4. Aspectos inconstitucionais da atual redação do art. 16 da Lei nº 7.347/85
A par dos argumentos lançados acima, no sentido de demonstrar a total impertinência da alteração do art. 16 da Lei nº 7.347/85, mediante a Medida Provisória nº 1.570/97 posteriormente convertida na Lei nº 9.494/97, faz-se mister, ainda, analisar o conteúdo da norma atual à luz da Constituição da República de 1988, uma vez que esta constitui fundamento de validade jurídica para as demais normas do ordenamento jurídico, devendo aquelas que não se compatibilizam com ela serem extirpadas do manancial normativo pátrio seja em virtude do vício de inconstitucionalidade, seja em decorrência de sua não recepção pela nova ordem constitucional.
Nesse diapasão, a inconstitucionalidade de determinada norma pode ser aferida de dois modos, a saber, formal e/ou material. A primeira guarda relação com o procedimento de elaboração da norma, de sorte que uma norma somente é válida perante a ordem constitucional se observar as regras estabelecidas por esta ordem no momento de sua criação (devido processo legislativo). Já a segunda refere-se à substancialidade em si da norma jurídica, vale dizer, se determinada norma respeita ou colide com as normas constitucionais (substantive due process of law/razoabilidade).
Dito isso, cumpre em um primeiro momento proceder à análise da Medida Provisória introdutora da malfadada alteração legislativa, com vistas a verificar se determinada norma guarda compatibilidade com o texto constitucional quando do momento de sua edição.
De antemão, como se é de esperar, adiantamos que entendemos que não. Vejamos o porquê.
A Medida Provisória nº 1.570 foi editada no dia 21 agosto de 1997, o que significa há mais de 12 (doze) anos da publicação da Lei nº 7.347 de 24 de julho de 1985. Elevado interstício temporal revela nitidamente a inexistente urgência da matéria veiculada por tal Medida Provisória, de maneira que sua edição incorreu em grave vício formal de inconstitucionalidade, na medida em que violou um dos pressupostos objetivos do ato normativo[12], previamente estabelecido desde o texto original do art. 62 da Constituição da República.
Com efeito, excepcionalmente o Poder Judiciário, por força da regra da separação dos poderes (art. 2º da CRFB), pode exercer o controle de constitucionalidade dos requisitos constitucionais legitimadores da edição de medidas provisórias, como forma de verificar a existência da urgência e relevância impulsionadoras do ato de edição por parte do Chefe do Executivo Federal, quando tal ato fosse praticado com desvio de finalidade ou abuso de poder de legislar.[13]
Outrossim, acaso a Medida Provisória em tela fosse editada sob a égide da Emenda Constitucional nº 32/01, estar-se-ia diante de outra inconstitucionalidade nomodinâmica, uma vez que referida Emenda alterou o art. 62 da Constituição incluindo-lhe o §1º que veda expressamente em seu inciso I, alínea “b”, a edição de medida provisória que verse sobre direito processual civil.
Feitas tais considerações no que diz respeito à inconstitucionalidade formal da Medida Provisória que deu origem à atual redação do art. 16 da Lei nº 7.347/85, passa-se à análise da inconstitucionalidade material da aludida norma, mesmo após sua conversão na Lei nº 9.494/97.
Pois bem, como é cediço o princípio da razoabilidade representa hoje em nossa hermenêutica constitucional importantíssimo papel balizador da compatibilidade ou não de determinados atos normativos em face da Constituição da República, fato esse que possibilita a análise, sob o aspecto do razoável e proporcional, dos atos genéricos emanados do Estado.
Nessa esteira, o dispositivo em questão impõe exigência deveras desarrazoada para o exercício da tutela coletiva, porquanto se levado ao pé da letra e isoladamente haverá a necessidade do ajuizamento de “tantas ações civis públicas quantas sejam as unidades territoriais em que se divida a respectiva Justiça, mesmo que sejam demandas iguais, envolvendo sujeitos em igualdade de condições com a possibilidade teórica de decisões diferentes e até conflitantes em cada uma delas”.[14]
Em razão disso, sem olvidar todos os argumentos ventilados no capítulo antecedente, o texto da norma estabelecido no art. 16 da Lei nº 7.347/85, em última análise representa afronta direta aos princípios da segurança jurídica (art. 5º, caput, da CRFB), isonomia (art. 5º, caput, da CRFB) e direito de ação/inafastabilidade do judiciário (art. 5º, XXXV, da CRFB), uma vez que proporciona, respectivamente, insegurança diante da potencial divergência de entendimentos acerca de determinado assunto jurídico, o que culmina em tratamentos distintos a pessoas que se encontram nas mesmas situações jurídicas, tolhendo-se, pois, o amplo acesso à Justiça daqueles que poderiam se beneficiar de uma decisão que apreciou um direito que dada sua indivisibilidade também lhe cabia.
Destarte, dúvidas não há acerca da inconstitucionalidade nomoestática do atual texto do art. 16 da Lei nº 7.347/85.
5. Conclusão
Como visto alhures, a coisa julgada representa a manifestação do estado democrático de direito proveniente das decisões do Poder Judiciário em um processo como decorrência inevitável do exercício do direito de ação, proporcionando por seu intermédio a segurança jurídica necessária à pacificação social.
Em que pese tamanha importância, revestida inclusive pela garantia da intangibilidade de cláusula pétrea, a coisa julgada apresenta limitações impostas pelo próprio legislador ordinário. Dentre tais limitações, encontra-se as objetivas e as subjetivas, no que se refere ao objeto revestido e às pessoas atingidas por seus efeitos.
Via de regra, os efeitos da coisa julgada alcançam tão somente às partes que compuseram a lide, de maneira que constitui exceção, por sua própria natureza, a coisa julgada produzida em ações coletivas, na medida em que seus efeitos transcendem as partes processuais, porquanto o direito tutelado pertence a uma coletividade e não às partes legitimadas para o exercício das ações coletivas.
Em assim sendo, revelou-se totalmente descabida a alteração feita por meio da Medida Provisória nº 1.570/97, convertida na Lei nº 9.494/97, que fixou como limite territorial aos efeitos da coisa julgada proferida em ações civis públicas o território do órgão prolator da decisão.
E tamanha incongruência não se limita à atecnia legislativa em relação ao microssistema processual coletivo, uma vez que guarda ranço de inconstitucionalidade tanto no aspecto formal quanto material, de modo que tal regra deve ser totalmente afastada pelo Poder Judiciário quando do pronunciamento de decisões em ações civis públicas, aplicando-se, pois, a regra do art. 103 do CDC, a fim de assegurar o verdadeiro propósito ontológico das demandas coletivas, quais sejam, o de “molecularizar” a tutela dos direitos e interesses coletivos, evitando-se a pulverização de ações individuais sobre um mesmo tema, com a possibilidade de decisões distintas e até mesmo conflitantes entre si.
Destarte, é forçoso concluir que o esforço do Governo Federal à época, ratificado pelo Congresso Nacional, foi inócuo, eis que olvidou dos mais basilares elementos da dogmática processualística coletiva, bem como de regras e princípios constitucionais.
6. Referências
DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil, vol. 2, 4ª Ed. Salvador: JusPodivm, 2009;
LENZA, Pedro. Curso de Direito Constitucional Esquematizado. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009
NERY JR., Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal, 8ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004;
NETO, Xisto Tiago de Medeiros. Dano Moral Coletivo, 1ª Ed. Editora LTr;
SARAIVA, Renato. Curso de Direito Processual do Trabalho, 6ª Ed.. São Paulo: Método, 2009.
Notas
[1] NERY JR., Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal, 8ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 37-39.
[2] Idem, p. 39.
[3] Idem, p. 39-40.
[4] DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil, vol. 2, 4ª Ed. Salvador: JusPodivm, 2009, p. 408.
[5] Idem, p. 417-422.
[6] Idem, p. 422.
[7] SARAIVA, Renato. Curso de Direito Processual do Trabalho, 6ª Ed.. São Paulo: Método, 2009, p. 849.
[8] Idem, p. 850.
[9] Dano Moral Coletivo, 1ª Ed. Editora LTr, p. 247-248.
[10] DIDIER Jr., Fredie e ZANETI Jr. Hermes. Curso de Direito Processual Civil, Vol. 4, 4ª Ed., Salvador: Juspodvm, 2009, p. 145.
[11] Idem, p. 143.
[12] LENZA, Pedro. Curso de Direito Constitucional Esquematizado. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 163.
[13] Idem, p. 193-194 e p. 424.
[14] DIDIER Jr., Fredie e ZANETI Jr. Hermes. Curso de Direito Processual Civil, Vol. 4, 4ª Ed., Salvador: Juspodvm, 2009, p. 142.