqüente a associação da anencefalia à polihidrâmnio em 50% dos casos. Esta alta incidência deve-se ao fato de que parte do líquido amniótico é deglutido pelo concepto. Também a apresentação fetal anômala (pélvico transverso, de face e oblíquos) é encontrada em gestações de anencéfalo devido à dificuldade de insinuação do pólo fetal no estreito inferior da bacia. Não é desprezível também a associação com doença hipertensiva específica de gravidez (DHEG), comprometendo o bem-estar físico da gestante.

Nos casos em que se observa a associação com polihidrâmnio e trabalho de parto prolongado, a incidência de hipotonia e hemorragia no pós-parto é de 3 a 5 vezes maior. Pelo fato da mulher não amamentar, já que há o bloqueio da lactação, também a involução uterina é mais lenta, suscitando sangramento às vezes de grande monta no puerpério.

Como se pode notar, não há dúvidas que tanto a saúde física quanto a saúde mental da gestante é abalada na gravidez de feto anencefálico.

O Conselho Federal da OAB já se manifestou no sentido de dever prevalecer o direito à saúde da gestante nesse casos de gestação de anencéfalo, conforme se verifica do trecho do Parecer abaixo (2004, grifo nosso):

17. Com efeito, o artigo 196, da Carta Magna, reza: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". Se a mulher, em gestação de um feto anencefálico, pode correr risco de vida, porque, segundo a literatura médica, cerca de cinqüenta por cento desses fetos têm morte intra-uterina, evidente que o direito à saúde da mulher deve prevalecer. Não só. Registram hospitais e clínicas médicas o profundo transtorno psicológico de que padece a mulher, quando aguarda o parto de um ser sub-humano, sem cérebro, com forma de gente, mas, sem a essência do humano.É evidente que a gestante, nessas circunstâncias, tem o direito de velar por sua saúde.

5.2 DIREITO À LIBERDADE E AUTONOMIA DA VONTADE

O principal argumento daqueles que são contra o aborto dos fetos anencéfalos é a proteção do direito à vida desde a concepção, direito este que, alegam, não pode ser sacrificado em benefício da proteção aos direitos da saúde e liberdade da mãe gestante.

Neste sentido, afirma Patrícia Freitas que, apesar das dores emocionais ocasionadas à gestante, a vida do feto anencéfalo deve ser protegido. Defende ainda a autora que a dor emocional e a dor psicológica devem ser suportadas pela gestante por ser inerente à condição de ser humano.

Contudo, entende-se que ainda que a gravidez acarrete dores emocionais e psicológicas para a gestante, o feto anencéfalo está vivo em seu ventre e, por conseguinte, seu direito à vida não pode ser violado. No caso em questão, em que se opõem o princípio de liberdade da mãe ao princípio fundamental da vida, o princípio da proporcionalidade e da ponderação nos leva a crer que o bebê anencéfalo se apresenta como a vida mais fragilizada a ser protegida pela Constituição Federal (…) (FREITAS, 2011, p. 67)

Assim, o risco psicológico não pode ser tido como justificativa para a realização do aborto, do mesmo modo não pode o ser o estado de sofrimento pelo qual passa a mãe perante um caso de malformação fetal. A dor emocional e sofrimento são condições próprias do ser humano (…). (FREITAS, 2011, p. 85)

Ainda que a ótica da dor materna e do companheiro sejam relevantes, esse sofrimento não pode suplantar a inviolabilidade do direito à vida resguardado na Constituição Federal brasileira. (FREITAS, 2011, p. 91).

Para a Igreja Católica, a vida deve ser protegida desde a concepção pelo simples fato de o feto pertencer à espécie humana. Trata-se de proteção ao valor intrínseco da vida. Neste sentido, citam-se algumas passagens da fala do Padre Luiz Antônio Bento, na Audiência da ADPF nº. 54, representando a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil:

Queremos, desta forma, apresentar as razões pelas quais defendemos a humanidade deste ser humano que está em gestação, ainda que esteja com malformação.

As pretensões de desqualificação da pessoa humana ferem a dignidade intrínseca e inviolável da pessoa. Só pelo fato de pertencer à espécie humana, esse indivíduo tem uma dignidade; e é essa dignidade que queremos reafirmar, que precisa ser tutelada, que precisa ser respeitada.

Uma vida atingida por limites psicofísicos - ou, como se diz, portadores de anomalia - é certamente limitada na sua liberdade exterior, porém em nada diminui a sua dignidade. O fato de uma deficiência, de uma anomalia, não diminui ou nega a dignidade de uma pessoa; portanto, o indivíduo humano vale pelo seu ser, não pelo seu modo de ser, muito menos pelo reconhecimento que pode vir de outros em ordem às qualidades físicas ou psíquicas, quer as possua ou não. Essa dignidade é intrínseca à pessoa.

Quanto ao sofrimento da gestante e da família, este sofrimento a todos sensibiliza. Não podemos ser indiferentes a essa dor e angústia. Não significa que nós somos insensíveis ao sofrimento da mãe, ao sofrimento do pai, ao sofrimento de toda a família, daqueles que convivem com essa realidade. Mas esse sofrimento não justifica nem autoriza o sacrifício da vida do filho que se carrega no ventre. Mas esse sofrimento, portanto, precisa ser acolhido por todos, porque, quando a Medicina não pode curar, ela ainda pode fazer muita coisa, pode aliviar o sofrimento, pode confortar, pode estar presente na vida desses pacientes. E, neste caso, são dois os pacientes: a mãe e o filho que precisam dos cuidados.

Ainda Jérôme Lejeune: se a natureza condena, não cabe à Medicina executar a sentença, mas, sim, transformar a pena. (BRASIL, 2008b, p 5-11).

Em primeiro lugar, a Igreja Católica equivoca-se ao comparar a situação do aborto de feto anencéfalo ao aborto eugênico, como se se tratasse de uma escolha sobre a vida ou a morte de um ser malformado. Contudo, não se trata de escolher abortar um ser com malformação, mas sim um ser que não terá condições de vida extra-uterina. As pessoas com outros de tipos de malformação podem viver em sociedade com suas limitações, já os fetos com anencefalia nem sequer tem condições de vida.

Em segundo, percebe-se que a Igreja Católica defende o Direito à vida pelo simples fato de esta possuir um valor intrínseco, ou seja, a vida humana é um bem sagrado, valioso em si mesmo. Assim, a vida deve ser protegida a qualquer custo, pelo simples fato de existir, independente de seu tempo, de sua qualidade ou de quaisquer outros fatores, porque é apenas Deus quem deve ter o domínio sobre a vida e a morte.

Partindo-se da premissa que a vida sagrada em si mesmo, as vidas de todas as pessoas devem ter igual valor, não podendo existir escalonamento entre elas, de forma que não se justificaria a autorização de abortamento quando a vida da gestante correr risco e nem ainda em caso de aborto.

Ocorre que considerar que a vida tem um valor sagrado, intrínseco,, igualmente relevante em qualquer caso, é um ponto de vista, apenas um, dentre tantos que igualmente merecem respeito.

Na verdade, mesmo as pessoas que consideram a vida como um bem supremo, não se opõem a algumas relativizações ao direito à vida, como por exemplo, o aborto para salvar a vida da gestante.

Para alguns doutrinadores, como a expectativa de vida de fetos com anencefalia é muito pequena, sendo poucos os que nascem com vida e, os que conseguem, vivem apenas poucos dias, não haveria vida a ser tutelada pela norma.

Como se vê, não existe um consenso mínimo a respeito da existência ou não de vida em um feto anencéfalo, de forma que não cabe ao Estado impor à gestante um sofrimento, tão-somente para fazê-la aceitar uma convicção filosófica ou religiosa de um terceiro qualquer. Caberá à própria gestante decidir se deseja aguardar o final de sua gravidez ou se deseja desde logo abortar a criança. Tal decisão deverá ficar sob a responsabilidade apenas da gestante e seu companheiro, não devendo o Estado tolerar ingerências externas.

Nesse sentido,

As duas questões tratadas no presente texto envolvem temas sensíveis, por colocarem o Direito na fronteira entre a ciência e a fé. Trata-se de um espaço onde se contrapõem visões de mundo diversas, capazes de produzir desacordos morais razoáveis. Quando isso ocorre, o papel do Direito é o de reconhecer a diversidade e resguardar o pluralismo, sem impor condutas compulsórias, violadoras da consciência de cada um. Em situações como essas, o respeito à dignidade da pessoa humana determina que se observe a autonomia privada do sujeito, suas escolhas e sua verdade. (BARROSO, 2012b, p. 37).

5.3 DIREITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E PROIBIÇÃO DA TORTURA

A dignidade da pessoa humana encontra-se erigida à condição de fundamento do Estado na Constituição de 1988, consoante art. 1.º, III:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Para alguns autores, em razão da importância de seu conteúdo, trata-se de princípio matriz de todo o ordenamento jurídico constitucional, a partir do qual as demais normas devem ser interpretadas. Neste sentido, ensina Piovesan (2009, p. 07):

O valor da dignidade humana — ineditamente elevado a princípio fundamental da Carta, nos termos do art. 1°, III — impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. Na ordem de 1988, esses valores passam a ser dotados de uma especial força expansiva, projetando-se por todo universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional.

Não há duvidas de que obrigar a gestante a carregar por nove meses um feto sem qualquer expectativa de sobrevida é violar a dignidade da sua condição de ser humano e submetê-la à tortura, tanto física, quanto psicológica.

Como já dito, além de existirem riscos de vida à gestante, pois há grande probabilidade de morte intra-uterina do feto, existem ainda os abalos psicológicos sofridos pela gestante, que conviverá todos os dias da gravidez com a angústia de dar à luz a uma criança sem vida.

Neste sentido, explicativas as palavras de Luis Roberto Barroso (2012b, p.28):

O princípio da dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio da humanidade. Uma das suas manifestações concretas se dá pela via dos chamados direitos da personalidade, que são direitos reconhecidos a todos os seres humanos e oponíveis aos demais indivíduos e ao Estado. Tais direitos se apresentam em dois grupos: (i) direitos à integridade física, englobando o direito à vida, o direito ao próprio corpo e o direito ao cadáver; e (ii) direitos à integridade moral e psicológica, rubrica na qual se inserem os direitos à honra, à liberdade, à vida privada, à intimidade, à imagem, dentre outros.

Pois bem: obrigar uma mulher a levar até o final a gestação de um feto anencefálico, sem viabilidade de vida extrauterina, viola as duas dimensões da dignidade referidas acima. Do ponto de vista da integridade física, a gestante será obrigada a passar cerca de seis meses – o diagnóstico é feito no terceiro mês – sofrendo as transformações de seu corpo, preparando-se para a chegada do filho que ela não vai ter. No tocante à integridade psicológica, é impossível exagerar o sofrimento de uma pessoa que dorme e acorda, todos os dias, por 180 (cento e oitenta) dias, com a certeza de que o parto, para ela, não será uma celebração da vida, mas um adiado ritual de morte. Ao final de tudo, não haverá um berço, mas um pequeno caixão. Em síntese: impor à mulher o prolongamento de um sofrimento inútil e indesejado viola sua dignidade.

Muito sensato também o posicionamento do Ministro Marco Aurélio de Melo (BRASIL, 2005, grifo nosso), ao proferir o seu voto na Questão de Ordem na ADPF nº. 54, in verbis:

Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a  possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal.   São nove meses de acompanhamento, minuto  a  minuto,  de  avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a- dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50%  dos  casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como  razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. Como  registrado  na  inicial,  a  gestante  convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é - e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto -  que  conflita  com  a dignidade  humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade. A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físico, mental e social. Daí cumprir o afastamento do quadro, aguardando-se o desfecho, o julgamento de fundo da própria argüição de descumprimento de preceito fundamental, no que idas e vindas do processo acabam por projetar no tempo esdrúxula situação.

Sobre a autora
Danielle de Paula Maciel dos Passos

Procuradora da Fazenda Nacional. Ex-analista judiciário do TJMA. Pós Graduada em Direito Processual pela UNAMA. Pós Graduada em Direito Tributário pela UNIDERP. Pós Graduanda em Direito Constitucional pela UNIDERP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSOS, Danielle Paula Maciel. Interrupção da gravidez de feto anencéfalo: a preponderância dos direitos da gestante. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3206, 11 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21486. Acesso em: 23 nov. 2024.

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