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Reflexões acerca do genocídio

Agenda 10/08/2012 às 10:32

Genocídio é um crime grave porque não ofende apenas a vida, mas uma categoria de pessoas. É importante verificar que o genocídio não exige que o atentado atinja mais de uma pessoa. O que interessa é o dolo, ou seja, a vontade de atingir determinado grupo racial, étnico, religioso etc.

1. LEI N. 2.889/1956, E ESTATUTO DE ROMA

O genocídio surgiu logo após a segunda grande guerra, visando a atingir os derrotados daquela guerra, mais especificamente os alemães. No Brasil, ele não constava da legislação criminal, tendo emergido com a Lei n. 2.889, de 1.10.1956, que dispõe:

Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:

a) matar membros do grupo;

b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;

d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo;

Será punido:

Com as penas do art. 121, § 2º, do Código Penal, no caso da letra a;

Com as penas do art. 129, § 2º, no caso da letra b;

Com as penas do art. 270, no caso da letra c;

Com as penas do art. 125, no caso da letra d;

Com as penas do art. 148, no caso da letra e;

Art. 2º Associarem-se mais de 3 (três) pessoas para prática dos crimes mencionados no artigo anterior:

Pena: Metade da cominada aos crimes ali previstos.

Art. 3º Incitar, direta e publicamente alguém a cometer qualquer dos crimes de que trata o art. 1º:

Pena: Metade das penas ali cominadas.

§ 1º A pena pelo crime de incitação será a mesma de crime incitado, se este se consumar.

§ 2º A pena será aumentada de 1/3 (um terço), quando a incitação for cometida pela imprensa.

Art. 4º A pena será agravada de 1/3 (um terço), no caso dos arts. 1º, 2º e 3º, quando cometido o crime por governante ou funcionário público.

Art. 5º Será punida com 2/3 (dois terços) das respectivas penas a tentativa dos crimes definidos nesta lei.

Art. 6º Os crimes de que trata esta lei não serão considerados crimes políticos para efeitos de extradição.

O Estatuto de Roma, promulgado pelo Decreto n. 4.388, de 25.9.2002, institui a Corte Internacional Criminal-CIC (a legislação brasileira opta pela denominação Tribunal penal Internacional-TPI para se referir à CIC), sendo que dele se extrai:

Art. 6º. Crime de genocídio.

Para efeitos do presente Estatuto, entende-se por ‘genocício’ qualquer um dos atos que a seguir enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal:

a) homicídio de membros do grupo;

b) ofensas graves à integridade do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial;

d) imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo;

e) transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.

Genocídio é um crime grave porque não ofende apenas a vida, mas uma categoria de pessoas. Daí a sua previsão no ordenamento jurídico internacional a ser julgado por uma corte permanente. Sendo oportuno, no entanto, ressaltar que a intervenção da CIC será subsidiária porque o maior princípio de Direito Internacional é o da territorialidade.


2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA

O genocídio tem origem remota. Nos primórdios, os grupos se dizimavam como forma de vingança (divina, privada ou pública). Não havia forma de proteção jurídica. Na verdade, a proteção se dava por meio da força, manifestada por meio da guerra. Destarte, foi com o Direito Criminal Militar romano que emergiram as primeiras tentativas de se buscar o respeito aos direitos dos povos dominados.

Não proibido pelo Direito Criminal, o genocídio sempre se manifestou ao longo dos anos, mormente durante os conflitos armados. Nos tempos modernos, o genocídio surgiu na ordem jurídica em 8.8.1945 como delito contra a ordem internacional, a fim de atingir os derrotados na segunda grande guerra, o que sem dúvida representou violação ao princípio da legalidade.[1]

O CP brasileiro já havia sido editado, portanto, o genocídio só veio a constar, no meio interno, da Lei n. 2.889, de 1.10.1956. Nesta, não há uma classificação do genocídio. No entanto, no CPM (Decreto-Lei n. 1.001, de 21. 10.1969), ele consta do Título IV – Dos Crimes contra a pessoa -, constituindo o seu capítulo II (art. 208).

O CP de 1969 manteve essa visão, ou seja, o genocídio se classificou como crime contra a pessoa (art. 128). Diversamente, o Estatuto de Roma (aprovado pelo Decreto Legislativo n. 112, de 6.6.2002, e promulgado pelo Decreto n. 4.388, de 25.9.2002) não classificou o genocídio segundo qualquer daquelas espécies mencionadas, ocorre que esta norma é de Direito Internacional, fugindo da proposta deste pequeno estudo.

Os comentários que se seguirão se referem ao DCrim interno, mas não se pode olvidar que o Estatuto de Roma é subsidiário, aplicando-se ao fato concretizado que não tiver sido submetido à jurisdição interna. Desse modo, havendo omissão do poder público brasileiro, incidirá a jurisdição internacional, a ser exercida pela CIC.

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3. ESPÉCIES DE GENOCÍDIO

As motivações do genocídio são diversas, a saber:

(a) raça – o racismo pode levar a buscar eliminar pessoas aparentemente diferentes. Todavia, embora o STF tenha declarado, na ADPF n. 186, que o regime de cotas puramente raciais da UnB é constitucional, posição que entendo equivocada,[2] até porque não se pode pretender criar um país bicolor e parece mais adequado falar em raça humana, ao contrário de criar subclassificações que apenas separarão pessoas;[3]

(b) etnia – a rejeição por pessoas provindas de determinadas regiões também levam ao genocídio. No Brasil há um evento famoso que o fato do povo de uma unidade federativa torcer contra a própria federação;[4]

(c) religião – as diferenças religiosas têm levado às várias guerras e às muitas tentativas de exterminação de grupos. É lamentável, mas a religião tem sido utilizada para fins espúrios e dá azo a muitas crendices distantes do conhecimento teológico;

(d) cultura – muitas vezes se procura eliminar determinadas culturas, por exemplo, danças folclóricas, língua e etc., descaracterizando uma nação.

Fala-se nas seguintes espécies de genocídio: (I) físico – assassinato e atos que podem causar a morte; (II) biológico - este se caracteriza pelo fato de se esterilizar pessoas, ou miscigenar membros do grupo, extinguindo-o. Tal espécie de genocídio é classificada pelos meios utilizados para sua concretização, não pela sua motivação; (III) cultural – a ordem jurídica moderna não reconhece o genocídio cultural. O Afeganistão, por exemplo, experimentou a destruição de todos seus símbolos religiosos, o que foi feito com a intenção de se destruir um pensamento religioso no País. No entanto, tal delito pode até constituir o dano ao patrimônio artístico, cultural ou histórico, mas não chega a caracterizar o delito de genocídio.

O exposto evidencia que motivação interessa para caracterizar o genocídio, mas interessa também a forma da prática do delito, eis que só se poderá falar no delito nas hipóteses de genocídios físicos e biológicos, ficando afastado o genocídio cultural, o que se aplica no Brasil e na CIC.

Ressalte-se que a hipótese constante da alínea “e” do art. 6º do Estatuto de Roma, “transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo“, pode ser classificada como genocídio biológico porque a “raça” e a etnia quedaram desnaturadas.


4. CARACTERIZAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA

Diz-se que a norma criminal será incompleta ou imperfeita se não apresentar o preceito (sanção), sendo exemplo típico de tal espécie a Lei n. 2.889/1956 porque remete as penas do genocídio às do Código Penal.

A norma em branco exige complementação, sendo, portanto, incompleta. Destarte a classificação é inócua. Pior, toda norma incriminadora depende de complementação, o que autoriza afirmar ser despropositada a classificação. Tanto é que a norma criminal incompleta é denominada de norma em branco em sentido amplo. Tal classificação, portanto, serve apenas para a cultura dos concursos públicos.

É importante verificar que o genocídio não exige que o atentado atinja mais de uma pessoa. O que interessa é o dolo, ou seja, a vontade de atingir determinado grupo racial, étnico, religioso etc.

Em Brasília, no dia 20.4.1997, 4 adultos e 1 adolescente (todos menores de 21 anos na data do fato) “brincaram” de colocar fogo em um silvícola, o qual teve 95% do corpo queimado, o que provocou a sua morte. Rapidamente a defesa se preocupou em afastar o genocídio, que poderia se caracterizar pelo fato de filhos de pessoas de classe média estarem procurando matar um silvícola que participou de várias manifestações pelos direitos dos índios no Dia do Índio (19.4.1997, instituído pelo Decreto-lei n. 5.540, de 28.11.1968), como expressão de repúdio a todo pele vermelha.

Como a lei hedionda (lei dos crimes hediondos – Lei n. 8.072, de 25.7.1990) surgiu por iniciativa de um Deputado Federal que teve um irmão, pouco antes da elaboração da lei, vítima de extorsão mediante sequestro, considerou principalmente tal crime. Assim, a vida ficou em segundo plano e, portanto, o genocídio não era crime hediondo.

Crimes tais como o atentado violento ao pudor (constava do art. 214 do Código Penal), que podia ser praticado mediante violência presumida, foram considerados hediondos, mas o genocídio não.

Foram necessárias mortes de pessoas com influência nos meios de comunicação de massa para que a Lei n. 8.930, de 6.9.1994, fosse editada, isso a fim de incluir o homicídio no rol dos crimes hediondos. Só a partir de tal lei é que perceberam que o genocídio também é gravíssimo e ele passou a ser considerado crime hediondo (Lei n. 8.072/1990, art. 1º, parágrafo único).

O genocídio se classifica como crime doloso (exige o querer ou o assumir o resultado. Não há genocídio negligente), plurissubsistente (a conduta pode ser fracionada e, portanto, pode ser praticado na forma tentada), de dano ou material (depende da ofensa ao objeto jurídico – vida – para sua consumação. Aqui cabe esclarecer que a ofensa a vida não importa necessariamente na extinção de uma, podendo ser considerado genocídio impedir o nascimento de novas pessoas, eis que admitido o genocídio biológico), unissubjetivo (pode ser praticado por uma única pessoa), comum (pode ser praticado por qualquer pessoa), instantâneo (pode se consumar no momento da ação ou omissão delituosa); hediondo (Lei n. 8.072/1990, art. 1º, parágrafo único); e de dupla subjetividade passiva, eis que exige necessariamente mais de um objeto jurídico (mesmo que uma única pessoa seja atingida, é necessário que a intenção seja exterminar determinado grupo, portanto, mais de uma vida estará sendo visada).

A prática de genocídios diversos, atendendo aos requisitos constantes do art. 71, parágrafo único, do CP, constituirá continuidade delitiva específica. No caso de ações diversas, praticadas em momentos diferentes, não será possível entender que se tratará do mesmo genocídio apenas porque o agente terá um único ideal delituoso. Na hipótese, haverá concurso material (CP, art. 69) ou continuidade delitiva específica. Mas se o agente, mediante uma única ação ou omissão, gerar, dolosamente, a morte de duas ou mais pessoas, não haverá concurso de crimes, uma vez que a pluralidade de vítimas apenas influenciará nas consequências do crime e, portanto, na dosimetria da pena.

Aquele que vier a disparar tiros de arma de fogo contra várias pessoas de determinado grupo religioso, étnico ou racial, praticará um único crime de genocídio. Caso alguns membros do grupo sobrevivam lesionados, mesmo assim, não se poderá falar em concurso formal ideal, eis que o genocídio pressupõe a possibilidade de extermínio de uma coletividade, devendo a conduta meio ser absorvida pela conduta fim.

Em caso de agente que pretenda matar apenas amarelos, por ser seu país de maioria branca, oprimida pelos amarelos, que negligente venha a matar brancos, dever-se-á entender existente o concurso formal ideal (CP, art. 70, caput, 1ª parte). Caso o agente assuma o risco de matar os brancos, a fim de dizer justificável o desiderato de matar amarelos, ainda que importe em sacrifício de alguns brancos, dever-se-á entender que, quanto aos brancos, haverá concurso formal especial (art. 70, caput, 2ª parte).

A Lei n. 8.930/1994 não alterou o art. 9. da Lei n. 8.072/1990, o que faz com que o genocídio não tenha o aumento previsto no artigo nupercitado. No entanto, em se tratando de crime a ser julgado pela CIC, outros rigores serão incidentes, tais quais, imprescritibilidade e poderá ser fixada pena de caráter perpétuo.


5. CRIME MILITAR

No caso de crime militar, afasta-se a Lei n. 2.889/1956, aplicando-se o Código Penal Militar. Em tempo de paz, incidirá o seguinte dispositivo:

Art. 208. Matar membros de um grupo nacional, étnico, religioso ou pertencente a determinada raça, com o fim de destruição total ou parcial desse grupo:

Pena - reclusão, de quinze a trinta anos.

Casos assimilados

Parágrafo único. Será punido com reclusão, de quatro a quinze anos, quem, com o mesmo fim:

I - inflige lesões graves a membros do grupo;

II - submete o grupo a condições de existência, físicas ou morais, capazes de ocasionar a eliminação de todos os seus membros ou parte deles;

III - força o grupo à sua dispersão;

IV - impõe medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

V - efetua coativamente a transferência de crianças do grupo para outro grupo.

Em tempo de guerra, a disposição legal é a seguinte:

Art. 401. Praticar, em zona militarmente ocupada, o crime previsto no art. 208:

Pena - morte, grau máximo; reclusão, de vinte anos, grau mínimo.

Casos assimilados

Art. 402. Praticar, com o mesmo fim e na zona referida no artigo anterior, qualquer dos atos previstos nos n. I, II, III, IV ou V, do parágrafo único, do art. 208:

Pena - reclusão, de seis a vinte e quatro anos.

Embora exista previsão para a punição do genocídio como crime comum e como crime militar, em caso de omissão da Justiça pátria, poderá incidir a jurisdição internacional, em face da subsidiariedade do Estatuto de Roma.


Notas

[1] GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg: 1945-1946. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2.004. p. 157-172.

[2] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. A decisão do STF não resolve o problema da falta de critérios científicos para a seleção das pessoas a ocuparem cotas raciais. Brasília: Estudos Jurídicos e Filosóficos, 27.4.2012. Disponível em: <http://sidiojunior.blogspot.com.br/2012/04/decisao-do-stf-nao-resolve-o-problema.html>. Acesso em: 7.8.2011, às aah45.

[3] Já fui instado a me manifestar sobre o assunto, sendo que proferi parecer contra o sistema de cotas puramente racial. Veja-se: MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Procuradoria entende que regime de cotas na UnB é impossível, por ausência de critério científico. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2585, 30.7.2010 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/17073>. Acesso em: 7.8.2012, às 12h.

[4] É um evento notório. Veja-se: <http://globoesporte.globo.com/programas/esporte-espetacular/noticia/2012/08/confronto-entre-selecao-brasileira-e-selecao-gaucha-completa-40-anos.html>.

Sobre o autor
Sidio Rosa de Mesquita Júnior

Procurador Federal e Professor Universitário. Graduado em Segurança Pública (1989) e em Direito (1994). Especialista Direito Penal e Criminologia (1996) e Metodologia do Ensino Superior (1999). Mestre em Direito (2002). Doutorando em Direito. Autor dos livros "Prescrição Penal"; "Execução Criminal: Teoria e Prática"; e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (todos da Editora Atlas).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa. Reflexões acerca do genocídio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3327, 10 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22386. Acesso em: 5 nov. 2024.

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