Resumo: No contexto contemporâneo, a discussão nos foros regionais e mundiais sobre a proteção dos direitos dos indivíduos ganhou maior força, a partir do momento em que os Estados nacionais aceitaram debater o assunto não mais como questão exclusivamente interna. Isto alavancou o desenvolvimento normativo e institucional do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do Direito Humanitário, ainda que em medidas diferentes, a um estágio inédito e elogiável. A aplicação das regras humanísticas na sociedade internacional mostra-se, contudo, ainda discriminatória e seletiva, o que ressalta o caráter peculiar do Direito Internacional, fortemente influenciado pelas Relações Internacionais e fundado no postulado da soberania dos Estados e nos princípios dela decorrentes. Com isso, o objetivo do artigo é situar a complexa relação que envolve os valores humanos no Direito Internacional, a partir de sua perspectiva westfaliana e realista-marxista que visa a contextualizá-los como produto de um processo histórico inserido em um sistema interestatal, regido pela lógica teoria da soberania e dinâmica prática do realismo político, o que difere diametralmente das estruturações jurídicas internas dos Estados.
Palavras-chave: Direito Internacional; Direitos Humanos; Soberania; Relações Internacionais.
I. Introdução
Os direitos humanos são um tema que ganha cada vez mais espaço na agenda global contemporânea. O fim da bipolaridade viabilizou o fortalecimento de outros temas relevantes nas relações internacionais que não apenas a segurança e o desenvolvimento. Se durante a Guerra Fria, a discussão interestatal orbitava em torno da nuclearização e da industrialização, atualmente, outros assuntos, como a proteção dos direitos humanos, aparecem como a nova ideologia posterior ao fim das ideologias políticas, acima quer de ideais socialistas, quer de ambições capitalistas. Douzinas explicita (DOUZINAS, 2009: p. 16):
“Politicamente, a retórica dos direitos humanos parece ter triunfado, pois ela pode ser adotada pela Esquerda ou pela Direita, pelo Norte ou pelo Sul, Estado ou púlpito, ministro ou rebelde. Essa é a característica que os torna a única ideologia na praça, a ideologia após o fim das ideologias, a ideologia no fim da história.”
O discurso sobre a necessidade de valorização das garantias básicas do indivíduo é consensual na esfera internacional. Todos os Estados e todas as organizações internacionais defendem a imprescindibilidade da proteção e do incremento das instituições garantidoras. Nesse sentido ambos os atores vêm ampliando a rede institucional e normativa de defesa das garantias humanistas. Em virtude disso, os direitos humanos conquistaram neste início de século XXI um desenvolvimento jurídico e uma difusão no campo da política internacional inéditos na trajetória do sistema interestatal capitalista.
O progresso teórico da matéria encontra, no entanto, obstáculos quando passa para sua aplicação prática, partindo da definição do amplo, vago e, por isso, modulável conteúdo dos direitos humanos, o que possibilita que, em um sistema, no qual prevalece a soberania estatal como valor jurídico basilar e a ordem política oriunda da vontade hegemônica das grandes potências, as garantias do indivíduo sejam implementadas de forma seletiva e discriminatória, de acordo com o interesse dos Estados. A pretensa e aclamada universalidade dos valores humanos esconde a política externa das nações que controlam o sistema internacional.
Alguns casos recentes ocorridos no contexto contemporâneo, após a Guerra Fria, ilustram essa tendência. A intervenção da OTAN, no Kosovo, em 1999, é colocada por Zizek para apontar as contradições que pautam a aplicação dos direitos humanos (ZIZEK apud ALVES, 2002: p. 92):
"... não vivemos nós na era dos direitos humanos universais, que se afirmam até mesmo contra a soberania estatal? O bombardeio da Iugoslávia pela OTAN não foi o primeiro caso de intervenção militar realizada em decorrência de pura preocupação normativa (ou, pelo menos, apresentando-se como assim realizada), sem referência a qualquer interesse político-econômico "patológico". Essa nova normatividade emergente para os `direitos humanos' é, entretanto, a forma em que aparece seu exato oposto"
A relação paradoxal entre teoria e prática evidencia a complexidade do tema. Os direitos humanos, em muitas vezes, são utilizados como retórica para legitimar a violação do direito internacional, como ocorreu recentemente na intervenção das Nações Unidas na Líbia. Por vezes, ainda, o interesse geopolítico e econômico se sobrepõe aos princípios primordiais de proteção do ser humano, como nos casos das execuções sumárias de Saddam Hussein, no Iraque, e de Muammar Kadhafi, na Líbia, e na crise que ocorre na Síria.
As imperfeições do sistema não significam, todavia, a total ineficácia do direito internacional de proteção do indivíduo, mas ressalta apenas sua complexa dinâmica, que não pode ser comparada com a aplicação dos direitos humanos nos ordenamentos jurídicos internos. Para compreender sua sistemática, é preciso não apenas um estudo que se esgote no Direito Internacional, mas que o perpasse e o extrapole, abarcando outras esferas para além da jurídica. Neste sentido, analisar aspectos históricos, políticos e econômicos é fundamental.
Dessa forma, propõe-se neste artigo um diálogo entre Direito Internacional e Relações Internacionais, sob as perspectivas marxista e realista. Sem a pretensão de esgotar o assunto, objetiva-se debater a proteção internacional dos direitos humanos sob os prismas que conduzem o Direito Internacional e as Relações Internacionais. Com isso, o artigo será dividido em quatro partes. Na primeira, será abordado o processo que pautou a construção dos direitos humanos até sua atual institucionalização. Na segunda, serão discutidas as particularidades do sistema westfaliano que embasa o Direito Internacional. Na terceira, o foco será as Relações Internacionais e sua interação com o direito.Por fim, na quarta e última, o artigo será concluído mediante a análise da interação entre os Direitos Humanos e o Direito Internacional e a visão realista das Relações Internacionais.
II- Os Direitos Humanos no Sistema Interestatal
Antes de qualquer análise sobre os direitos humanos, é preciso entender o significado desta expressão. Os direitos seriam as garantias, as formas de tutela, de proteção, que variam no tempo e no espaço e seriam devidos aos indivíduos por sua condição humana, ou seja, naturais; enquanto que a definição do que é humano se transforma de acordo com a sociedade. Para Marx, o homem seria, inevitavelmente, um ser histórico (MARX, 2010: p. 7):
“Mas ele também é um ser histórico, que vive em determinada época e assimila as ideias que predominam durante o período de sua vida, bem como as que o antecedem pois, ao nascer, ele se torna herdeiro de todo patrimônio cultural da humanidade.”
Com fulcro nesta concepção, percebe-se que os direitos humanos são frutos de um processo histórico, que se desenvolveu inserido nas nuances políticas e econômicas do sistema interestatal capitalista2. Para Bobbio, seu conteúdo seria determinado pelas conjunturas sistêmicas (BOBBIO, 1990: p. 6): “Nascem quando podem ou devem nascer”.
Os direitos civis e políticos foram os que primeiro puderam nascer, consolidados a partir das conquistas burguesas, refletindo os valores caros a esta classe social emergente no século XVII. Essa primeira geração ou dimensão de direitos reverbera a reação burguesa, em sua luta por liberdade, igualdade e fraternidade, perante o Estado absolutista, que intervinha na esfera de discricionariedade individual. Não importava a condição econômica de cada um, mas apenas sua plena disponibilidade para usar, gozar e usufruir da vida privada e para participar da esfera política estatal, cabendo ao Estado garantir segurança e estabilidade. As Revoluções Americana e Francesa e os documentos delas irradiados ilustram a materialização das conquistas burguesas no contexto de enfraquecimento do poder aristocrático. Bobbio resume o momento que considera gestacional da evolução dos direitos em três premissas básicas (BOBBIO, 1990: p. 2): “1. Os direitos naturais são históricos; 2. Nascem no início da era moderna, juntamente com a concepção individualista de sociedade; 3. Tornam-se um dos principais indicadores do progresso histórico.”
Inicialmente a preocupação com os indivíduos no sistema interestatal se limitava ao reconhecimento de limites, por meio do estabelecimento de direitos nos momentos de guerra entre Estados, como forma de diminuir o sofrimento gerado pela conflito bélico. Este mínimo necessário a ser cumprido pelas partes conflitantes detinha uma caráter mais solidário e assistencialista do que efetivamente garantidor de direitos. Ainda assim, a partir da vedação geral, expressa na Carta da ONU, que restringe a utilização da guerra como meio legítimo de solução de controvérsias a duas hipóteses excepcionais (direito à guerra), o direito da guerra foi consideravelmente ampliado.
II.1. O Direito Internacional Humanitário
O Direito Internacional Humanitário regula as situações de exceção, quando as partes se encontram em conflitos armados. Sua origem remonta ao contexto das guerras de unificação italiana, quando Henry Dunant, aristocrata helvético, chega a Solferino, ao norte da Itália, no dia 24 de junho de 1859, para obter ajuda de Napoleão III para investimentos que efetuara na Argélia, e depara-se batalha entre os exércitos Austríaco e Francês. A falta de serviços médicos adequados que assegurassem o tratamento das vítimas motiva Dunant a inicia o movimento humanitário, com a criação do Comitê da Cruz Vermelha, uma organização não governamental (ONG), constituída pelas leis civis suíças e prevista na Primeira Convenção de Genebra, de 1864, cujo intuito era prestar assistência médica aos envolvidos em combates.
A partir desse momento, o assunto ganhou relevância nos encontros internacionais, como ocorreu nas duas Conferências de Haia, de 1899 e de 1907, formando uma das primeiras fontes do direito internacional humanitário. O Direito de Haia é o que rege a conduta das operações militares (hostilidades), direitos e deveres dos militares participantes na conduta das operações militares e limita os meios de ferir o inimigo. Estas regras têm vista a necessidade de ter em conta necessidades militares das partes em conflito, nunca esquecendo, porém, os princípios de humanidade.
Com o final da trágica Segunda Guerra Mundial, o tema ganhou ainda mais relevância, com as Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos de 1977. O Direito de Genebra tem como objetivo conter os efeitos das armas e proteger as vítimas do conflito. Os instrumentos abarcam a proteção de feridos e doentes no campo de batalhas terrestres e marítimas, a prisioneiros de guerra, população civil, as vítimas de conflitos armados não internacionais que se desenrolem em território de um Estado. Vale, contudo, ressaltar que não há a extensão das garantias para situações de tensão e de perturbação internas, tais como motins, atos de violência isolados e esporádicos e outros atos análogos, que não são considerados como conflitos armados.
No contexto contemporâneo, outros documentos vieram a ampliar as normas garantidoras. O Direito de Nova Iorque, cujo fundamento é a Convenção das Nações Unidas de 1990, é o responsável pela proteção dos direitos em conflitos armados das crianças envolvidas. O Direito de Roma, cujo pilar é o Estatuto de Roma de 1998, adensa e reforça os princípios humanitários, e prevê a punição de crimes atentatórios da humanidade pelo Tribunal Penal Internacional, que, no entanto, não é um tribunal universal humanitário ou de direitos humanos, apesar da próxima relação axiológica.
Em suma, verifica-se a ampliação do rol das fontes do Direito Internacional Humanitário. Apesar da expansão normativa, não existe um tribunal universal de direito humanitário específico para efetivá-las. Sua observância é garantida pela Corte Internacional de Justiça, cuja competência contenciosa envolve apenas a relação entre Estados, como entes legitimados para a jurisdição, sem qualquer acesso ao indivíduo vitimado.
A excepcionalidade da aplicação do Direito Internacional Humanitário não garantia aos direitos humanos uma proteção ampla, haja vista as constantes violações ocorridas também em tempos de paz. A não observância dos direitos humanos não é exceção, mas, infelizmente, a regra. Em virtude disto, adveio a necessidade da tutela em tempo integral que complementasse o direito da guerra. Desta conscientização o Direito Internacional dos Direitos Humanos passou a ser sistematizado, a partir de suas distintas dimensões, paralelamente com o Direito Internacional Humanitário.
II.2. O Direito Internacional dos Direitos Humanos
A primeira geração ou dimensão de direitos reverbera a reação burguesa, em sua luta por liberdade, igualdade e fraternidade, perante o Estado absolutista, que intervinha na esfera de discricionariedade individual. Com fulcro nesta concepção, Fábio Konder Comparato resume a estratégia burguesa (COMPARATO, 2004: p. 50):
“Em sentido contrário, a democracia moderna, reinventada quase ao mesmo tempo na América do Norte e na França, foi a fórmula política encontrada pela burguesia para extinguir os antigos privilégios dos dois principais estamentos do ancien regime- o clero e a nobreza- e tornar o governo responsável perante a classe burguesa. O espírito original da democracia moderna não foi, portanto, a defesa do povo pobre contra a minoria rica, mas sim a defesa dos proprietários ricos contra um regime de privilégios estamentais e de governo irresponsável.”
A trajetória dos direitos revela o processo dialético de conquistas e fracassos das classes dominantes. Wolker destaca o processo que levou ao triunfo da burguesia (WOLKER, 2004: pp. 25-26):
“Importa ter presente que, para os revolucionários de 1789, a concepção dos direitos humanos expressava uma idéia que fundamentava um discurso político. Contudo, na medida em que a burguesia chega ao poder e sedimenta sua hegemonia, os direitos humanos deixam de ser aspirações teóricas idealizadas para adquirirem formalização política e justificativas específicas incorporadas ao Estado.”.
Apenas os ideais de igualdade (formal) e de liberdade (parcial) provaram não ser suficientes para garantir a estabilização das sociedades, alteradas pelos rumos do crescimento industrial que arrastava os países para a urbanização e, com isso, para a complexificação das relações sociais e econômicas. Resultados destas transformações, os direitos sociais, econômicos e culturais emergem como uma segunda dimensão ou geração, que veio a ser consolidada após a Segunda Guerra Mundial, já na organização hegemônica estadunidense. A criação da Organização das Nações Unidas e a Declaração Universal de Direitos Humanos são exemplos da tentativa, ainda que em medidas diferentes, de consagrar os direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais para além das fronteiras do Estado nacional. Comparato explica o elemento histórico da luta de classes por detrás da trajetória de conquistas do ser humano (COMPARATO, 2004: p. 53):
“Os socialistas perceberam, desde logo, que esses flagelos sociais não eram cataclismos da natureza nem efeitos necessários da organização racional das atividades econômicas, mas dejetos do sistema capitalista de produção, cuja lógica consiste em atribuir aos bens de capital um valor muito superior ao das pessoas. Os direitos humanos de proteção ao trabalhador são, portanto, fundamentalmente anticapitalistas, e, por isso mesmo, só puderam prosperar a partir do momento histórico em que os donos do capital foram obrigados a se compor com os trabalhadores.”.
A partir desse momento, entendeu-se pela consolidação de um sistema geral de proteção do indivíduo, conhecido como Direito Internacional dos Direitos Humanos, matéria responsável por regular as garantias do ser humano, independentemente de conflitos. Internacionais, o que a diferencia do Direito Internacional Humanitário. Suas fontes, além da Carta da ONU e da Declaração Universal de Direitos Humanos, são os Pactos Internacionais de 1966, Convenções específicas e Carta da ONU e as Cartas Regionais (Interamericana, Europeia e Africana). No sistema global, também não há um tribunal específico para os direitos humanos, o cumprimento dos tratados é monitorado por Comitês específicos e por Relatórios do Conselho de Direitos Humanos da ONU; nos sistemas regionais, nos quais o cumprimento dos tratados é julgado por Cortes de Direitos Humanos, cujo acesso é feito mediante Estados partes ou indivíduos, indiretamente por meio da Comissão Interamericana da OEA, no caso americano, ou diretamente, como nos casos europeu (por meio do sistema do Conselho da Europa) e africano (ainda que sobre este pairem algumas dúvida, tendo em vista que o sistema de proteção ainda não entrou em funcionamento).
O contexto de Guerra Fria polarizou os direitos entre capitalistas e socialistas e, consequentemente, engessou um diálogo internacional mais amplo e produtivo, que só foi retomado com a dissolução da União Soviética. O fim do conflito ideológico abriu espaço para o debate de temas de interesse de toda sociedade internacional e que afetavam diretamente a noção absoluta de soberania estatal. Neste panorama de transformações acrescentou-se outra dimensão aos direitos humanos, abarcando os direitos considerados coletivos (com destinatários determinados, a coletividade) e os difusos (com destinatários indeterminados ou determináveis). A Declaração de Viena, as diversas conferências e tratados internacionais sobre os novos temas da agenda internacional e o aperfeiçoamento dos sistemas global e regionais de proteção dos direitos humanos conferiram à sociedade internacional uma falsa euforia e um horizonte otimista, no qual o fim das ideologias traria um valor consensual, o de proteger o ser humano.
Douzinas trata destas mudanças, ressaltando as distorções que as utopias e os conteúdos genéricos de conceitos universais podem sofrer (DOUZINAS, 2009: p.13):
“Quando os apologistas do pragmatismo decretam o fim da ideologia, da história ou da utopia, eles não assinalam o triunfo dos direitos chega quando eles perdem seu fim utópico (...). Os direitos humanos perdem seu fim, argumentava-se, quando deixam de ser o discurso e a prática da resistência contra a dominação e a opressão públicas e privadas para se transformar em instrumentos de política externa das grandes potências do momento, a ética de uma missão civilizatória contemporânea que espalha o capitalismo e a democracia nos rincões mais escuros do planeta.”
Ao evidenciar a influência que os Estados, ainda hodiernamente, exercem sobre os direitos humanos, Douzinas mostra que, apesar das diferentes dimensões históricas, a aplicação dos direitos na sociedade internacional não foi substancialmente alterada em comparação os momentos anteriores. A maior ou menor efetividade da proteção internacional dos direitos humanos dependeu das relações entre os Estados e dos interesses que as grandes potências ambicionavam a impor, o que é legitimado pela dinâmica particular que rege o Direito Internacional.
III- A peculiar lógica do sistema westfaliano do Direito Internacional
Entender a formação da ordem contemporânea perpassa a história política e normativa do sistema interestatal. Alain Pellet aponta a Reforma como precursor das ideias westfalianas (PELLET, 2003: p. 50): “O vínculo religioso quebrado pela Reforma é substituída por uma nova comunidade internacional alargada, fundada no humanismo do Renascimento.”.
A transição entre Idade Média e Idade Moderna é marcada pelo fim da influência da Igreja nas monarquias. Em meio à lógica feudal, desenvolvia-se o poder da burguesia, cujos interesses se contrapunham àqueles dos proprietários de terras. A concepção católica de mundo, que embasava o modo de produção feudal, já não atendia plenamente aos interesses comerciais da nova classe. Com isso, os Estados modernos foram sendo constituídos a partir da visão jurídica de mundo da burguesia, que secularizava a perspectiva teológica, libertando a monarquia da tutela do Papa. Engels e Kautsky ilustram a transformação (ENGELS e KAUTSKY, 2012: p.18):
“O dogma e o direito divino eram substituídos pelo direito humano, e a Igreja pelo Estado. As relações econômicas e sociais, anteriormente representadas como criações do dogma e da Igreja, porque esta as sancionava, agora se representam fundadas no direito e criadas pelo Estado.”
O suporte jurídico deste movimento de enfraquecimento do direito divino e de fortalecimento do poder político foi o postulado da soberania do Estado, que, segundo Jean Bodin, deveria ser uma prerrogativa uma e indivisível, perpétua e suprema, monopolizada pela monarca, e de reflexos internos (dentro das fronteiras territoriais) e externos (sem questionamentos por outros monarcas).
Inicialmente difundida na França, para resolver o conflito interno em torno da centralização, o postulado da soberania veio a constituir o pilar das relações internacionais após a Guerra dos Trinta Anos. Conflitos de cunho político e religioso que devastaram os reinos germânicos da parte central da Europa e que envolveram as grandes potências da época, ao final, foram marcados pela vitória dos países protestantes e pelo enfraquecimento da Igreja Católica. Os tratados que celebraram a paz, em 1648, firmados em Osnabrück e em Münster, duas cidades da região de Westfália, expressaram os valores que passariam a nortear a ordem jurídica interestatal.
O postulado da soberania seria a premissa maior da qual irradiariam dois princípios básicos, o da igualdade (jurídica, formal) entre os Estados e o da inexistência de um poder central que detivesse o monopólio do uso da força, a conhecida anarquia sistêmica. De acordo com este sistema, apenas os Estados seriam os detentores de direitos e de deveres, cujas fontes seriam oriunda do direito positivo (tratados internacionais) e do direito natural (costumes e princípios gerais de direito), devendo ter sua integridade respeitada por seus pares (não intervenção), a não ser em caso de conflito, no qual a guerra poderia ser considerada um meio legítimo de solução de controvérsias.
Com as transformações do sistema internacional, o direito internacional refletiu as modificações, sem ter sua essência alterada. A guerra foi vedada, deixando de ser a regra e passando a ser a exceção, autorizada apenas em casos de legítima defesa ou de segurança coletiva. A unicidade de sujeitos foi superada, havendo atualmente uma pluralidade de destinatários de direitos e deveres na esfera internacional, como as organizações internacionais e os indivíduos. Novos valores, como os protetivos da pessoa humana, ganharam relevância, aguçando, em uma perspectiva otimista, o potencial transformador do Direito Internacional para uma direção mais humanizada, como lecionada Cançado Trindade (TRINDADE, 2002: p. 1087):
“Isto se tornou possível na medida em que o Direito Internacional, a partir de meados do século XX, logrou desvencilhar-se das amarras do positivismo voluntarista que teve influência nefasta na disciplina e bloqueou por muito tempo sua evolução. O Direito não é estático, e tampouco opera no vácuo. Não há como deixar de tomar em conta os valores que formam o “Substratum” das normas jurídicas. O direito internacional superou o voluntarismo ao buscar a realização de “valores superiores comuns” premido pelas necessidades da comunidade internacional.”
Com fulcro nessa linha de raciocínio, Wagner Menezes resume o direito internacional contemporâneo, haja vista a relativa expansão de seu aparelho normativo, obtida no contexto de pós- Guerra Fria (MENEZES, 2008: p. 986):
“Se todo o direito é expressão da vida social de uma dada sociedade, na sociedade internacional contemporânea caracterizada pela multiplicidade de inter-relações e por uma dialética permanente entre o local e o global, o Direito Internacional pode ser caracterizado pela sua grande expansão e pelo envolvimento crescente de muitos temas, antes não adstritos à sua competência, com forte repercussão no plano interno dos Estados que compõem a comunidade internacional.”.
Ainda assim, em que pese o reconhecimento da difusão das normas internacionais, que reflete a emergência de valores importantes, como os direitos humanos, a lógica westfaliana continua vigente. Não é o indivíduo o centro do sistema jurídico, mas o Estado nacional, que interage entre seus pares por meio da coordenação e da horizontalidade das normas jurídicas. Esta manutenção da estrutura jurídica é que proporciona o levantamento frequente de indagações, feitas na vigência do positivismo clássico, sobre a juridicidade do direito internacional, quando se trata da efetivação das normas que regulam temas sensíveis, como os direitos humanos. Para podermos compreender a peculiaridade do cerne jurídico do Direito Internacional, é preciso, portanto, analisar o sistema interestatal capitalista, objeto de sua regulação.