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Excesso de jurisdição ou escassez de política?

Apontamentos sobre a jurisdição constitucional brasileira à luz da evolução histórica do Estado Democrático de Direito

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Agenda 07/09/2012 às 15:20

O sistema de jurisdição constitucional brasileiro supre o mau funcionamento do Poder Legislativo, mas sufoca o desenvolvimento de uma cultura política que solucione esse problema pela via natural

Resumo: A ascensão do direito foi um dos mais importantes vetores do desenvolvimento do estado moderno. A invenção do controle de constitucionalidade para efetivação dos direitos projetou o Judiciário e implicou um novo equilíbrio entre os poderes do estado. A redefinição dos espaços de atuação do direito e da política, para não amortecer a democracia, exige engenharia institucional que previna a supremacia judicial. O sistema de jurisdição constitucional brasileiro supre o mau funcionamento do Poder Legislativo, mas sufoca o desenvolvimento de uma cultura política que solucione esse problema pela via natural. Essa conjuntura impõe urgentes reforma judiciária e política que assegurem a efetividade concomitante da jurisdição constitucional e do sistema político.

Palavras-chave: Jurisdição Constitucional, Poder Judiciário, Poder Legislativo, Judicialização da Política, Controle de Constitucionalidade, Reforma Política, Reforma Judiciária.


I.       Introdução

O ativismo judicial é um dos fenômenos que mais interferem com a reconfiguração da democracia contemporânea. O alceamento do Poder Judiciário, por meio da jurisdição constitucional, à condição de protagonista no estado democrático de direito, que até então era basicamente determinado analiticamente pelas tensões entre o Executivo e o Legislativo, problematizou o conceito de democracia.

Segundo o esquema clássico de Montesquieu, a magistratura teria uma posição discreta no Estado Democrático.  Excluída da produção de normas, da gestão administrativa e, em regra, da responsabilização política pela via eleitoral, sua competência se limitaria à subsunção de fatos à lei.

Dada o anterior status de coadjuvante do Judiciário, o desenvolvimento da democracia moderna confundia-se, até pouco tempo, com o aperfeiçoamento dos mecanismos de representação política. A essa concepção correspondia um direito politicamente neutro, a demarcar, com fossos profundos, os limites de expansão do terceiro poder.

Essa realidade transformou-se profundamente com a ascensão do Poder Judiciário à condição de protagonista. Nas democracias maduras, o equilíbrio entre política e direito, com predomínio da primeira sobre o segundo, vem se rompendo progressivamente. Simultaneamente, assiste-se a uma intrigante aproximação entre esses dois polos.

Como refogem a um campo do conhecimento específico e ainda estão em curso, esses fenômenos desafiam dificílimas análises interdisciplinares e sincrônicas, capazes de dissecá-los e antecipar seus possíveis desdobramentos.

Nesse artigo, limito-me a indicar traços gerais do problema, examinar alguns de seus antecedentes e implicações à luz de teorias jurídicas contemporâneas. Em seguida, recupero o desenvolvimento histórico da jurisdição constitucional no Brasil, examino o último estágio desse processo e proponho medidas para aumentar a convergência do instituto com a evolução da democracia.


II.         Breve histórico do direito democrático

A convergência entre direito e democracia como esteios institucionais do estado é produto da modernidade e surgiu dos escombros do feudalismo.

A Paz de Vestfália, estabelecida em 1648 após um período de intensa beligerência entre as potências europeias, proscreveu o antigo sistema medieval, que atribuía autoridade suprema ao Império e ao Papado.

A soberania passou ser o princípio organizador das relações entre os estados, que passaram a se submeter a um sistema jurídico secularizado e regulado por tratados internacionais.

As potências europeias passaram por um processo de progressiva democratização interna. A racionalização do mundo, para usar a terminologia de Max Weber (1996, p. 489), removeu o fundamento transcendental para o poder do monarca e passou a exigir o governo do povo, com a profusão de ideias liberais e republicanos que decantavam em obras de pensadores como John Locke e Jean Jacques Rousseau.

Paulatinamente, a vida social passava a ser organizada a partir de legislação de fundo secular e racional. Ainda na Idade Média, São Tomás de Aquino já ressaltava as bases sociológicas da lei e de sua coercitividade:

Una persona privada no puede inducir eficazmente a la virtud: puede únicamente amonestar, pero si su amonestación no es atendida, carece de fuerza coactiva, fuerza que ha de tener, en cambio, la ley para que pueda inducir a la virtud con eficacia, según dice el Filósofo en X Ethic. Esta fuerza coactiva radica en el pueblo o en la persona pública que lo representa, que puede por ello infligir penas (…). Luego sólo el pueblo o su mandatario pueden legislar (1984, p. 707)[1].

Em o Leviatã, de 1651, o  fundamento de validade da ordem jurídica migra da investidura divina do rei para o consentimento dos súditos (Hobbes, 1977). O poder do governante, no estado hobbesiano, decorre do pacto em que os indivíduos se despojam da autoridade sobre a própria vida e transferem-na ao leviatã em troca da garantia de ordem e segurança.

Introduz-se na teoria política de vanguarda um princípio de responsabilidade, porque o monarca atua por delegação. E essa atuação se faz mediante lei, o que por si só restringe o arbítrio do monarca e promove o nivelamento dos súditos. O privilégio, o casuísmo e a incoerência são incompatíveis com a noção de estatuto.

John Locke (1998), sobretudo, em seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de 1689, aprofunda a natureza contratual da relação entre os súditos e o monarca.  Além disso, deduz direitos naturais que, por seu caráter transcendental, estavam indisponíveis aos contraentes. Portanto, com isso, restringe ainda mais a atuação do governante.

A Revolução Francesa e a Revolução Americana, que eclodiram da metade para o final do Século XVII, foram marcos importantes para o alinhamento entre as instituições políticas e os ideais liberais e republicanos latentes. Conformemente, aceleraram o estabelecimento e a proliferação de um direito democrático de bases racionais.

Ambas as revoluções concretizaram princípios catalogados por Montesquieu (1979), em Espírito das Leis, de 1748, entre eles o da separação dos poderes, talvez o principal suporte ideológico da Constituição dos Estados Unidos aprovada em 1787.

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Nessa obra seminal, o pensador francês afirma que as leis não são produtos do acaso, da expressão da vontade divina, nem do arbítrio do príncipe, mas emanam da razão e são desdobramentos de relações necessárias que decorrem da natureza das coisas. A teoria do estado incorpora, com maior ou menor medida, o direito secular e racional como baliza institucional da política.

No Século XIX, a Revolução Industrial desencadeia um processo de rápida racionalização da economia. O mercado se expandiu e revolucionou as relações sociais, como bem demonstra Karl Polanyi (2000). Grandes massas de trabalhadores rurais foram transformadas em proletários. As cidades cresceram e impuseram novos desafios aos governantes. A concorrência entre as potências se acirrou. Nesse novo contexto, os antigos arranjos imperiais se tornaram flagrantemente obsoletos.

As duas grandes guerras mundiais do Século XX aniquilaram, no mundo ocidental, os derradeiros restolhos da ordem feudal anterior (Hobsbawn, 2005). Foram banidos, já como desdobramento da primeira guerra (1914-1918), entre outros, os anacrônicos impérios austro-húngaro, russo, otomano e alemão. Na segunda, extirparam-se governos autoritários que se estabeleceram na Alemanha, na Itália, no Japão, no Brasil e em outros países na esteira de uma cultura política ainda plasmada no passado imperial.

As potências democráticas foram claramente grandes vencedoras desse sombrio período da história da humanidade, o que se tornou mais evidente quando, em 1991, ruiu o império soviético. Contudo, havia no pós guerra certa desilusão com a democracia porque as instituições representativas, regidas por eleições, como os parlamentos, não impediram a ascensão das ditaduras que arrastaram o mundo para a conflagração global em 1939, nem as atrocidades que foram perpetradas no conflito.

Surgiu daí um consenso sobre a necessidade de se estabelecer uma ordem jurídica centrada nos direitos humanos, com efetividade assegurada por máquina judicial eficiente e encimada por uma corte constitucional ativa (SCHOR, 2008, pp. 264 e 265).

Como consequência, no pós-guerra o Poder Judiciário começa a se consolidar como guardião da constituição. Mesmo a notável Suprema Corte dos Estados Unidos, que praticamente inventou o controle de constitucionalidade em 1803, só se firma como garante dos direitos e garantias e individuais após 1945 (SCHOR, 2008, p. 262).


III.        Consolidação do direito racional e advento da jurisdição constitucional

A ascensão do Poder Judiciário após a Segunda Guerra balizou-se também no desenvolvimento de teorias que promoveram a tecnicização do direito. O positivismo jurídico, do final do Século XIX, já expulsara os resquícios de magia da ciência jurídica e impôs critérios para a afirmação científica do direito, como a definição de seu objeto específico.

Hans Kelsen propôs e delineou, a partir de 1911, uma ciência do direito cujo objeto não seria produto da vontade, mas da razão (Silva, 2011). Como corolário, as decisões judiciais seriam simples deduções normativas resultantes de operações intelectuais. Ademais, a jurisdição constitucional seria uma atividade de cassação, nunca de criação.

O estabelecimento do direito seria, no aspecto conceitual, função da Ciência Jurídica, e no aspecto material, função da política. O controle da política pelo direito seria função de um sistema racionalmente estruturado.

Caberia ao Judiciário velar pela manutenção desse arcabouço aplicando o direito ao caso concreto, com margens mínimas de criatividade normativa. Esse modelo de democracia constitucional pressupunha, assim, o Poder Judiciário não poderia inovar os fundamentos da ordem jurídica.

No debate entre Carl Schmitt e Hans Kelsen sobre a titularidade da função de guardião da constituição (SCHMITT; KELSEN, 2009), essa condição refratária à política do Poder Judiciário não estava em questão. Cada um dos pensadores tinha uma visão diferente sobre como lidar com o risco de politização do Judiciário.

No trecho abaixo, Kelsen sintetiza e rebate o argumento de Schmitt contra a jurisdição constitucional, mas concorda com ele sobre os riscos que essa instituição pode representar à democracia:

Con todo, no se puede negar que la pregunta lanzada por Carl Schmitt acerca de los «limites» de la jurisdicción, en general, y de la jurisdicción constitucional en particular, es totalmente legítima. Sólo que dicha pregunta, en este contexto, no debe plantearse acerca del concepto de jurisdicción, sino acerca de la mejor ordenación de su función de acuerdo a sus fines, y que ambos os problemas deben mantenerse claramente separados. Si desea restringir el poder de los Tribunales y con ello el carácter político de su función – tendencia ésta que aparece especialmente en la monarquía constitucional, pero que puede observarse en la república democrática –, entonces debe limitar-se lo más posible el espacio de la libre discrecionalidad que las leyes conceden en su aplicación, en especial aquellas con las que se establece el contenido de las futuras leyes, como las determinaciones de los derechos fundamentales y otros semejantes, no deben ser formuladas en términos demasiado generales, no deben emplear terminología difusa, como «libertad», «igualdad», «justicia», etc. De lo contrario, existe el peligro de un desplazamiento del poder del Parlamento – no previsto por la Constitución – y desde el punto de vista político, sumamente inoportuno, hacia una instancia ajena a él, «que puede ser la expresión de fuerzas políticas totalmente diversas a las representadas por el Parlamento». Pero éste no es un problema específico de la jurisdicción constitucional; es asimismo válido para las relaciones entre la ley e los Tribunales civiles, penales y administrativos que las aplican. Este es el antiguo dilema platónico: politeia o nomoi, rey-juez o rey-legislador (SCHMITT; KELSEN, 2009, pp. 319-322)[2].

Nem Schmitt nem Kelsen admitia a confusão entre o poder de julgar e poder de legislar, essa cisão profunda que foi introjetada no esquema básico da democracia moderna.

O jurista austríaco julgava que a designação de uma corte como guardião da constituição era compatível com a necessária neutralidade política da ordem jurídica. O arbítrio da magistratura seria coibido pelo formalismo e pela sistematicidade do direito.

O filósofo alemão pensava o contrário. Para ele, as amarras teóricas estabelecidas por Kelsen não seriam suficientes para travar a potencial politização do direito com a atribuição a uma corte a palavra final sobre o teor da constituição. Ambos, concordavam, porém, com a premissa de que o Judiciário deveria se restringir à aplicação de normas heterônomas, como alinhavado no esquema clássico de Montesquieu.

Montesquieu enunciara, assim, esse princípio de separação:

Il n’y a point encore de liberté si la puissance de juger n’est pas séparée de la puissance législative et de l’exécutrice. Si ele était jointe à la puissance législative, le pouvoir sur la vie et la liberte des citoyens serait arbitraire: car le juge serait législateur. Si elle était jointe à la puissance exécutrice, le juge pourrait avoir la force d’un oppresseur (Montesquieu, 1875-79. p. 426)[3].

O rey-legislador tradicionalmente é representante imediato do povo e o rey-juiz, mero órgão de execução do estado. O primeiro age conforme a vontade do povo, ao passo que o segundo apenas aplica o ato que resultou da vontade do povo. Assim, a atuação deste não está fundada na vontade, mas no mero discernimento.

A mediação das relações entre governo e governados por meio da lei foi uma condição fundamental para o desenvolvimento da democracia. A lei, por sua generalidade, aboliu o casuísmo e nivelou os cidadãos. O ativismo judicial, por enfraquecer a lei, pode representar perigoso retrocesso social. 

A democracia pressupõe a construção da lei por meio do próprio povo, por meios de representantes eleitos. Kelsen afirma que é impossível anular a discordância entre a vontade do indivíduo e a vontade da ordem estatal a que se submete, mas lembra que essa discordância é minimizada num estado democrático (KELSEN, 200, pp. 32-33). É essa liberdade política aproximada a única possível no mundo moderno.  

O ativismo judicial pode corromper a noção de democracia até então vigente ou transformar essa noção profundamente, estabelecendo um novo tipo de liberdade política, factualmente muito mais estreita que a predominante na modernidade.

John Hart Ely (1980, p. 135), acertadamente, afirma que o dever de representação que está no cerne do sistema político americano requer mais que simplesmente facultar voz e voto às minorias. A jurisdição constitucional, porém, praticamente se universalizou por ter-se confirmado, na prática, como instrumento importante moderação do processo decisório presidido pelo princípio majoritário. A jurisdição constitucional se firmou com importante incremento do jogo democrático.

A maior liberdade de interpretação constitucional aos juízes reduz, porém, o grau de convergência entre a vontade do estado e a vontade do povo. A compreensão da magistratura do que sejam os direitos fundamentais, por exemplo, pode reduzir a um mínimo o espaço de atuação da legislatura.

Miguel Shor (2008, p. 286) aponta que a relação entre democracia e jurisdição constitucional divide os acadêmicos em dois grupos: os otimistas e os pessimistas. Os otimistas ressaltariam a afinidade entre democracia e a jurisdição constitucional, principalmente em processos de transição democrática como os observados após Segunda Guerra na Alemanha e na África do Sul após o apartheid. A jurisdição constitucional favoreceria a confiança na efetividade da constituição em democracias recém-instauradas. Os pessimistas, ao contrário, apontam intervenções da jurisdição constitucional dificultaram a resolução de problemas de ação coletiva sobretudo em democracias maduras.

Ronald Dworkin, que defende a ideia que a Constituição comporta e exige uma leitura moral, que assegure sua constante atualização pelas cortes, seria classificado por Shor entre os otimistas.  Dworkin, porém, não abre a constituição para interpretações segundo as convicções pessoais dos juízes. Para ele, a exigência de integridade constitucional exige que juízos morais abstratos deduzidos da constituição estejam em linha de coerência com o desenho estrutural desta (DWORKIN, 2006, p 15). Portanto, os juízes poderiam inovar a legislação desde que observem esse parâmetro.

J. Harvie Wilkinson III (2012, p. 22), que poderia ser incluído entre os pessimistas, não concorda com essa abertura do texto constitucional. Afirma que, a não ser que haja falhas no processo político, é desejável que o parlamento – e não as cortes – atualizem as normas sociais. Em sua opinião, a magistratura tem menos expertise para acessar o exato conteúdo dos valores sociais e para avaliar circunstâncias novas e reagir a elas. Além disso, a intervenção judicial poderia obstruir processos que são “naturais, estimulantes e necessários ao desenvolvimento espírito democrático”.

Interessante notar que, escrevendo em 1931, Carl Schmitt não censura a atuação da Suprema Corte americana:

El Tribunal Supremo americano es algo muy distinto de un Staatsgerichtshof. Con una clara consciencia de su carácter como instancia processal, limítase a fallar determinados litigios (real, actual «case» or «controversy» of «judiciary nature»). Teniendo en cuenta su strictly judicial function se abstiene de adoptar criterio político o legislativo, y siquiera pretende ser Tribunal contencioso-administrativo (SCHMITT; KELSEN, 2009, p. 25)[4].

O controle de constitucionalidade difuso, com poucas e esparsas intervenções judiciais na retificação da legislação, não configuraria risco à usurpação da função legislativa do estado. Não sabemos, ao certo, se Schmitt teria a mesma opinião sobre a Suprema Corte americana mais ativista do pós-guerra. O fato é que se opôs frontalmente contra a adoção de cortes constitucionais a que se atribuísse a palavra final sobre sensíveis questões constitucionais.

Contudo, a posição de Kelsen, favorável à jurisdição constitucional, passou a prevalecer, no período pós-guerra. Vários países europeus instituíram cortes constitucionais a partir de então para funcionarem como intérpretes últimos da Constituição.

Portanto, refraseando Kelsen, o problema não é a jurisdição constitucional em si, mas a sua conformação institucional. A teoria kelseniana teve como vetor constante a racionalização do direito e criava balizas formais, conceituais e estruturais para confinar o arbítrio dos juízes.

Essa teoria desenvolveu-se em três fases distintas (Paulson, 1998, pp. xxiii-xxvii): a fase do construtivismo crítico (1911-1921), a fase clássica (1921-1960) e a fase cética (1960-1973).

A primeira fase corresponde ao período em que Kelsen constroi seus principais conceitos e preocupa-se, fundamentalmente, com a afirmação da Ciência do Direito como disciplina normativa. Nas palavras de Paulson, o autor procurava "to stablish legal science as a ‘normative disciple" (Paulson, 1998, p. xxiv).

A diretriz do pensamento de Kelsen, nesse introito, era destacar os elementos próprios da análise jurídica. Definiu-se que o discrímen do objeto da Ciência do Direito caráter normativo peculiar.

A ciência jurídica rudimentar que aparece nessas formulações iniciais de Kelsen tinha acentuado caráter descritivo e estático. A preocupação era definir o que é o Direito e não como funciona o Direito.

Na segunda fase, Kelsen formula e consolida a Teoria Pura do Direito. No esforço para sistematizar o Direito e compreender seu funcionamento, incorpora a doutrina da estrutura hierárquica de Adolf Merkl, conhecida como pirâmide normativa.

Essa doutrina apresenta o Direito em processo dinâmico no qual recria a si mesmo de forma ininterrupta. Normas inferiores são determinadas por normas superiores. Sobressai desse sistema dinâmico a premissa básica de que uma norma é sempre criada por outra.

Kelsen vale-se na Teoria Pura do princípio da imputação, de matriz kantiana, estruturar a unidade básica do Direito, a norma, segundo a fórmula se a, deve ser b, em que a é, em termos gerais, é o fato sobre o qual incide a norma e b a sanção decorrente. O princípio da imputação, segundo o qual funciona o Direito, é um simulacro do princípio da causalidade, segundo o qual funciona a natureza.

 Na última fase, ele não chegou a fechar uma teoria, mas adota princípios que sinalizam uma abertura do direito. No início, Kelsen insistia em depurar o direito de qualquer elemento de vontade. A norma fundamental era, até então, uma completa abstração, que poderia ter sua existência aferida única e exclusivamente por operações intelectuais. Todas as demais normas do sistema eram desdobramentos dessa norma fundamental. Do ponto de vista do cientista, o direito era um esquema normativo fechado.

Em sua Teoria Geral do Direito e do Estado, publicada já em seu exílio nos Estados Unidos, o jurista já começava a admitir a criação de normas fora do processo político formal. O direito kelseniano não era mais um monólito racional. Na obra póstuma Teoria Geral das Normas, de 1972, Kelsen atribui à norma fundamental a natureza de vontade fictícia, com o que passa a acentuar a natureza. O próprio Direito, na fase cética, é reconhecido como uma ficção, em vez de construção teórica lógica, absolutamente sistemática e pura.

Kelsen assume, como David Hume assumiria, que o Direito lógico e pura é uma crença, um imperativo, um dever ser, que deveria ser perseguido a todo custo, mas que jamais seria alcançado. A maior suscetibilidade do direito que decorre desse avanço teórico implicava mais riscos. Em compensação, tornava o objeto da Ciência Jurídica mais flexível e reajustável às necessidades de um mundo em rápida transformação.

Vislumbra-se aí que Kelsen, o maior jurista do Século XX, falhou em construir barreiras teóricas para conter o arbítrio dos juízes e tornar a jurisdição constitucional inofensiva à política democrática. A jurisdição constitucional se firmou como instituição indispensável na maioria dos estados contemporâneos, mas permanece, com fator de instabilidade e insegurança, um risco que maior parte sociedades está disposta a correr.

Na seção seguinte, analiso, brevemente, o desenvolvimento da jurisdição constitucional no Brasil, sobretudo após a Constituição de 1988.

Sobre o autor
Edvaldo Fernandes da Silva

Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, da Universidade Cândido Mendes (IUPERJ-UCAM), especialista em Direito Tributário pela Universidade Católica de Brasília (UCB), bacharel em Direito e em Comunicação Social-Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professor de Direito Tributário em nível de graduação e pós-graduação no Centro Universitário de Brasília (UniCeub); e de Pós-Graduação em Ciência Política no Instituto Legislativo Brasileiro (ILB) e advogado do Senado Federal (de carreira).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Edvaldo Fernandes. Excesso de jurisdição ou escassez de política?: Apontamentos sobre a jurisdição constitucional brasileira à luz da evolução histórica do Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3355, 7 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22569. Acesso em: 23 dez. 2024.

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