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Brasil: a laicidade e a liberdade religiosa desde a Constituição da República Federativa de 1988

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Agenda 14/07/2012 às 09:39

5. Limites do direito à liberdade religiosa

Conforme leciona Edison Miguel da Silva Júnior, “no Estado Democrático de Direito brasileiro, não existe nenhum direito absoluto”94.

Para ele, a tarefa do profissional do direito é justamente a de “construir a solução justa para cada caso concreto e não, simplesmente, aplicar a literalidade do texto legal para todos os casos que possam surgir em uma sociedade dinâmica, cada vez mais complexa e sofisticada”95.

Diante da inexistência de direitos absolutos, não há dúvidas de que o direito à liberdade religiosa também encontra limites, podendo não prevalecer sobre outros direitos em algumas situações.

Abaixo analisaremos algumas hipóteses em que poderá haver conflito de direitos, cuja solução caberá ao magistrado decidir no caso concreto posto a seu exame.

5.1. Direito à vida x não-recepção de sangue por testemunhas de Jeová

Por crenças religiosas, os adeptos da seita das Testemunhas de Jeová não se submetem a transfusão de sangue96:

Transfusão de Sangue – o livreto Sangue, Medicina e a Lei de Deus é uma apologia da posição que assumem contra a transfusão. Citam textos como: Gênesis 9:3,4; Levítico 3:17; Deuteronômio 12:23-35; Salmo 14:32,33; Atos 15:28,29. Afirmam que sendo o sangue a alma, não podemos passá-la a outra pessoa, pois desobedecemos ao mandamento de amar a Deus com toda a alma.

Na prática, a não aceitação ao tratamento hemoterápico pode resultar na morte do paciente, pondo em confronto dois princípios garantidos constitucionalmente: o direito à liberdade religiosa e o direito à vida.

Sobre isso, Fábio Dantas de Oliveira professa que97:

Em caso de situação emergente o médico pode solucionar de acordo com sua ética ou a solução pode ser dada pela justiça. Entretanto, pode o médico conseguir uma liminar que o autorize a realizar os tratamentos médicos devidos. De acordo com o artigo 2º do Conselho Federal de Medicina, independentemente do consentimento do enfermo ou dos seus representantes legais, o médico pode praticar a transfusão sangüínea, em caso grave onde a vida do paciente está em risco.

Em se tratando de paciente maior e capaz, Thiago Massao Cortizo Teraoka, por sua vez, aduz98:

Na parte que trata dos direitos da personalidade, o artigo 15 do Código Civil determina que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.

Em uma interpretação simplista e contrario sensu, poderia se admitir que todos podem ser submetidos a tratamento de saúde, desde que não houvesse risco de vida no tratamento. Ou seja, por exemplo, todos nós poderíamos ser compulsoriamente submetidos a tratamento estético perante um dermatologista, desde que o tratamento não trouxesse risco de vida.

Porém, interpretação que consagre a compulsoriedade de tratamento médico, seja qual for, não parece consentânea com os princípios da liberdade e da dignidade da pessoa humana.

Assim, a melhor interpretação da legislação infraconstitucional deve conduzir ao sentido de que todos podem se opor ao tratamento médico, ainda que esteja em risco de vida. Essa interpretação, além de mais consentânea com o restante do ordenamento jurídico, não afronta a literalidade do dispositivo.

Diante disso, concluímos que a recusa ao tratamento médico por pessoa maior e capaz é absolutamente legítima, desde que a recusa seja expressa e livre. Não há motivos para se desconsiderar a vontade do próprio paciente, realizada de maneira expressa.

O principal argumento contrário diz respeito à indisponibilidade do direito a vida. Porém, no caso, a liberdade de crença, o direito à privacidade e o direito de autodeterminação do paciente devem prevalecer. Até porque a recusa a tratamento médico não é vedada por Lei, conforme a correta interpretação do artigo 15 do Código Civil.

No caso de manifestação prévia da vontade, por pessoa maior e capaz, a solução a ser adotada é a acima referida. A recusa permanece sendo válida. Por manifestação prévia, consideramos aquela em que a pessoa recusa-se a determinado procedimento médico, ainda antes de iniciado o tratamento. A manifestação prévia é válida, ainda que no momento da necessidade do tratamento médico, o paciente esteja inconsciente.

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Quando, todavia, o paciente é juridicamente incapaz, é necessário analisarmos a possibilidade de recusa de tratamento médico pelo representante legal.

Thiago Massao Cortizo Teraoka explica que, “nessa hipótese, não há manifestação expressa de vontade. Há manifestação de vontade por representação-imputação. A vontade do representante é imputada juridicamente ao representado, pois este não pode manifestar sua vontade”99.

O mesmo autor aponta a solução que entende mais adequada a essa hipótese100:

Assim, a recusa do representante legal não pode ser considerada válida, para a finalidade de se impedir o tratamento médico convencional. A liberdade de crença, para prevalecer no caso, deve ser absolutamente inequívoca e livre. A crença, ainda que possa ser manifestada publicamente, é interna e personalíssima à própria pessoa; a decisão de não se submeter a tratamento médico, que pode salvar-lhe a vida terrena em nome de uma vida divina também. Mesmo se houver comprovação de que é adepto de determinada religião (por exemplo: Testemunhas de Jeová) não significa que o paciente debilitado aprove todos os seus dogmas e mandamentos. Um católico, ainda que fervoroso praticante, pode se utilizar de métodos anticoncepcionais. Da mesma forma, um adepto das Testemunhas de Jeová pode não estar disposto a correr risco de vida por sua religião.

Assim, para a recusa a tratamento médico tradicional, a manifestação por representação ou presumida não pode ser aceita.

Em relação aos menores, é importante a análise do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) aprovado pela Lei nº 8.069, de 13/07/1990.

(...)

A crença religiosa do menor deve ser respeitada, ainda que em confronto com a vontade dos pais. (...)

Assim, entendemos que a manifestação de vontade inequívoca e livre da criança e do adolescente deve ser considerada, no caso da recusa de tratamento médico convencional. E, frise-se, ainda que contra a vontade dos pais.

(...)

Porém, se não houver manifestação inequívoca de vontade do menor, deve-se optar pelo tratamento convencional. Entendemos que a manifestação do menor deve ser considerada, especialmente se se tratar de adolescente, conforme critério legal presente no ECA.

Celso Ribeiro Bastos, contudo, adota entendimento diverso quanto aos menores101:

Sabe-se que o pátrio poder inclui a tomada de decisões que envolvem toda a vida dos filhos menores sob sua tutela. Não se pode negar, pois, a tomada de decisões pelos pais, desde que os filhos sejam atingidos pela incapacidade jurídica de decidirem por si mesmos. A decisão sobre não submeter-se a determinado tratamento médico, como visto, é perfeitamente legítima e, assim, inclui-se, como qualquer outra, no âmbito da decisão dos pais quando tratar-se de filho menor de idade.

Por fim, cabe a análise da responsabilidade do médico ou do hospital que submete compulsoriamente a tratamento médico o paciente que o recusou sob a alegação de liberdade de crença.

Thiago Massao Cortizo Teraoka entende que caberá indenização por danos morais, por lesão a direito da personalidade, consistente no direito à disposição do próprio corpo e da sua liberdade de crença. Entretanto, para ele, “é cabível a redução equitativa da indenização pelo juiz, nos termos do artigo 944, parágrafo único, do Código Civil, dada a boa-fé presumida dos agentes”102.

5.2. Proteção ambiental x sacrifício de animais nos rituais religiosos

Leciona Thiago Massao Cortizo Teraoka que “o sacrifício de animais é amplamente difundido entre as religiões”. Como exemplo, menciona o hinduísmo, o islamismo e as religiões afro-brasileiras (candomblé, xangô, batuque e umbanda)103.

O artigo 32 da Lei 9.605/98 estabelece104:

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.

Surge, então, a seguinte indagação: sacrificar animais em rituais religiosos configura ou não crime ambiental?

Thiago Massao Cortizo Teraoka nos traz alguns delineamentos sobre o assunto105:

Em interessante artigo Daniel Braga Lourenço sustenta que “a prática de rituais religiosos, consistente na matança de animais não humanos, é condenável, filosófica, ética e juridicamente, constituindo tais condutas atos ilícitos que acarretam responsabilidade civil e criminal, devendo ser enquadradas nos tipos penais pertinentes, especialmente no previsto no art. 32 da Lei 9.605/98”.

Jayme Weingartner Neto, por outro lado, entende que a Lei nº 9.605/1998 não se aplica ao sacrifício ritual de animais. “Não faz parte do programa das normas ambientais vedá-lo, nem se encontra no âmbito normativo a proibição das situações decorrentes do exercício religioso”. Assim, Jayme Weingatner Neto não se manifesta conclusivamente a respeito; limita-se a afirmar que a lei ambiental não se aplica, pois não trata de sacrifício de animais.

Não podemos concordar com o argumento de Jayme Weingartner Neto. O artigo 121 do Código Penal que trata do crime de homicídio também não é específico para a proibição de sacrifícios humanos. E nem por isso alguém argumentaria que o sacrifício humano é possível em nossa ordem constitucional, em razão da liberdade de culto.

Pela ausência de exceção na regra ambiental, entendemos que o sacrifício de animais em cultos religiosos enquadra-se na descrição legal da conduta prevista na legislação. Porém, em razão da proteção constitucional à liberdade de culto, a conduta passa a ser atípica.

Teraoka conclui a discussão expondo sua opinião, da qual partilhamos, no sentido de que “impedir totalmente o sacrifício de animais significaria impedir a própria prática de diversas religiões. A legislação penal referente ao direito ambiental não pode ser levada a interpretação de impedir a prática religiosa”106.

5.3. Curandeirismo x ministração de curas nos rituais religiosos

O artigo 284 do Código Penal prevê o crime de curandeirismo107:

Curandeirismo

Art. 284 - Exercer o curandeirismo:

I - prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância;

II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio;

III - fazendo diagnósticos:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos.

Parágrafo único - Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa.

O bem jurídico protegido pela norma penal é a incolumidade pública, particularmente a saúde pública108.

Segundo Damásio Evangelista de Jesus, “o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa que não possua conhecimentos médicos”. Todavia, “não são sujeitos ativos do delito as pessoas que se dedicam à cura por meio de métodos que fazem parte do ritual da religião que abraçaram. No espiritismo, umbanda etc., os ‘passes’ fazem parte do ritual da religião, não integrando a figura típica”. Para o mencionado autor, “as palavras e gestos, quando atos de fé, não caracterizam o delito”109.

De acordo com Cezar Roberto Bitencourt, “sujeito passivo é a coletividade, bem como qualquer pessoa que seja tratada pelo agente”110.

O entendimento de que são atípicos os atos das pessoas que se dedicam à cura por meio de métodos que fazem parte do ritual da religião que professam é um evidente desdobramento do direito à liberdade religiosa.

Os pastores evangélicos, por exemplo, ministram a cura aos fiéis em nome do Senhor Jesus Cristo. Isso, além de ter respaldo bíblico111, jamais poderá ser considerado curandeirismo pelo ordenamento jurídico brasileiro, sob pena de ofensa ao direito à liberdade religiosa.

Alexandre de Moraes preconiza que “(...) a questão das pregações e curas religiosas deve ser analisada de modo que não obstaculize a liberdade religiosa garantida constitucionalmente, nem tampouco acoberte práticas ilícitas”112.

5.4. Projetos de Lei da Câmara dos Deputados 6.418/2005 e 122/2006

Thiago Massao Cortizo Teraoka nos relata que “alguns líderes cristãos evangélicos se insurgiram contra dois projetos de lei (PL nºs 122/06 e 6.418/2005), que criminalizam condutas homofóbicas”, com a preocupação de que haveria restrições à pregação113.

O autor também explica que, atualmente, a discriminação por opção sexual constitui ato ilícito, reprimido no âmbito civil, não havendo disposição específica a respeito do assunto no âmbito penal114.

Entretanto, Teraoka entende importante a tipificação penal da discriminação por orientação sexual115, mas sem que isso implique restrição ao exercício do direito à liberdade religiosa de se pregar contra o homossexualismo.

Segundo ele116:

Porém, seja qual for a tipificação da conduta, a legislação não poderá impedir a divulgação ou propagação de idéias religiosas. Os líderes religiosos, suas homilias e livros poderão continuar a desestimular a prática homossexual. Porém, já não podem e não poderão humilhar ou estimular atos violentos ou repulsa aos homossexuais.

Outra interpretação seria desarrazoada. A total criminalização de opinião desfavorável ao homossexualismo impediria a publicação de muitos livros sagrados, assim considerados pelas religiões. Na própria Bíblia, no Novo e no Antigo Testamento (este também aplicável aos judeus), há trechos que consideram pecado o homossexualismo. No Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, também há prescrição semelhante.

Não é preciso nem dizer que a proibição, legislativa ou judicial, da divulgação e publicação da Bíblia e do Alcorão seria afrontosa à liberdade religiosa e à Constituição Federal. Da mesma forma, pregações ou comentários baseados em tais livros não podem ser considerados ilícito penal ou civil.

Teraoka finaliza sinalizando que deve haver limites até mesmo à liberdade religiosa, pois “a humilhação de um homossexual em particular e/ou mesmo o estímulo à intolerância e à violência não podem ser admitidos em nosso ordenamento jurídico”117.

Alexandre de Moraes aduz que “obviamente, assim como as demais liberdades públicas, também a liberdade religiosa não atinge grau absoluto, não sendo, pois, permitidos a qualquer religião ou culto atos atentatórios à lei, sob pena de responsabilização civil e criminal”118.

Sobre a autora
Andrea Russar Rachel

Advogada. Professora plantonista da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (LFG). Pós-graduada em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Grandes Transformações do Processo pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Pós-graduanda em Direito Público pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Licenciada em Filosofia pela Universidade São Judas Tadeu. Estudante de Teologia no Instituto Teológico Quadrangular.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RACHEL, Andrea Russar. Brasil: a laicidade e a liberdade religiosa desde a Constituição da República Federativa de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3300, 14 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22219. Acesso em: 21 nov. 2024.

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