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Da intervenção federal espontânea na hipótese de desequlíbrio financeiro dos Estados e do Distrito Federal.

Comentários ao art. 34, V, a, da CF/88 no contexto do Direito Financeiro

Agenda 02/05/2012 às 14:47

Salvo motivo de força maior, quando houver desequilíbrio financeiro na gestão das contas públicas dos Estados ou do Distrito Federal, com suspensão do pagamento da dívida pública consolidada por mais de dois anos consecutivos, o Presidente da República poderá intervir diretamente na fazenda do ente.

Introdução

Em que pese a descentralização político-administrativa dos entes componentes do pacto federativo, a Constituição Federal de 1988 arrola hipóteses de admissibilidade excepcional da intervenção do ente central (União) nos demais entes federados (Estados-membros e Distrito Federal). Dentre essas hipóteses, encontramos a do inc. V, “a”, do art. 34, segundo a qual a União poderá intervir nos Estados ou no DF cuja Fazenda Pública suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior. A ratio desse mandamento interventivo excepcional é fazer frente à necessidade de reorganização das finanças do Estado-membro ou do DF, evitando colapso financeiro pelo endividamento fazendário exacerbado e calote generalizado da dívida pública.
Mas essa específica autorização interventiva que a Constituição dá só se pode compreender nos marcos do Direito Financeiro, que é o subsistema jurídico que se ocupa da disciplina da atividade financeira estatal alicerçada em três grandes núcleos: orçamento (público), receita (pública) e despesa (pública). Friso o termo “público”, haja vista os conceitos da atividade financeira serem usuais também no campo do direito privado.

É nesse prisma do Direito Financeiro que redigirei o presente artigo. Sua finalidade é esclarecer o significado jurídico do termo "dívida pública fundada", que o leitor encontra na Constituição de 1988 (art. 34, V, a). Ao final, tecerei breves considerações sobre o caráter "espontâneo" da medida interventiva na hipótese em comento, qual seja, intervenção federal para a defesa das finanças públicas.


O conceito de dívida pública fundada/consolidada: análise do cipoal normativo do Direito Financeiro sobre a matéria.

No plano doutrinal, a dívida pública pode ser classificada com fulcro em dois critérios: origem dos recursos e prazo de vencimento. Quanto ao primeiro critério, temos que a dívida pública pode ser interna (quando contraída dentro do país) ou externa (quando contraída no exterior). Quanto ao prazo de vencimento, a dívida pública pode ser flutuante (quando contraída por prazo não superior a doze meses) e fundada/consolidada (quando contraída por prazo superior a doze meses). Para fins de intervenção federal, interessa-me sobremodo esta última classificação (prazo de vencimento), que é a que se reporta ao texto constitucional do art. 34, V, a, da CF/88.
No plano dogmático jurídico-legal do Direito Financeiro, a conceituação de dívida pública (“valores que o Estado está a dever a credores”) deve ser buscada nos diplomas de regência da matéria. Dela o legislador se ocupou em pelo menos duas leis: Lei 4.320/64 (Lei do Direito Financeiro - LDF) e Lei Complementar 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal- LRF).
Segundo a LDF, a dívida pública fundada deve constar na Mensagem de proposta orçamentária que o Poder Executivo encaminhará ao Poder Legislativo nos prazos estabelecidos na Constituição (art. 22, I), devendo ser ainda escriturada com individuação e especificações que permitam verificar, a qualquer momento, a posição dos empréstimos, bem como os respectivos serviços de amortização e juros (art. 98, § único) – norma relacionada à contabilidade da dívida pública. Mas que é essa dívida para a lei? A resposta está a contrario sensu no art. 92, que estipula as parcelas integrantes da dívida flutuante.

Art. 92. A dívida flutuante compreende:

I - os restos a pagar, excluídos os serviços da dívida;

II - os serviços da dívida a pagar;

III - os depósitos;

IV - os débitos de tesouraria.

Parágrafo único. O registro dos restos a pagar far-se-á por exercício e por credor distinguindo-se as despesas processadas das não processadas.

Logo, tudo que não for parcela integrante da dívida flutuante considerar-se-á divida fundada ou consolidada.

Mas um conceito mais didático se encontra no Decreto 93.872/86 (Decreto de unificação dos recursos de caixa do Tesouro Nacional), o qual preceitua no seu art. 115, §§ 1º e 2º:

Art . 115. A dívida pública abrange a dívida flutuante e a dívida fundada ou consolidada.

§ 1º A dívida flutuante compreende os compromissos exigíveis, cujo pagamento independe de autorização orçamentária, assim entendidos:

a) os restos a pagar, excluídos os serviços da dívida;

b) os serviços da dívida;

c) os depósitos, inclusive consignações em folha;

d) as operações de crédito por antecipação de receita;

e) o papel-moeda ou moeda fiduciária.

§ 2º A dívida fundada ou consolidada compreende os compromissos de exigibilidade superior a 12 (doze) meses contraídos mediante emissão de títulos ou celebração de contratos para atender a desequilíbrio orçamentário, ou a financiamento de obras e serviços públicos, e que dependam de autorização legislativa para amortização ou resgate.

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A LRF, no seu art. 29, I, também trouxe conceituação do que se entende juridicamente por “dívida pública fundada” (expressão do texto constitucional) ou dívida pública consolidada (expressão preferida pelo legislador infraconstitucional). Vejamos:

Art. 29. Para os efeitos desta Lei Complementar, são adotadas as seguintes definições:

I - dívida pública consolidada ou fundada: montante total, apurado sem duplicidade, das obrigações financeiras do ente da Federação, assumidas em virtude de leis, contratos, convênios ou tratados e da realização de operações de crédito, para amortização em prazo superior a doze meses; [...]

De tudo o que expus e colacionei, já me parece ser possível concluir com o leitor que, sempre que o texto constitucional referir-se à “dívida pública fundada”, estará a pressupor aqueles compromissos obrigacionais contraídos por prazo superior a doze meses, isto é, obrigações de médio e longo prazo. Em contrapartida, as obrigações de curto prazo enquadrar-se-iam no conceito de dívida pública flutuante.

Ocorre que a própria LRF cuidou de excepcionar esse conceito, ampliando-o em duas hipóteses: uma específica para a União e outra aplicável a todos os entes federados. Assim é que a dívida relativa à emissão de títulos de responsabilidade do Banco Central do Brasil (dívida pública mobiliária) será incluída na dívida consolidada da União (art. 23, § 2º). Da mesma forma, as operações de crédito cujas receitas tenham constado do orçamento, mesmo não tendo prazo inferior a doze meses, também hão de integrar a dívida pública consolidada de todos os entes da Federação. É com base nesta última hipótese que se admitie em doutrina o reconhecimento de uma nova espécie de classificação da dívida pública: a consolidada de curto prazo.

Mas o legislador foi além e ampliou ainda mais o conceito de dívida consolidada ao determinar que “Os precatórios judiciais não pagos durante a execução do orçamento em que houverem sido incluídos integram a dívida consolidada, para fins de aplicação dos limites.” (LRF, art. 30, § 7º). Este último preceito da LC 101/00 deve, todavia, ser lido com cuidado: a intenção que cerca o artigo é permitir a inclusão, nos cálculos dos limites do endividamento público, dos precatórios judiciais inadimplidos pela Fazenda Pública. Isso ocorre porque a dívida pública deve submeter-se a limites. Não fosse assim e o Estado tornar-se-ia facilmente insolvente, haja vista o mau vezo dos administradores quanto à contratação de empréstimos para obras públicas “suntuosas” – o mais das vezes inúteis para grande parte da população. Esses limites do endividamento público serão fixados pelo Senado Federal mediante proposta do Presidente da República (CF, art. 52, VI). Serão ainda limites “globais”, isto é, limites gerais, aplicáveis ao montante da dívida pública consolidada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (LRF, art. 30, I, c/c art. 52, VI, da CF/88).

Tais limites globais foram previstos pelo Senado Federal na Resolução (com efeitos externos) nº 40 de 2001 – posteriormente alterada pela Resolução nº 5 de 2002. Mas referida resolução não apenas estipulou os limites do endividamento público, como também trouxe o conceito de “dívida pública consolidada”. Trata-se de conceito deveras útil o da resolução senatorial, porquanto reúna, em texto consolidado, todas as observações que fiz ao longo do artigo, visando a demonstrar a complexidade do cipoal normativo que informa o conceito jurídico-legal de “dívida pública fundada ou consolidada”. Colaciono o excerto:

Art. 1º Subordina-se às normas estabelecidas nesta Resolução a dívida pública consolidada e a dívida pública mobiliária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

§ 1º Considera-se, para os fins desta Resolução, as seguintes definições:

[...]

III - dívida pública consolidada: montante total, apurado sem duplicidade, das obrigações financeiras, inclusive as decorrentes de emissão de títulos, do Estado, do Distrito Federal ou do Município, assumidas em virtude de leis, contratos, convênios ou tratados e da realização de operações de crédito para amortização em prazo superior a 12 (doze) meses, dos precatórios judiciais emitidos a partir de 5 de maio de 2000 e não pagos durante a execução do orçamento em que houverem sido incluídos, e das operações de crédito, que, embora de prazo inferior a 12 (doze) meses, tenham constado como receitas no orçamento; [...]

Chamo a atenção do leitor para um ponto interessante. A Resolução nº 40/01 do Senado Federal traz também o conceito de “dívida pública consolidada líquida”. Reproduzo o inc. V do mesmo art. 1º:

V - dívida consolidada líquida: dívida pública consolidada deduzidas as disponibilidades de caixa, as aplicações financeiras e os demais haveres financeiros. [...]

Por fim, penso seja de interesse acrescentar que há diferença entre dívida consolidada e dívida flutuante também quanto à contabilidade pública orçamentária – aqui entendida como a capacidade de afetar ou não o orçamento público. Nesse sentido, é correto afirmar que a dívida pública consolidada reporta-se às obrigações (exigibilidades) contraídas que dependem de autorização legislativa (previsão no orçamento) para amortizações ou resgate. Em sentido contrário, a dívida flutuante representa o total de compromissos financeiros cuja amortização independe de autorização legislativa orçamentária. Com base nesse critério é que o leitor pode compreender o conceito de dívida pública consolidada de “curto prazo”, legalmente estabelecido pela LRF (art. 29, § 3º), para compreender obrigações cujo prazo de vencimento seja inferior a 12 meses, mas que tenham receitas previstas no orçamento. O que, a princípio, seria um contrassenso conceitual (dívida fundada ou consolidada, de ordinário, são aquelas cujo prazo de amortização é superior a 12 meses), justifica-se pelo critério classificatório da “autorização legislativa”, isto é, a previsão de receitas no orçamento. Além disso, esse critério inspirou a redação dos já citados §§ 1º e 2º do art. 115 do Decreto 93.872/86, os quais atrelam, respectivamente, de maneira insofismável, o conceito de dívida pública flutuante àquelas cujo pagamento independe de autorização orçamentária, ao passo que a dívida consolidade faz remissão às exigibilidades que dependem de autorização legislativa (orçamento) para seja feita amortização ou resgate.


A intervenção federal espontânea na hipótese do art. 34, V, a, da CF/88

Tratando agora da intervenção federal, convém recordar ao leitor que a doutrina constitucionalista classifica o ato interventivo, dividindo-o em duas modalidades:
a) intervenção espontânea: é a modalidade de intervenção em que o interventor age ex officio, independentemente de provocação;
b) intervenção provocada: é a modalidade de intervenção em que o interventor só decreta a medida se e quando provocado.
Como no Direito Constitucional Positivo brasileiro somente o Chefe do Executivo Federal tem competência para decretar e executar a intervenção (CF, art. 84, X), é possível dizer que intervenção espontânea é aquela por meio da qual o Presidente da República age de ofício, não necessitando ser provocado para efeito de expedir o decreto interventivo.
É nesse sentido de intervenção espontânea que se insere a hipótese objeto de meus comentários (CF, art. 34, V, a). Em conclusão: salvo motivo de força maior, sempre que houver desequilíbrio financeiro manifesto na gestão das contas públicas dos Estados ou do Distrito Federal, comprovado pela suspensão do pagamento da dívida pública consolidada por mais de dois anos consecutivos, o Presidente da República poderá intervir diretamente na Fazenda estadual ou distrital, a fim de reorganizar as finanças da unidade da Federação inadimplente. Mas aqui se impõem algumas observações de rigor:
a) discricionariedade do juízo presidencial interventivo: nas hipóteses de intervenção espontânea, o Presidente da República não está obrigado a expedir o decreto que formaliza o ato interventivo. Ele pode recusar-se em fazê-lo, sopesando critérios de conveniência e oportunidade da medida interventiva, pois a consubstanciação fática de hipótese constitucional que autoriza a intervenção da União no Estado ou no DF não o vincula.
b) procedimento de decretação do ato interventivo: caso o Presidente, ao final do seu juízo discricionário de convenicência e oportunidade, entenda pela necessidade de promover a intervenção da União no Estado ou no DF, deverá fazê-lo escudado em procedimento específico. Essa procedibilidade diz respeito à ouvida do Conselho da República (CF, art. 90, I) e do Conselho de Defesa Nacional (CF, art. 91, § 1º, II). Ambos, todavia, são meros órgãos de consulta, aos quais recorre o Presidente na condição de consulente constitucional. Com isso, eventual posicionamento contrário dos Conselhos quanto à intervenção federal não terá o condão de obstar o Chefe do Executivo de promovê-lo.
Recordo ainda ao leitor que as hipóteses constitucionais de intervenção espontânea do Presidente da República não se exaurem na defesa das finanças públicas (CF, art. 34, V). Haverá igualmente intervenção de tipo espontânea (ex officio) nas hipóteses de defesa da unidade nacional (CF, art. 34, I e II) e defesa da ordem pública (CF, art. 34, III). Em todos esses casos, vale tudo o que disse acima quanto ao juízo presidencial de conveniência e oportunidade do ato interventivo, bem como a necessidade de consulta aos Conselhos da República e da Defesa Nacional.


Conclusão

Essas foram, assim, algumas linhas doutrinárias com as quais tive o objetivo de esclarecer a hipótese específica da intervenção espontânea para salvaguardar o equilíbrio das finanças públicas estaduais ou distritais. Trata-se, como visto no início deste artigo, daquela constante do art. 34, V, a, da Constituição que, por fazer remissão a conceitos de direito financeiro (dívida fundada, especialmente) mereceu atenção pormenorizada de minha parte - sempre à luz da legislação de regência na matéria (Lei 4.320/64, LC 101/00, Decreto 93.872/86 e Resolução nº 40/01 do Senado Federal).

Sobre o autor
Rafael Theodor Teodoro

Graduado em Direito pela UFPA. Especialista em Direito Constitucional, Direito Tributário e Ciências Penais pela Universidade Uniderp/Anhanguera. Ex-Advogado. Ex-Analista Judiciário. Atualmente atua como Analista/Assessor de Promotor de Justiça, função que exerce após aprovação em concurso público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEODORO, Rafael Theodor. Da intervenção federal espontânea na hipótese de desequlíbrio financeiro dos Estados e do Distrito Federal.: Comentários ao art. 34, V, a, da CF/88 no contexto do Direito Financeiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3227, 2 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21659. Acesso em: 22 nov. 2024.

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