Sumário: 1. Introdução; 2. O princípio da sustentabilidade; 3. A tutela do direito ambiental; 4. Considerações sobre o direito à moradia; 5. A aplicação de princípios para a solução da controvérsia; 6. Conclusão - Bibliografia
1. Introdução.
A existência de cidades sustentáveis pressupõe a promoção das funções sociais de moradia, trabalho, circulação e lazer com a observância do princípio da sustentabilidade.
Essa conjugação é bastante complexa e, por vezes, a ausência de garantia plena das funções sociais da cidade resulta em prejuízo à sustentabilidade.Exemplo disso é a crescente tensão existente entre a defesa da moradia e do meio ambiente, surgida em razão da ocupação irregular de áreas de proteção e de preservação ambiental, por pessoas que não dispõem de outra opçãode moradia.
Tanto a moradia digna como o meio ambiente saudável são garantias constitucionais. Nenhuma delas pode sobrepor-se à outra e, muito menos, ser exercida em prejuízo da outra. A Constituição Federal estabeleceu, portanto, um equilíbrio.
Ocorre que esse equilíbrio não se reflete nas políticas públicas e tampouco na legislação infraconstitucional. Com efeito, a proteção ao meio ambiente conta hoje com um grande aparato legislativo e administrativo, acompanhado de severas sanções por descumprimento, inclusive na esfera criminal. Já a moradia a toda a população é tratada muito mais como um objetivo do que como uma garantia constitucional, objetivo facilmente e impunemente postergado, por argumentos relacionados a questões orçamentárias.
Diante dessa realidade, uma verificação mais apressada pode induzir ao raciocínio de que a referida tensão entre moradia e meio ambiente deva ser resolvida em benefício da causa ecológica. Mas a complexidade dessa questão requer análise mais detida, sob pena do agravamento do déficit habitacional e da desigualdade social, com o consequente distanciamento do ideal da cidade sustentável.
2. O princípio da sustentabilidade.
Quando se fala em sustentabilidade, normalmente invoca-se a proteção ao meio ambiente. Mas a realidade é que sustentabilidade tem acepção mais ampla, que não se restringe ao respeito aos recursos naturais. Ela espalha-se pelas diversas esferas da vida, alcançando especialmente as políticas públicas e o respeito aos direitos fundamentais. Nas palavras de JUAREZ FREITAS:
“é o princípio constitucional que determina, independentemente de regulamentação legal, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente de modo preventivo e precavido, no presente e no futuro, o direito ao bem-estar físico, psíquico e espiritual, em consonância homeostática com o bem de todos.”[1]
Isso evidencia que a sustentabilidade não existe sem a inclusão social e sem o respeito aos direitos fundamentais.Justamente por ser ampla e transdisciplinar é que, para muitos autores, ela constitui um princípio, que se realiza por meio de ações concatenadas, de mudanças de atitude, de escolhas e de paradigmas em esferas diversas.
É evidente que a proteção dos recursos naturais tem especial relevância; o que se coloca é que ela não deve nunca vir dissociada do cuidado com as demais garantias constitucionais. Em outras palavras, a proteção isolada do meio ambiente, por exemplocom a remoção de famílias de suas moradias sem o oferecimento de locais mais adequados, não encontra fundamento no princípio da sustentabilidade. Não há como se falar em bemestar físico, psíquico e espiritual e muito menos em assegurar o futuro sem quese garanta, no presente, o mínimo existencial a toda a população – aí naturalmente incluída a moradia adequada.
Por essa razão, promover a sustentabilidade pressupõe compreendê-la em seu real sentido, que não se resume ao aspecto ecológico, mas abrange a redução da desigualdade social e sobretudo a garantia do mínimo existencial a toda a população.
3. A tutela do Direito Ambiental.
Muito se discute, na doutrina moderna, acerca do bem jurídico tutelado pelo Direito Ambiental. Há autores de peso que apontam para o valor intrínseco da natureza, independentemente das necessidades humanas. Outros, igualmente qualificados, apresentam uma abordagem antropocêntrica, no sentido de que a defesa do meio ambiente tenha por objetivo último a sobrevivência da humanidade e a garantia do uso continuado dos recursos naturais.
Guilherme José Purvin de Figueiredo enfrentou essa questão:
“O que, efetivamente, não faz sentido afirmar é que o Direito Ambiental teria por objeto apenas as normas atinentes à proteção da fauna e da flora. Este ramo do Direito hoje não é mais um Direito pura e simplesmente ecológico (a não ser que queiramos dar ao termo ‘ecológico’ uma concepção vasta o suficiente para abarcar também as manifestações culturais), pois, na medida em que seus institutos foram desenvolvidos, constatou-se ser imprescindível aproximá-lo da tutela do ser humano (como parte integrante do meio ambiente). Atualmente, o Direito Ambiental também estuda as normas e os princípios que regulam a proteção de ambientes construídos ou artificiais, como o são o meio ambiente urbano e rural, o meio ambiente do trabalho e o meio ambiente cultural.”[2]
O debate é de crucial relevância para a reflexão acerca da tensão existente entre as garantias constitucionais do meio ambiente saudável e da moradia. Isto porque a defesa do meio ambiente, feita de maneira independente das necessidades do homem, aniquilaria a possibilidade de regularização fundiária em áreas de preservação ou de proteção permanente.
No ordenamento jurídico brasileiro, parece claro o protagonismo do ser humano. A Constituição Federal, no art. 225, ao tratar do meio ambiente, estabeleceu que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Ao qualificar o meio ambiente ecologicamente equilibrado como bem de uso comum do povo e como direito de todos, o texto efetivamente indica o homem como beneficiário dessa garantia constitucional.
A legislação infraconstitucional também oferece contribuições valiosas para essa reflexão. A Lei nº 11.977/2009, que instituiu o Programa Minha Casa Minha Vida, prevê a possibilidade de regularização fundiária de interesse social em Áreas de Preservação Permanente, ocupadas até 31 de dezembro de 2007 e inseridas em área urbana consolidada, desde que estudo técnico comprove que esta intervenção implica a melhoria das condições ambientais em relação à situação de ocupação irregular anterior.[3]Verifica-se, portanto, alguma aceitação de ocupação de áreas de preservação permanente. É bem verdade que essa aceitação está condicionada à demonstração de que não haverá prejuízo ainda maior ao meio ambiente, mas de qualquer forma a lei não cogitou da desocupação pura e simples e tampouco da exigência de recomposição integral do meio ambiente ou da prova de sua inviabilidade.
Nenhum desses exemplos compromete ou esvazia o debate doutrinário mencionado no início do capítulo, até porque é vasta a possibilidade de interpretação da lei e não se tem a pretensão de esgotá-la nesta oportunidade. O que se pode afirmar, desde logo, é que o ordenamento jurídico brasileiro, mesmo quando trata especificamente do direito ambiental, não sustenta a proteção ecológica com prejuízo ao mínimo existencial.
4. Considerações sobre o direito à moradia.
A moradia digna é uma garantia fundamental, de eficácia plena e autoaplicável, da categoria dos direitos humanos. Além de contar com proteção constitucional específica, ela é intrínseca ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Apesar disso, as cidades brasileiras apresentam consideráveis índices de déficit habitacional, sem perspectiva de solução em curto prazo. Não existe a obrigatoriedade de vinculação de receitas orçamentárias mínimas para as políticas habitacionais, o que deixa o administrador público livre para privilegiar outros investimentos, muitos deles sem nenhuma relação com os direitos fundamentais.
A falta de planejamento urbano adequado abre espaço para o mercado imobiliário, que, com as suas práticas especulativas, direta ou indiretamente provoca a expulsão da população dos seus locais de moradia. Como consequência, a população socialmente vulnerável abriga-se em regiões cada vez mais distantes dos centros e dos seus locais de trabalho e, em última instância, em locais de risco e de preservação ou proteção ambiental, que não interessam ao mercado imobiliário.
Evidente, portanto, que a ocupação das áreas de preservação ou proteção ambiental não se dá de maneira voluntária, mas na maior parte das vezes como única possibilidade de moradia para aqueles que não podem arcar com os custos decorrentes da especulação imobiliária.
O problema do déficit habitacional está, portanto, intrinsecamente relacionado à falta de acesso à terra pela população mais carente:
“O que se sabe e se tem certeza é que para o acesso à moradia adequada é necessário o acesso à terra urbana, que, nesse país, historicamente, não ocorre de maneira equânime, impondo a um determinado segmento social a inacessibilidade a tal bem, perpetuando o desrespeito aos direitos dos que não têm como prover sua moradia e de sua família. A democratização do acesso à terra urbana e também à propriedade urbana é sem dúvida uma medida importante para a realização do direito à moradia.”[4]
Frente a essas dificuldades, os administradores públicos apresentam o argumento da reserva do possível. Sem receita suficiente, não têm condições de dar concretude à garantia constitucional de moradia digna a toda a população, conforme sintetiza ELZA CANUTO:
“A reserva do possível representa, portanto, um limite fático e jurídico à concretização judicial dos direitos sociais e tem sido utilizada para impedir e intervenção judicial em situações que exigem gastos orçamentários. Nessa linha de raciocínio, o Poder Público não estaria obrigado a conceder o direito e, sim, a criar meios que possibilitem o seu alcance. A efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais estaria dentro da reserva do possível, em razão da sua dependência de recursos econômicos.”[5]
Ocorre que a reserva do possível não é oponível à realização do mínimo existencial, que inclui a garantia de moradia digna. O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar um caso de falta de vagas em creches, deparando-se,portanto,com um conflito entre a efetivação de direitos fundamentais e os limites orçamentários, decidiu:
“a reserva do possível não pode ser oposta à efetivação dos Direitos Fundamentais, já que, quanto a estes, não cabe ao administrador público preteri-los em suas escolhas. Nem mesmo a vontade da maioria pode tratar tais direitos como secundários. Isso, porque a democracia não se restringe na vontade da maioria. O princípio do majoritário é apenas um instrumento no processo democrático, mas este não se resume àquele. Democracia é, além da vontade da maioria, a realização dos direitos fundamentais.
(...)
Com isso, observa-se que a realização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que depende unicamente da vontade política. Aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do administrador. Não é por outra razão que se afirma que a reserva do possível não é oponível à realização do mínimo existencial.”[6]
Como se vê, o administrador público não tem margem de discricionariedade para escolher entre garantias constitucionais. Por essa razão, não há argumento legítimo que autorize a sua inércia diante dos elevados índices de déficit habitacional verificados em nossas cidades.
Apesar disso, não há dúvida de que a ausência de moradia adequada para toda a população remete à omissão dos gestores públicos, seja em razão da falta ou insuficiência de reserva de recursos orçamentários, ou ainda pela ausência de políticas eficazes de redução da desigualdade social.
Partindo dessa premissa, não há como aceitar,nem mesmo sob o argumento da proteção ou preservação ambiental, o desalojamento de famílias dos locais que constituem sua única e precária opção de moradia, sem apresentar alternativa adequada e viável para uma vida digna.
5. A aplicação de princípios para a solução da controvérsia.
A solução para a controvérsia travada entre duas garantias constitucionais pode ser buscada nos princípios gerais de direito e não comporta fórmula única, devendo ser apurada mediante a análise concreta.
De fato, é necessário que se perquira, diante de cada caso, qual solução atende em maior medida uma garantia constitucional, com menor vulneração da outra. Pode-se aqui falar em proporcionalidade em sentido estrito, como amplo dever de ponderação de bens, princípio e valores.
Também vale referência ao princípio da razoabilidade, que mereceu valioso estudo por parte de HUMBERTO ÁVILA:
“Relativamente à razoabilidade, dentre tantas acepções, três se destacam. Primeiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral. Segundo, a razoabilidade é empregada como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo ao qual elas fazem referência, seja reclamando a existência de um suporte empírico adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir. Terceiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação de equivalência entre duas grandezas.”[7]
Nesse sentido, cabe afirmar que a aplicação irrestrita das normas gerais de direito ambiental só seria cabível caso não colidisse com a garantia de moradia adequada a toda a população. A hipótese de déficit habitacional constitui uma especificidade que pode comprometer a aplicabilidade da norma geral, exigindo, portanto, um exercício de ponderação.
Outros princípios, que comportam até análise mais objetiva, também poderão auxiliar na solução do conflito. Sem dúvida deverão ser observados os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da moralidade e da eficiência.
Entretanto, é no princípio da sustentabilidade que a questão deverá ter resposta definitiva, uma vez que ele tem por conteúdo justamente o equilíbrio entre as garantias constitucionais, não implicando necessariamente na adoção da medida ecológica ótima, mas sim da medida que preserve e proteja os recursos naturais, sem ignorar as necessidades humanas e sobretudo o mínimo existencial.
6. Conclusão.
Em uma cidade que se pretenda sustentável,nem sempre haverá a aplicação imediata, ilimitada e irrestrita da legislação ambiental. Nas situações em que a proteção ambiental colidir com o respeito ao mínimo existencial, o próprio princípio da sustentabilidade exige que seja feito um juízo de ponderação.
Por outro lado, ainda que a proteção do direito à moradia não conte com aparato administrativo, legal e burocrático semelhante ao da proteção ambiental, é um direito humano fundamental, de eficácia plena e autoaplicável. Sua inobservância para parte da população significa uma especificidade que interfere na aplicação das normas de direito ambiental.
Assim, a tensão existente entre as garantias constitucionais da moradia e do meio ambiente saudável não se resolve, aprioristicamente, em benefício de nenhuma delas. A solução dessa tensão, no caso concreto, sempre deverá ter por objetivo a promoção, na maior medida possível, da sustentabilidade, que não se resume à causa ecológica, mas abrange todos os requisitos de uma vida digna e saudável.
Bibliografia
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8. ed. São Paulo, Malheiros, 2.008.
BOSSELMANN, Klaus. Direitos Humanos, Meio Ambiente e Sustentabilidade. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Estado Socioambiental e Direitos Fundamentais. Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2.010. p. 73-109.
CANUTO, Elza Maria Alves. Direito à Moradia Urbana. Belo Horizonte, Fórum, 2.010.
DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório. Direito Urbanístico e Ambiental. Belo Horizonte, Fórum, 2.011.
DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de Direito Urbanístico. São Paulo, Manole, 2.004.
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A propriedade no Direito Ambiental. 4ª. ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2.010.
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade. Direito ao Futuro. Belo Horizonte, Fórum, 2.011
GAZOLA, Patrícia Marques. Concretização do direito à moradia digna. Teoria e prática. Belo Horizonte, Fórum, 2.008
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 18. ed. São Paulo, Malheiros, 2.010.
MELO, Lígia. Direito à Moradia no Brasil. Belo Horizonte, Fórum, 2.010.
SILVA, José Afonso da.Direito Urbanístico Brasileiro. 6. ed. São Paulo, Malheiros, 2.010.
Notas
[1] FREITAS, Juarez. Sustentabilidade. Direito ao Futuro. Belo Horizonte, Fórum, 2.011, pág. 51
[2] FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A propriedade no Direito Ambiental. 4ª. ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2.010, pág. 42.
[3] Art. 54, §1º
[4]MELO, Lígia. Direito à Moradia no Brasil. Belo Horizonte, Fórum, 2.010, pág. 53.
[5] CANUTO, Elza Maria Alves. Direito à Moradia Urbana. Belo Horizonte, Fórum, 2.010, pág. 208.
[6] STJ, RECURSO ESPECIAL Nº 1.185.474 - SC (2010/0048628-4), rel. Min. Humberto Martins
[7]ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8. ed. São Paulo, Malheiros, 2.008, pág. 152.