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A legitimidade da Defensoria Pública para o mandado de segurança coletivo

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Agenda 31/07/2012 às 10:44

4. A ASSISTÊNCIA JURÍDICA INTEGRAL E O NECESSITADO

4.1. A Assistência Jurídica Integral, a Assistência Judiciária e a Gratuidade de Justiça

A sociedade civil sempre aceitou o fato de muitas pessoas necessitadas não recorrem ao Poder Judiciário, pois, por se tratar de algo dispendioso, nem todos teriam condições econômico-financeiras para contratar um advogado e suportar o custo de uma demanda.[22] Trata-se, em verdade, de uma falácia, pois justificaria uma omissão estatal com base na ausência de suporte financeiro, como se o Direito à Justiça tivesse de depender exclusivamente das possibilidades econômicas de cada um.

À evidência, é dever do Estado garantir a todos o Direito à Justiça. Trata-se de um direito fundamental que exsurge da leitura do art. 5º da Constituição Federal de 1988, notadamente do caput (liberdade) e incisos XXXV, LIII, LIV, LV, LVII, LXXIV, LXXVIII, dentre outros. Da leitura desse aparato constitucional, tem-se, ademais, que o acesso à justiça será pleno se o Estado garantir a paridade de armas entre os contendores; logo, a busca da realização de um direito constitucionalmente garantido perpassa pelo equilíbrio da relação jurídica processual e pela representação adequada da parte em lide.

Consoante adverte Araken de Assis:

É natural que, evitando tornar a garantia judiciária inútil à maioria da população, e ao menos para os desprovidos de fortuna e recurso, a ordem jurídica estabeleça mecanismos de apoio e socorro aos menos favorecidos. Antes de colocar os necessitados em situação material de igualdade, no processo, urge fornecer-lhes meios mínimos para ingressar na Justiça, sem embargo da ulterior necessidade de recurso e armas técnicas, promovendo o equilíbrio concreto.[23]

É nesse sentido que a carta constitucional de 1988 assegura a assistência jurídica integral, conforme previsto no art.5º., LXXIV, verbis:

o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.

A norma constitucional traz ínsito o resultado de um ciclo tendente a reverter a visão estritamente econômica para o processo, uma vez que resume a evolução dos institutos da assistência judiciária e da gratuidade de justiça como mecanismos de defesa e orientação em prol do cidadão necessitado.

Mais ampla que a assistência judiciária, que envolve a prestação de serviços de assessoria jurídica e defesa judicial, e mais abrangente que a gratuidade de justiça, a qual isenta o beneficiário do pagamento de custas e taxas judiciárias, a Assistência Jurídica Integral envolve uma gama maior de garantias a ser prestada pelo Estado, inclusive extrajudiciárias, cujo mote está em assegurar o equilíbrio das relações jurídicas, a paridade de armas, garantindo o pleno acesso do hipossuficiente ao Judiciário e o exercício de seus direitos constitucionais. A relação entre essas dimensões de assistência (assistência jurídica integral, assistência judiciária, justiça gratuita) está diretamente relacionada ao dever de o Estado democratizar o acesso à justiça e dar tratamento isonômico aos cidadãos.

Consoante adverte Barbosa Moreira:

A grande novidade trazida pela Carta de 1988 consiste em que, para ambas as ordens de providências, o campo de atuação já não se delimita em função do atributo “judiciário”, mas passa a compreender tudo que seja “jurídico”. A mudança do adjetivo qualificador da “assistência”, reforçada pelo acréscimo do “integral”, importa notável ampliação do universo que se quer cobrir. Os necessitados fazem jus agora à dispensa de pagamentos e à prestação de serviços não apenas na esfera judicial, mas em todo o campo dos atos jurídicos.[24]

Para tanto, o Estado, inicialmente, abriu mão de parcela de recursos financeiros  provenientes de custas de taxas judiciárias. Instituiu o benefício da justiça gratuita, isentando de pagamento o cidadão que não detenha recursos para fazer frente a um processo judicial. Posteriormente, criou núcleos de Assistência Judiciária e a Defensoria Pública para prestarem serviços jurídicos gratuitos, concedendo, assim, a assistência judiciária gratuita em favor daquele que não tivesse condições de custear o pagamento dos encargos com advogado.

Logo, o Estado deferiu ao cidadão vulnerável mecanismos para garantir o acesso judiciário integral, amparado em institutos de origem comuns, assimétricos[25], mas complementares, tendentes a remover ou atenuar os obstáculos habitualmente encontrados pelas pessoas vulneráveis para garantir o Direito ao Acesso à Justiça.

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4.2. O Necessitado

 A prestação dessa assistência integral restou inicialmente cunhada, segundo art. 113, n. 32 da Constituição Federal de 1934 e art. 141, §35, da Constituição Federal de 1946, em prol dos cidadãos ditos necessitados, figura presumidamente desprovida de armas para o embate equilibrado no processo.

Mas os textos constitucionais de então[26] não definiram o que seria necessitado. Somente com o advento do art. 68 do Código de Processo Civil de 1939 pode-se aferir, na letra da lei, o titular do benefício da assistência jurídica, qual seja, a parte que não estiver em condições de pagar as custas do processo, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.

A conceituação de necessitado, no âmbito de um estatuto processual, dirige a assistência jurídica para dentro do processo, na mesma medida em que delimita a extensão do benefício e da assistência, nada referindo quanto às necessidades extrajudiciárias relacionadas à defesa de direitos.

Disso pouco destoou posteriormente a Lei 1.060/50, haja vista que, no art. 2º, entendeu tratar-se de necessitado, para o benefício da justiça gratuita, os nacionais ou estrangeiros residentes no país, cuja situação econômica não lhes permitiria pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.

O acréscimo, por seu turno, deu-se quanto à referência à isenção de pagamento dos honorários advocatícios, fortalecendo a dispensabilidade de encargos para o processo, além de regulamentar a assistência em uma legislação própria. Assim, não surpreende a inexistência de alterações substanciais nos textos ordinários e constitucionais que se sucederam, mantendo a titularidade do benefício em favor do cidadão objeto da Lei 1.060/50, que ainda vige.

Portanto, a redação dada pelo inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal de 1988 inova quando acolhe a evolução das dimensões de assistência jurídica e compromete o Estado com a assistência jurídica integral e gratuita em favor do cidadão que comprovar insuficiência de recursos, qual seja, o necessitado, segundo o texto recepcionado da Lei 1.060/50[27].

Por outro lado, a Constituição Cidadã deu nova roupagem ao titular dessa assistência, abandonando a expressão necessitado, até então referida nas Constituições Federais anteriores, para adotar um fator de referência (insuficiência de recursos) para qualificar a pessoa hipossuficiente objeto da assistência jurídica integral, sem se descurar, porém, para a definição acolhida pela Lei 1.060/50.

Dúvidas, por outro lado, cingem-se à necessidade de demonstração documental  ou não da falta de recursos para o fim de enquadrar-se como sujeito necessitado e titular da assistência judiciária, situação aliás responsável por deturpar a titularidade do benefício, até então focada, pelos termos da lei, em favor do cidadão hipossuficiente para o processo, e não apenas à pessoa economicamente pobre ou miserável.[28]

Esse viés, ademais, não subverte a leitura do artigo 2.º, da Lei n.° 1.060/50, cujo mote sempre esteve dirigido em prol do necessitado para o processo e não necessariamente para o assistido carente e humilde.

Nada obstante, a mera indicação da carência de recursos para o processo ou insuficiência financeira sempre foi a regra; demonstrar documentalmente a necessidade, a exceção.

Sob o auspício do Código de Processo Civil de 1939, o candidato ao benefício da Justiça Gratuita deveria mencionar, na petição, o rendimento ou vencimentos que percebia e os seus encargos pessoais e de família (art. 72), sendo punida a declaração falsa. De outro giro, caso o pedido de assistência fosse formulado no curso da lide, suspendia-se o feito, podendo o juiz, à vista das circunstâncias, conceder, de plano, a isenção, oportunidade em que a petição era autuada em apartado, apensando-se os respectivos autos aos da causa principal, instaurando-se um incidente (art. 73). Neste último caso, a solicitação seria apresentada ao juiz competente para a causa, com o atestado de pobreza expedido, independentemente de selos ou emolumentos, pelo serviço de assistência social, onde houvesse, ou pela autoridade policial do distrito ou circunscrição em que residisse o solicitante (art. 74).

Nesse mesmo sentido laborou a redação original do art. 4º da Lei 1.060/50, até ulterior modificação pela Lei 7.510/1986, a qual afastou a necessidade de indicação dos rendimentos do requerente, autorizando a simples afirmação, na própria petição inicial, de que a parte não estaria em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família. Como alhures, a impugnação do direito à assistência judiciária é dada em autos apartados (§2º, com redação dada pela Lei nº 7.510/1986), valendo como prova da necessidade a apresentação da carteira de trabalho e previdência social (§ 3º, incluído pela Lei nº 6.654, de 1979).

Ademais, a lógica da desnecessidade da demonstração documental da hipossuficiência para o processo, pelos termos da Lei 1.060/50, decorre do próprio Direito à Justiça. Como mencionado anteriormente, a garantia de dirigir-se ao Poder Judiciário de forma plena não está condicionada à capacidade econômica do cidadão, tampouco decorre de suas posses, pois é dever do Estado assegurar a todos o livre Acesso à Justiça.

Dessa feita, a assistência que dimana da Lei 1.060/50 visa a assegurar ao indivíduo uma prerrogativa que lhe é inerente pelo fato de ser cidadão. Ocorre que a leitura desmedida do texto de 1950 pode levar a entender que, de regra, o acesso à justiça é oneroso, quando, em verdade, aquele que se julgar sem recursos para o exercício desse direito deverá solicitar ao Estado a dispensa de encargos para poder acessar à justiça. O mesmo diga-se quanto à necessidade de prover o cidadão de armas técnicas para o processo, o que se dá hoje através da Defensoria Pública, evitando-se desequilíbrios que a insuficiência de recursos poderia repercutir na resolução da pretensão jurídica (judicial ou extrajudicial).

Veja-se que o Estado assumiu o dever de prestar a jurisdição e, com isso, incorporou o ônus de atender o seu cidadão, de modo que aqueles que dispõem de recursos para sustentar os encargos do processo e custear advogado, o farão como forma de justiça social e compensação histórica. Nesse sentido refere Rogério Tucci:

(...) ideal seria a plena gratuidade das atividades públicas, pois o pagamento por tais serviços, na verdade, já representa um duplo encargo, haja vista o adimplemento obrigatório dos tributos. No entanto, como esse estágio ainda se mostra longe de ser atingido, outra alternativa não resta senão consolidar a citada isenção para aqueles que não dispõem de suficientes recursos e que se sintam lesados em seus direitos.[29]

Disso decorre que a mera afirmação presume o necessitado, garante a assistência jurídica integral e gratuita (art. 5º, LXXIV) e o acesso à justiça.

Não obstante, essa questão (desnecessidade de demonstração da necessidade) ainda demanda embates no cenário jurídico, haja vista existirem entendimentos jurisprudenciais e doutrinários que defendem a necessidade da comprovação documental da necessidade, muito embora partam de pressuposto falso como visto alhures.

Equivocam-se, ainda, aqueles que preferem o deferimento de assistência jurídica integral, tão somente, em prol da pessoa pobre[30] ou miserável, pois, além de pronunciar menos do que diz a legislação específica, corrompe uma garantia constitucional que visa salvaguardar os cidadãos que encontram obstáculos para prover as despesas de processos relacionados à defesa de seus direitos.

Ademais, consoante adverte Barbosa Moreira:

Nada faz crer que o legislador constituinte, ao elaborar um diploma profundamente marcado pela preocupação com o social, haja querido dar marcha-a-ré em processo evolutivo como o de que se cuida. De qualquer maneira, a supor-se que a lei houvesse concedido um plus aos necessitados, nem por isso se teria de concluir por sua incompatibilidade com a Constituição, que não estaria sendo contrariada, como seria, por exemplo, se a lei negasse a assistência, em alguns casos, apesar da comprovação.[31]

É nesse contexto que se insere o Estado, que se obriga, através da atuação da Defensoria Pública, a prestar a assistência jurídica integral e gratuita em favor do cidadão, cuja insuficiência de recursos não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.

Assim, o verdadeiro alcance da expressão assistência jurídica integral e gratuita, deferida pela Constituição Federal, dá ao cidadão mais que o benefício de gratuidade previsto na Lei 1.060/50.[32]

Faz-se mister reverter a crença de que a Assistência Jurídica é uma caridade oficial, um favor público ou uma condescendência do Estado, já que o direito à igualdade não se reduz ao texto legal e nem pode ser concebido como um favor legal, mas, sim, como expressão do processo de libertação humana, sendo oponível ao próprio Estado.[33]

Tem-se, portanto, um dever de assistência jurídica, integral e gratuita reservada à Defensoria Pública, em prol do necessitado custeada e fornecida pelo Estado (art. 3º.- A, II, e § 5º do art. 4º., ambos da Lei Complementar 80/1964, com redação dada pela Lei Complementar 132, de 2009) para o fim de franquear o Acesso à Justiça à luz do art. 5º, LXXIV, e art. 134 da Constituição Federal de 1988. 

Enfim, a prestação gratuita dos serviços jurídicos aos necessitados através da Defensoria Pública é uma das garantias reconhecidas à efetividade dos princípios ou normas constitucionais de Acesso à Justiça e de igualdade entre as partes, constituindo-se, pois, em um direito subjetivo do cidadão.[34]

Sobre o autor
Felipe Dezorzi Borges

Defensor Público Federal de Primeira Categoria, especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto de Direito Público de Brasílila.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Felipe Dezorzi. A legitimidade da Defensoria Pública para o mandado de segurança coletivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3317, 31 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22323. Acesso em: 22 nov. 2024.

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