5. OS NECESSITADOS NO PLANO COLETIVO
Nas linhas já lançadas, observou-se a visão tradicional da rubrica necessitado no cenário jurídico nacional, então objeto da garantia constitucional da assistência jurídica integral.
Essa visão clássica, por seu turno, não tolhe a visão macro da proteção que visa o Estado a assegurar quando da sua aplicação à tutela de direitos ou interesses difusos e coletivos, de modo a conferir nova roupagem ao conceito, por intermédio de uma releitura aberta e flexível, que propicie a adequada proteção dos interesses transindividuais.
Os textos constitucionais anteriores à Constituição Federal de 1988 não definiram o que seria necessitado, tendo, de outro lado, o art. 68 do CPC de 1939 dado os primeiros sinais do titular do beneficiário da assistência jurídica.
Essa visão individualizada do conflito influenciou os estatutos processuais que se seguiram, apartada da dimensão transindividual aferível a partir da litigiosidade de massa e dos direitos metaindividuais e individuais homogêneos, então objeto da Ação Civil Pública, do Código de Defesa do Consumidor e da Ação Popular.
Nesse passo, é natural o rumo inicialmente acolhido pela legislação nacional, notadamente através da Lei 1.060/50, a qual dirige a extensão da assistência à defesa de direitos e pretensões exclusivamente individuais.
Essa, aliás, a nota do art. 2º da Lei 1.060/50, quando delimita a figura de necessitado, para o benefício da Justiça Gratuita, como sendo os nacionais ou estrangeiros residentes no país, cuja situação econômica não lhes permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.
Ainda em vigor, a Lei 1.060/50 guarda silogismo bastante diverso daquele aferido pelo inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal de 1988, o qual, muito embora possibilite a menção direta àquela legislação, no sentido de dar complementaridade à sua garantia, conferiu amplitude à assistência, haja vista não delimitar em seu texto o titular da garantia de assistência jurídica integral.
Logo, a Constituição Federal de 1988, além de acolher a evolução das dimensões de assistência jurídica do Estado, quando se compromete com a assistência jurídica integral e gratuita em favor do cidadão necessitado, segundo o texto recepcionado da Lei 1.060/50, possibilita o redimensionamento da cobertura e da abrangência daquela garantia, de modo a estender a proteção aos direitos individuais e coletivos dos necessitados.
Nesse sentido, a rubrica necessitado – dada pela Lei 1.060/50 –, e a prescrição aos que comprovarem insuficiência de recursos – informada pelo inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal de 1988 – compreende um microssistema de proteção integral, cujo alcance não se limita à garantia de direitos individuais, mas também abarca a proteção de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos em favor de todos aqueles socialmente vulneráveis.
Essas circunstâncias têm por objeto realizar o Acesso à Justiça, o que se revela, hodiernamente, através da assistência jurídica integral, de modo que a leitura do termo necessitado abrange, no ponto, não apenas a pessoa física economicamente fragilizada, mas, também, aqueles necessitados no plano coletivo, então considerada a vulnerabilidade de defesa de direitos transindividuais e a fragilidade organizacional na defesa das pretensões coletivas.
É certo que existem necessitados no plano econômico, mas também existem necessitados do ponto de vista organizacional. Consoante adverte Ada Pellegrini Grinover:
Ou seja, todos aqueles que são socialmente vulneráveis: os consumidores, os usuários de serviços públicos, os usuários de planos de saúde, os que queiram implementar ou contestar políticas públicas, como as atinentes à saúde, à moradia, ao saneamento básico, ao meio ambiente etc.[35]
A questão, à evidência, segundo a mesma autora, está vinculada à própria estruturação da sociedade de massa. Identificável uma nova categoria de hipossuficientes, qual seja, a dos carentes organizacionais, ligada à vulnerabilidade das pessoas em face das relações sócio-jurídicas existentes na sociedade contemporânea.[36]
Em face desse postulado, a exegese do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal abrange o grupo ou uma coletividade de pessoas cuja desorganização social, cultural ou econômica não consiga, por seus próprios meios, transpor obstáculos e limitações ao pleno Acesso à Justiça. A Constituição Federal traz ínsita a leitura suso mencionado, haja vista não caber ao Estado indagar se há ricos ou pobres, mas garantir a defesa dos necessitados no plano individual, bem como na dimensão coletiva, não sendo crível deixar-se à margem do direito a defesa de lesões transindividuais que afetam a coletividade mesmo que não individualmente identificáveis.
Outrossim, a necessidade coletiva, nessas ações coletivas, resulta do próprio objeto da demanda, bastando que haja indícios de que parte ou boa parte dos assistidos sejam necessitados.[37]
Rodolfo Camargo Mancuso segue esse mesmo postulado quando afirma que o conceito de necessitado não pode, em pleno século XXI, prender-se a mesma leitura reducionista da era da Lei 1.060/50, cujo texto reporta-se a uma época e sociedade distante da realidade atual. Verbis:
Necessitado, por sua vez, não pode mais ser compreendido unicamente como o hipossuficiente econômico. Esta visão míope, obsoleta, é baseada na ordem constitucional anterior e no modelo praticado pela advocacia, absolutamente impróprio para a Defensoria Pública.[38]
Não se diga que essa adequação imprescinde da comprovação da hipossuficiência. À evidência, a necessidade coletiva é o próprio objeto da pretensão coletiva, de modo que não seria pertinente exigir-se demonstração cabal da necessidade de recursos, sob pena, inclusive, de vetar o Acesso à Justiça dessa parcela da população.
A medida, aliás, é demanda da realização do pleno acesso à justiça e meio de tutela de direitos de uma potencial massa de necessitados, cujas pretensões transindividuais, prejudicadas ou oriundas de relações massificadas, deixariam de ser resguardadas coletivamente pelo Estado, caso excluídas do conceito de necessitado e da abrangência da assistência jurídica integral.
A necessidade de criação de instrumentos para tutela de um número maior de pessoas não destoa da necessidade de reinterpretação ou releitura de institutos já concebidos pela legislação, situação recrudescida pelo fato de tratar-se de normas que criam direitos e sintetizam garantias.
Assim sendo, a tônica da assistência jurídica integral e do necessitado não se subsume à visão individualista. A evolução da sociedade e suas relações interpessoais, atualmente, exigem do aplicador do direito ater-se à existência da visão macro da assistência jurídica integral e gratuita, abarcando a proteção de bens e direitos coletivos, notadamente, o meio ambiente, as relações de consumo, as relações econômicas etc., em favor do necessitado, então considerado tanto na sua dimensão individual como coletiva.
Importa concluir que necessitado, objeto da assistência jurídica integral, não são apenas os economicamente pobres, mas todos aqueles que necessitam de tutela jurídica e que podem emergir em nossas rápidas transformações sociais.[39]
É o que se observa da análise do anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos do Instituto Brasileiro de Direito Processual, notadamente o art. 20, que trata da legitimação para a ação coletiva ativa quando refere no inciso IV, que:
Art. 20. Legitimação. São legitimados concorrentemente à ação coletiva ativa: (...)
IV – a Defensoria Pública, para a defesa dos interesses ou direitos difusos e coletivos, quando a coletividade ou os membros do grupo, categoria ou classe forem necessitados do ponto de vista organizacional, e dos individuais homogêneos, quando os membros do grupo, categoria ou classe forem, ao menos em parte, hipossuficientes;
Não surpreende a preocupação ditada pelo anteprojeto para ratificar a figura da hipossuficiência coletiva, representada pelos necessitados do ponto de vista organizacional e/ou presumidamente hipossuficientes. Nesse sentido insere-se a tônica do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal. Garante-se a proteção individual e coletiva dos hipossuficientes, assim considerados aqueles que apresentam notória vulnerabilidade jurídica para o processo.
Em voga, ademais, a imputação da representatividade dos interesses desses necessitados pela Defensoria Pública, a denotar a legitimidade adequada dos interesses dessa parcela do grupo, categoria ou classe de pessoas a figurar como interessados na relação jurídica processual coletiva.
Sob esse aspecto, a assistência jurídica integral consubstancia os necessitados do ponto de vista organizacional e/ou presumidamente hipossuficientes, cuja orientação jurídica de massa e defesa coletivizada, em todos os graus, incumbe à Defensoria Pública, nos termos do art. 134 da Constituição Federal.
6. A LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA O MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO
Diante do grau de relevância atribuído à Defensoria Pública pelo art. 134 da Constituição Federal de 1988, cumpre-lhe, como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, o mister da orientação jurídica e defesa dos interesses, em todos os graus, daqueles reconhecidamente necessitados, na forma do art. 5º., LXXIV, da CF.
Ao contrário do que é previsto para o Ministério Público, pelo art. 129 da Constituição Federal de 1988, aludida Carta não delimitou as funções institucionais da Defensoria Pública, tampouco estabeleceu expressamente as hipóteses de atuação, de modo que a sua legitimação pode ser ampliada por lei[40] e/ou derivar da legitimação constitucional ventilada no art. 134 da Carta.
Logo, uma situação de fato, amparada na necessidade de defesa, em concreto, dos interesses ou direitos individuais, difusos e coletivos dos necessitados, por si, defere a situação legitimante apta a motivar a atuação da Defensoria Pública, ante o suporte constitucional. A ideia de situação legitimante surge a partir de direitos e/ou interesses jurídicos lesionados ou ameaçados de lesão, considerando a representatividade adequada àqueles que possam empreender a defesa do interesse jurídico tutelado.
Nesse contexto insere-se a legitimidade da Defensoria Pública (art. 134 da Constituição Federal), cujo mote está em garantir a defesa jurisdicional, em todos os graus, dos necessitados (art. 5º, LXXIV) e a efetivação do seu Acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, CF/1988).
A Constituição Federal, no ponto, não delimita a legitimidade da Defensoria Pública à tutela individual dos necessitados; ao contrário, revela o âmbito e objeto de atuação, cujos contornos constitucionais autorizam a adoção de uma postura ativa diante de direitos e interesses individuais e coletivos, amparados em uma situação legitimante à defesa dessas tutelas.
As recentes inovações legislativas, notadamente o art. 21 da Lei 12.016, de 2009,[41] muito embora não tenha incluído a Defensoria Pública no seu quadro de legitimados para o Mandado de Segurança Coletivo, não obsta a legitimação já deferida pelo texto constitucional de 1988, pois, à evidência, muito embora represente uma evolução significativa da Lei do Mandado de Segurança, nada mais fez do que ratificar a previsão já escorreita no art. 5º., LXX, alíneas a e b, da Constituição Federal.
Obviamente, o reconhecimento legislativo da legitimidade das Defensorias Públicas para a propositura do Mandado de Segurança Coletivo representaria medida imprescindível à solidificação de uma postura institucional que decorre da defesa da ordem social.
Nada obstante, essa leitura, eminentemente legiferante, não restringe a premissa constitucional, tão somente, para autorizar a atuação ativa da Defensoria Pública calcada exclusivamente em prévia e expressa autorização.
Essa ilação afronta o texto constitucional, o qual não delimitou os contornos de atuação jurisdicional da Defensoria Pública, mas, em verdade, outorgou a legitimação diante da ocorrência de uma situação legitimante.
Assim sendo, mesmo persistindo a omissão na Lei 12.016, de 2009, e sua sintonia ao art. 5º., LXX, alíneas a e b, da Constituição Federal, tal não representa, por si só, a denegação da admissibilidade da ação pelo órgão ante sua legitimação constitucional.
Veja-se, ademais, que o direito moderno, de matriz constitucional e processual, vem apontando na direção do Acesso à Justiça e da instrumentalidade do processo.
Eventual limitação à legitimação da Defensoria Pública, ante questões estritamente legislativas, implica flagrante retrocesso ao serviço jurisdicional e afronta direta à Constituição Federal que, ante a outorga da legitimação constitucional à Defensoria Pública, visou a impulsionar o acesso qualificado dos necessitados ao Poder Judiciário, a representatividade adequada e a redução quantitativa de demandas.
Assim sendo, a denegação da legitimidade constitucional da Defensoria Pública para a o Mandado de Segurança Coletivo equivaleria à denegação absoluta da justiça.
Em face dessas considerações, a situação legitimante, embora, como regra geral, esteja associada à titularidade do direito material, pode ser norteada também por outros critérios.[42] Isso porque responder interesses coletivos com base em esquemas de processo civil clássico, criados para resolver tutelas individuais, não seria bastante para a resolução da litigiosidade de massa.
Consoante adverte Ada Pellegrini Grinover:
Mas a tendência é sem dúvida no sentido da abertura dos esquemas da legitimação a amplos segmentos da sociedade e a seus representantes: a pessoa física, as formações sociais, os entes públicos vocacionados para a defesa dos direitos transindividuais, outros entes públicos a quem compete a tutela dos mais diversos bens referíveis à qualidade de vida – incluindo as pessoas jurídicas de direito coletivo. (...) Mais uma vez reportamo-nos à lição de Mauro Cappelletti, que considerou insuficiente para a efetiva tutela dos direitos transindividuais a escolha de um único legitimado (pessoa física, associações, Ministério Público, agências públicas) e que já indicava, com base nas experiências então existentes, a via mais eficaz, como sendo a de ‘soluzioni composte, articolate, flessibili’, sempre sob o controle de órgãos públicos.[43]
À evidência, a legitimação dada pela Constituição Federal à Defensoria Pública remete à representação adequada (aferível, via de regra, para o caso, ante critérios de relevância social[44]) do interesse a ser tutelado. As premissas democráticos albergadas no art. 134 e sua remissão ao inciso LXXIV do art.5º., da Constituição Federal de 1988, asseguram o Acesso à Justiça qualificado em favor dos necessitados por via de representação de pertinência à atuação institucional, uma vez violado um direito difuso, coletivo ou individual homogêneo.
Consoante adverte Luiz Guilherme Marinoni:
(...) a extensão da legitimação para agir no âmbito da ação popular, da ação de inconstitucionalidade e das ações coletivas está inextrincavelmente ligada à intensidade da participação popular, através da jurisdição, no poder estatal. A relação se dá, portanto, entre legitimidade de agir e democracia participativa.[45]
Por sua vez, Nelson Nery Jr., quando trata do Código de Defesa do Consumidor assinala:
A regra ordinária do Direito Processual, de que se devem interpretar restritivamente os casos de legitimação extraordinária e de substituição processual, à evidência não pode ser aplicada na tratativa processual dos direitos e interesses difusos e coletivos.[46]
Sendo certo que a Constituição Federal prevê diversas formas de defesa de garantias, não se mostra democrático excluir-se a participação da Defensoria Pública da utilização do Mandado de Segurança Coletivo e, por conseguinte, a participação popular através de aludido instrumento.
A despeito da alusão estreita dada pelo art. 5º., LXX, da Constituição Federal[47], então replicada no art. 21 da Lei 12.016/2009 (Lei do Mandado de Segurança), não há de se excluir a legitimidade constitucional da Defensoria Pública para o Mandado de Segurança Coletivo, na defesa de direitos líquidos e certos de um fato legitimante, na forma das suas finalidades institucionais, na defesa de parcela vulnerável da população brasileira.
Essa questão, em verdade, transborda a legitimação constitucional dada pela Constituição Federal, pelos termos do art. 134 e 5º., XLLIV, já que também diz respeito à opção que fez o Estado Brasileiro pela democracia participativa, e o Mandado de Segurança Coletivo é instrumento de acesso à justiça.
Nesse ponto advertem Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco:
Por outro lado, é preciso reconhecer que o regime de substituição processual conferido ao mandado de segurança para a tutela coletiva de direito líquido e certo deu novas dimensões ao writ, transformando-o em verdadeira ação coletiva. Por isso, ao mandado de segurança coletivo serão aplicadas também as normas relativas às ações coletivas.[48]
Nesse ínterim, o constituinte dirigiu o Mandado de Segurança Coletivo à correção da ilegalidade de autoridade pública, nas mãos da sociedade civil, em uma postura de fortalecimento da participação democrática e da educação para a cidadania.[49]
Seguindo-se essa premissa, como a legitimação constitucional confiada à Defensoria Pública está ligada à sua finalidade essencial, poderá ela (a Defensoria Pública) ajuizar qualquer ação para tutela de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos que tenham repercussão em interesses tutelados, do que se colhe a legitimidade para o Mandado de Segurança Coletivo, ante a conjugação dos arts. 134 e 5º., LXXIV, da Constituição Federal, à luz, ainda, do viés impingido pelas alterações dadas ao art. 4º. da Lei Complementar 80, de 1994, pela Lei Complementar 132, de 2009, in verbis:
Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:
(...)
VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
VIII – exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos e dos direitos do consumidor, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
IX – impetrar habeas corpus, mandado de injunção, habeas data e mandado de segurança ou qualquer outra ação em defesa das funções institucionais e prerrogativas de seus órgãos de execução; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
Trata-se, à evidência, de um microssistema acolhido pelo legislador, em especial no inciso VII de aludido artigo, para dotar a Defensoria Pública de todos os instrumentos processuais e espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes, de forma a deferir a necessidade de releitura do art. 5º. LXX, no âmbito do sistema Constitucional de 1988 e do art. 21 da Lei 12.016/2009.
Paradigma desse postulado está no fato de que, mesmo antes da edição da Lei 11.488/2007, que deferiu legitimidade da Defensoria Pública da União para a Ação Civil Pública, a Defensoria Pública já vinha ajuizando demandas coletivas com substrato, tanto no art. 82, III, do Código de Defesa do Consumidor em combinação com o art. 21 da Lei da Ação Civil Pública, quanto diante de uma situação legitimante decorrente da representatividade adequada dada pela Constituição Federal à Defensoria Pública na defesa dos interesses coletivos dos necessitados. O Poder Judiciário reconheceu a legitimidade da Defensoria Pública mesmo inexistindo previsão legislativa na Lei da Ação Civil Pública, o que é bastante para expressar que a atuação institucional da Defensoria Pública, na defesa de interesses coletivos, teve por substrato uma situação legitimante garantidora da ampliação do Acesso à Justiça de parcela vulnerável da população. É, ainda, reflexo da efetividade das normas constitucionais.[50]
A necessidade de aferir a legitimidade da Defensoria Pública para a gama de tutelas coletivas encontra, pois, corolário lógico na ruptura de um modelo individualista-liberalista-normativo, para autorizar, definitivamente, a legitimidade da Defensoria Pública para propor as ações coletivas em favor de outras tutelas cuja repercussão coletiva não derivaria estritamente de disposição legal.
Trata-se, portanto, de faceta da assistência jurídica integral albergada pelo inciso LXXIV do art. 5º. da Constituição Federal de 1988, sob abrigo da Defensoria Pública, ante os termos do art. 134 da mesma Carta Constitucional.
Parte-se, pois, de uma interpretação sistemática e teleológica de normas diversas do ordenamento jurídico, constitucional e infraconstitucional, princípios e regras, para autorizar a defesa da tutela dos necessitados no plano coletivo pela Defensoria Pública. Essa vertente interpretativa tem na Constituição Federal a força normativa própria para dar vazão à referência anterior, a despeito de qualquer previsão regulamentar. Trata-se, nas palavras de J.J. Gomes Canotilho, da aplicação direta de normas constitucionais de direito, liberdades e garantias:
Aplicabilidade directa significa, desde logo, nesta sede – direitos, liberdades e garantias – a rejeição da ideia “criacionista” conducente ao desprezo dos direitos fundamentais enquanto não forem positivados a nível legal. Neste sentido, escreveu sugestivamente um autor (K. Krüger) que, na época actual, se assistia à deslocação da doutrina dos “direitos fundamentais dentro da reserva de lei” para a doutrina da reserva de lei dentro dos direitos fundamentais.
Logo, conclui o constitucionalista:
Aplicação directa não significa apenas que os direitos, liberdades e garantias se aplicam independentemente da intervenção legislativa (cfr. arts.17º. e 18º./1). Significa também que eles valem directamente contra a lei, quando esta estabelece restrições em desconformidade com a constituição (cfr. CRP, art.18º./3).[51]
Em se tratando de garantia constitucional, a conjugação do art. 4º., VII, VIII, IX, X e XI, da Lei Complementar 80, de 1994 (e alteração dada pela Lei Complementar 132, de 2009), com o art. 134, caput, e o art. 5º., XXLIV, da Constituição Federal constituem direitos imediatamente aplicáveis e vinculam diretamente os Tribunais e a Administração Pública.
Canotilho arrola os princípios de como realizar essa interpretação constitucional:
- Princípio da unidade da Constituição: com ele se quer significar que a Constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições. Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios;
- Princípio do efeito integrador: significa que, na resolução dos problemas jurídico-constitucionais, deve-se dar primazia aos critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política. Conduz a solução pluralisticamente integradora;
- Princípio da máxima efetividade (da eficiência): a uma norma deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais;
- Princípio da força normativa da Constituição: na solução dos problemas jurídico-constitucionais deve-se dar prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da constituição (normativa), contribuem para uma eficácia plena da lei fundamental. Consequentemente, deve-se dar primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas constitucionais, possibilitam a “actualização” normativa, garantido a sua eficácia e permanência.[52]
Essa lógica interpretativa corrobora a legitimação da Defensoria Pública para o Mandado de Segurança Coletivo, à necessidade de tutela dos direitos dos vulneráveis coletivos e à indivisibilidade dos interesses de grupos de necessitados desprovidos de recursos organizacionais, ante a força normativa dos arts. 134 e 5º., inciso XXLVI, da Constituição Federal, a autorizar a propositura de pleito coletivo (direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos), de toda à espécie, e em todos os graus de jurisdição.
Não surpreende a anotação dada ao art. 42 do capítulo IV do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos quando trata do Mandado de Segurança Coletivo, verbis:
Art. 42. Legitimação ativa – O mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:
I – Ministério Público;
II – Defensoria Pública;
III – partido político com representação no Congresso Nacional;
IV – entidade sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados, dispensada a autorização assemblar.
Segue esse viés a Proposta de Emenda à Constituição número 74, de 2007, e respectivas emendas, atualmente em trâmite no Senado Federal, que acrescenta as alíneas c e d ao inciso LXX da Constituição Federal, a fim de legitimar a Defensoria Pública, juntamente com o Ministério Público, para a impetração do Mandado de Segurança Coletivo. Consoante adverte o Parecer 1.400, de 2009, da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, sobre a proposta de Emenda à Constituição 74, de 2007, estender a legitimidade para a impetração do Mandado de Segurança Coletivo à Defensoria Pública defere-lhe meio processual para atingir as finalidades acometidas pelo texto constitucional, além de racionalizar a prestação jurisdicional.[53]
Manifesta está a ampliação da legitimação para o mandamus coletivo para abranger não somente a Defensoria Pública, mas também o Ministério Público.[54] Nesse ponto, mister a premissa adotada pela doutrina de Cassio Scarpinella Bueno quando assenta a legitimidade do Ministério Público para o Mandado de Segurança Coletivo, in verbis:
O silêncio do art. 21, caput, da Lei nº 12.016/2009 não afasta a legitimidade ativa do Ministério Público para a impetração do Mandado de Segurança Coletivo. Ela, embora não seja prevista expressamente pelo inciso LXX do art. 5º. da Constituição Federal, decorre imediatamente das finalidades institucionais daquele órgão tais quais definidas pelos arts. 127 e 129, III, da mesma Carta e, infraconstitucionalmente, pelo art. 6º., VI, da Lei Complementar nº 75/1993, para o Ministério Público da União, e no art. 32, I, da Lei nº 8.625/1993, para o Ministério Público dos Estados.[55]
Portanto, nada obsta que seja ampliada a legitimação para o Mandado de Segurança Coletivo, haja vista que o catálogo de direitos, liberdades e garantias estatuído pela Constituição Federal não se limita à relação do art. 5º., como prescreve a norma do seu parágrafo segundo[56], quando anota que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados.
Seria, à evidência, mera ampliação legal do bloco de constitucionalidade, haja vista que a Constituição Federal atribui à Defensoria Pública pertinência para pleitear judicialmente uma postura ativa em favor daqueles interesses e, por conseguinte, em benefício da democracia participativa e do pleno Acesso à Justiça.
A contrário sensu, sujeitos indeterminados, necessitados organizacionais e vulneráveis de toda espécie ficariam desatendidos face ao não acatamento da legitimidade propugnada, em nome de um interpretação formalista e impeditiva da contemplação de pleito que visa a realização material de uma pretensão.[57]
Percebe-se claramente a oportunidade perdida pelo legislador nacional quando preferiu, com o advento da Lei 12.016/2009, adotar posição contida e reducionista quanto à legitimação para o Mandado de Segurança Coletivo. Além de limitar sobremaneira a instrumentalidade do Mandado de Segurança Coletivo para a defesa de direito líquido e certo ligado a interesses ou direitos difusos.
Assim sendo, restringir a legitimidade da Defensoria Pública na defesa dos direitos ou interesses transindividuais através do instrumento do Mandado de Segurança Coletivo parece inconcebível em um sistema jurídico que prima pela democracia participativa.
À evidência, a regra inserida pelo art. 4º., VII, VIII, IX, X e XI, da Lei Complementar 80, de 1994 (e alteração dada pela Lei Complementar 132, de 2009), conjugada aos arts. 134 e 5º., inciso XXLVI, da Constituição Federal consagram a legitimidade da Defensoria Pública para o Mandado de Segurança Coletivo em favor da defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos de grupo de pessoas então necessitadas sob o ponto de vista organizacional, e que abarca a necessidade de tutela dos vulneráveis coletivos e da indivisibilidade dos interesses de grupos de necessitados desprovidos de recursos organizacionais.