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Estado K.: sempre o Urso Branco

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Não bata o portão

No pequeno conto “A batida no portão da propriedade”, Kafka trabalhou basicamente com sujeitos ocultos e ocupou-se, como de hábito, de ser um narrador ácido e irônico. Sua queixa, tal qual no Processo e Na Colônia Penal, dirige-se contra a mesquinharia humana, revelada pelo “sistema” e atinge o epicentro do Estado de Direito: “o sagrado direito da propriedade privada”. No conto, dois irmãos (irmão e irmã) caminham distraidamente de volta para casa quando a moça, “por travessura ou distração”, resvalou a mão no portão de uma residência (ou apenas pensou que o fez). No ato seguinte, moradores próximos dali, coisa de cem metros adiante, já lhes apontavam as mãos em alerta ou em represália quanto ao absurdo ato praticado: “Os proprietários vão nos denunciar, logo terá início o inquérito” (Kafka, 2002, p. 92).

Como sucedâneo disso, outro fenômeno jurídico indicado por Kafka com absoluta estranheza, o irmão seria processado por cumplicidade - afinal, andava ao lado da suposta “criminosa”. Assim, mal se encerrou essa admoestação dos camponeses e todos logo olharam para o interior da dita propriedade violada em sua honra. Dali, em instantes, o Estado já se punha em andamento e vinha direto na direção do grupo: “A poeira ergueu-se, cobrindo tudo, só as pontas das altas lanças reluziram. E, mal tinha desaparecido do pátio, a tropa parecia ter mudado o rumo dos cavalos avançando em nossa direção” (p. 93). Neste breve ínterim, o irmão (cúmplice do bárbaro atentado) conseguira convencer a irmã a ir para casa trocar de roupas para receber os insignes cavalheiros. Sem descer de suas montarias, indagaram pela moça e o irmão (cúmplice do ato abjeto) prontamente disse-lhes que se ausentara. Desse modo, foi obrigado a entrar no “saguão dos camponeses” e quem primeiro lhe recebeu foi o próprio juiz, e que também vinha montado com a tropa, dizendo-lhe laconicamente: “— Este homem me dá pena” (p. 93.).

O irmão, que não era tolo, logo atinou para os verdadeiros fatos e conseqüências: “Estava acima de qualquer dúvida, porém, que com isso ele não se referia ao meu estado atual e sim àquilo que iria acontecer comigo. A sala era mais parecida com uma cela de prisão do que com um salão de hóspedes de camponeses” (pp. 93-94). Com isto, o narrador pôs termo aos objetivos, meios e fins do direito sob a tutela da propriedade: “Será que eu ainda poderia fruir outro ar que não fosse o da prisão? Essa é a grande pergunta, ou antes: seria, se eu ainda tivesse qualquer perspectiva de ser libertado” (p. 94). A esta sensação - a esse misto de impotência, incoerência, absurdo e a certeza mais do que absoluta de que ocorrem e ocorrerão tais fatalidades - chamado de Estado K. Quem duvida dessa “finalidade do direito”, basta-lhe perguntar ao senhor das leis porque alguém permanece preso por “furtar uma margarina”. Também encontraria a resposta ao porquê de um menino ser morto a tiros por “apanhar frutas” no pomar do vizinho. De sobra, ainda entenderia porque apenas um por cento dos criminosos de colarinho branco é julgado e condenado. Se falta assistência judiciária aos presos do Brasil todo, e mais especificamente aos do Urso Branco, é porque falta Justiça. A ausência do amplo direito de defesa, ao devido processo legal indica o estágio civilizatório que o próprio Estado de Direito se encontra nesta região do país. O mais grave, entretanto, é que as fantasmagorias de Kafka são absolutamente reais.


O Processo no bojo do não-direito

É evidente que essas conjecturas não foram expressas por Kafka – ao menos não de forma tão clara –, mas foram os sentimentos gerados neste leitor pela leitura de seus contos, e pela sensação de que o autor realmente combatia o nazismo. Sob esse ângulo, por fim, o Estado Jurídico é aquela instituição pública que reúne instrumentos de combate ao pensamento nazi-fascista. Porém, mesmo diante dessa discussão histórica que nos transportou do Renascimento ao Século XXI, o caminho mais tradicional para se inserir a discussão sobre os procedimentos da Justiça seria tratar/relacionar a questão processual com o núcleo do Estado de Direito. No texto, entretanto, preferimos entender o processo como (con)texto social, nexo ou liame da vida social com o mundo jurídico, isto é, como contingência social de implicação jurídica. No entanto, esse liame será retomado mais ao final do trabalho, porque iniciamos o debate por uma relação mais ampla entre Direito e sociedade, e processo e cultura. Em poucas palavras, o processo é um rito social de iniciação jurídica, no dizer de Assier-Andrieu:

O processo é o teatro institucional encarregado de resolver a equação formulada pela cultura jurídica ocidental entre liberdade e responsabilidade (...) o ritual judiciário é, assim como todo ritual, um meio de mostrar ao sujeito que ele pertence a uma cultura em comum (...) Esse corpus é a referência normativa em cujo nome se julga, ou seja, o conteúdo cultural que se trata de inculcar a fim de introduzir de novo o culpado, em virtude de sua culpabilidade, na família dos sujeitos cujas relações são orquestradas pelas instituições (2000, pp. 302-303).

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O processo seria o trato ou dramaturgia em que se representa a Justiça? Dessa forma, diz-se que o processo é a porta de entrada para o Estado Democrático de Direito: o conjunto das instituições regulares que sustentam a fase atual do Estado Moderno6. Sob esse curso, na ordem jurídica requerida pelo Estado Democrático de Direito, o processo é um meio de se alcançar todo o Direito7 e deste chegar ao núcleo, ao âmago da Justiça. Aqui é cabível a lembrança de O Processo de Kafka (1997) e a situação em que seu personagem vagueia em meio ao mar de acusações e de calúnias, sem ter como se defender. Pois lhe é negada a defesa (negando-se os procedimentos regulares) e a possibilidade do contraditório.

É curioso notar que o romance (O Processo) narra um drama judiciário em que não há o devido processo legal (característica exemplar do Estado Arbitrário). Portanto, mesmo que se estabeleça a (pretensa) culpabilidade, a personagem não teria condições de se inserir na vida social, uma vez que o processo simplesmente estava de todo ausente. E não à toa o princípio do contraditório é tido como a excelência do princípio democrático (o cerne do próprio Estado Democrático), porque implica em contradizer, desdizer, dizer-contra, não-ratificar. Trata-se de retificar a situação com segurança, ir-contra, insurgir-se, voltar-se contra a opinião interposta/oposta. Em suma:

Consagrado por todos os direitos ocidentais, o princípio do contraditório, ao qual já faziam referência Aristóteles e Sêneca, é ligado à própria noção de Justiça que é uma obra de confrontação [...] é considerado um princípio geral do direito. Esse princípio quer que nenhuma parte possa ser julgada sem ter sido ouvida ou citada [...] e implica que cada uma das partes em causa tenha condições de discutir e de contradizer as pretensões, os meios, os argumentos e os elementos de prova que lhe são opostos (Bergel, 2001, p. 445).

O processo, então, é parte do ritual democrático ou parte do ritual que nos conduz à cultura democrática. De acordo com o princípio democrático, mesmo em se tomando a política como a primeira e a principal fonte do Direito, o processo seguirá seu curso de encontro ao Direito democrático: a busca de isenção do tratamento dos meios com os quais as partes irão se opor. Porém, isto se dará deste modo somente se a tese (teoria) coincidir com a prática (práxis) democrática8. Nestes termos, o processo é engendrador de uma estrutura ou complexo político. Com o que também deveríamos afastar a bipolaridade (contradição) entre processo e Direito ou mesmo entre Direito e Justiça, uma vez que no interior do Estado Democrático de Direito, pela lógica, não deveria haver produção de normas, de quaisquer dispositivos legais ou direitos injustos. Com o que também deveríamos superar a dicotomia entre forma e conteúdo, isto é, entre os procedimentos processuais e o direito requerido (neste caso, se e quando o direito é considerado como líquido e certo).

De todo modo, ainda é comum pensarmos que sem conteúdo não há forma9 ou que sem processo não há direitos. E mesmo que tenha de ser superado, ainda se diz comumente que: o que não está nos autos não está no mundo10. Por isso, sempre há que se indagar, o juiz decidirá de acordo com o que está nos autos (princípio da persuasão racional do juiz) mesmo estando certo, seguro de que sua convicção é parcial e que a verdade ainda está oculta e, portanto, não plenamente revelada pelos autos do processo? Em Kafka há uma metamorfose como sinal de fantasmagoria, como desfiguração da normalidade diante do entorno que o autor vivia (e de sua psique), como prenúncio do proto-fascismo, a marca clássica da Modernidade Tardia (o símbolo é Auschwitz). Como dito anteriormente, o caos do sistema prisional – a começar do Urso Branco – remete diretamente aos níveis inseguros, absolutamente instáveis, precários do processo civilizatório e de consciência pública sobre os direitos humanos. A quebra das instituições formais do Estado de Direito, como ausência de representação judicial regular, condena os presos a serem “eternos presos”. Por sua vez, esta situação atende pelo codinome de excepcionalidade negativa, regressiva do próprio estágio de desenvolvimento do processo civilizatório, obrigando-nos a conviver com uma espécie de revolta do passado, em que o direito era exclusividade de grupos sociais e elites econômicas. Ao invés da Justiça, a punição; sem considerar o Estado de Direito, observa-se meramente o encarceramento; sem alimentar formas saudáveis de organização social, privilegia-se o controle social como forma de repressão de grupos sociais não-incluídos.


Estado Penal: a política do “tudo penal”

Para se sagrar soberano e fazer frente aos poderes rivais (no Brasil, um verdadeiro Estado Paralelo, em comoção de guerra civil), o Estado se atribuí o direito de declarar guerra contra alguns segmentos sociais, por julgar que sua existência desestabiliza a paz social. Conforma-se um Estado de Costumes, regulador tanto da vida pública quanto da vida privada. Em São Paulo, a chamada “bancada da bala”, formada por militares que se elegeram vereadores, trás como alternativa a repressão cultural nos bairros de periferia, isto é, reprimindo o baile funk nas periferias, acreditam conter a criminalidade:

Os três oficiais da Polícia Militar eleitos vereadores articulam mudar o Programa de Silêncio Urbano (Psiu) para autorizar o uso de policiais militares da Operação Delegada no combate a bailes funk e ao consumo de álcool nas lojas de conveniência dos postos de gasolina, a partir de 2013. O novo projeto já é defendido dentro do Legislativo pela chamada "bancada da bala", que inclui o coronel Álvaro Batista Camilo, ex-comandante da PM, e o coronel Paulo Adriano Telhada e o capitão Conte Lopes, ex-comandantes da Rota (a tropa de elite da PM) [...] "É isso que queremos mudar na legislação. Precisamos autorizar a presença imediata do agente público no local da denúncia, sem a necessidade de perícia ou de testemunha", acrescenta Camilo11.

Esta atitude que vê na cultura o motivo da desobediência e da desordem, como se sabe, é outra característica do direito nazi-fascista. Assim, inaugura-se uma nova fase do Estado de Direito, o que especialistas em criminologia e sociologia criminal têm chamado de Estado Penal. É um tipo de Estado baseado no avanço crescente da privatização da segurança, tendo nascido nos EUA, migrou para a Europa e há tempos chegou ao Brasil. Porém, sua real origem, “totalitária”, como sabemos, provém do modelo pré-nazista apelidado sarcasticamente de Estado de Justiça:

Disso deriva a ambiguidade da expressão Estado de Direito [...] ou de um “Estado de Justiça”, tomada a justiça como um conceito absoluto, abstrato, idealista, espiritualista, que no fundo encontra sua matriz no conceito hegeliano do “Estado Ético”, que fundamenta a concepção do Estado fascista [...] Diga-se, desde logo, que o “Estado de Justiça”, na formulação indicada, nada tem a ver com Estado submetido ao Poder Judiciário, que é um elemento importante do Estado de Direito (SILVA, 2003, p. 100).

Veremos que esse “novo tipo de Estado” (assim designado porque substituiu as “políticas sociais do Estado Providência” pela “política do enrijecimento de medidas punitivas à criminalidade”), ironicamente se viu vítima e aprisionado, sitiado e isolado da sociedade, ao distanciar-se da prática eficaz das políticas públicas. Entretanto, são longevas as “ameaças” ou estranhamentos às modificações por dentro do sistema, com capacidade efetiva de oxigenação de todas as formas de “compressão”, seja do trabalhador alienado da consciência do próprio fazer, seja do sitiado, em seu país ou cultura:

Foi bastante dramática a mudança que solapou o poder da política de consenso, da limitada institucionalização e integração do protesto social, da exportação fácil da violência interna, através de sua transferência ao planos dos conflitos internacionais mistificantes etc [...] A sociedade “afluente transformou-se na sociedade de efluência asfixiante, e a alegada onipotência tecnológica sequer foi capaz de debelar a invasão dos ratos nas deprimentes favelas dos guetos negros [...] (Enquanto prevalecer o poder do capital, o ‘governo mundial’ está fadado a permanecer em devaneio futurológico). A ‘crise de hegemonia ou do Estado em todas as esferas’ (Gramsci) tornou-se um fenômeno verdadeiramente internacional [...] O status quo de pouco tempo atrás vem se desintegrando rápida e dramaticamente diante de nossos próprios olhos — basta querer ver. A distância entre a ‘Cabana do Pai Tomás’ e os bairros sitiados da militância negra é astronômica” (MÉSZAROS, 1989, pp. 15-20-25-26 - grifos nossos).

Isto foi publicado pela primeira vez por Mészáros no início da década de 70 e é óbvio que a expressão “bairros sitiados” não se refere a nenhum recorte territorial imposto pelo Estado de Emergência Policial, mas não há como negar que hodiernamente vivemos “sitiados em condomínios”, casas fortificadas, com “células de sobrevivência” e muitos outros artífices de guerra. Portanto, não causa espanto dizer-se que nos defendemos como podemos, nesta “guerra civil”, assim como a própria polícia teve de fazer no auge dos ataques do crime organizado em 2006, no Estado de São Paulo: “os policiais estavam sitiados pelo crime”. Atualizando-se expressões antigas, “envelhecidas”, como guerra civil, agora especialistas chamam a isto de “guerra assimétrica nas ruas”. Estes são, no fundo, meros demonstrativos do que é se sentir sitiado, isolado, alienado, fragmentado. Mas, a esperança de todo sitiado é justamente trocar a cela pela sala, a heteronomia (tutela) pela autonomia (capacidade real de “dar normas a si mesmo”, “sentindo-se responsável pelo mundo”). Mas, há muito mais, há uma sufocação que nos cerca a todos, sitiados ou simplesmente isolados.

Desse modo, o Estado Penal é aquele que se baseia no sentido arraigado da coerção (tutoria) para afirmar a legitimidade e, principalmente, afirmar uma legalidade criminal, punitiva e repressora, obviamente, de outros direitos e liberdades. No Estado Penal o melhor slogan é “combater o crime” (tolerância zero), atualizando o típico discurso da “manutenção da lei e da ordem”, isto é, do status quo. Desse modo, uma ação típica do Estado Penal é criar tipos penais; mas, o mais evidente resultado desse Estado Penal é, justamente, lucrar com o “combate” à atividade criminosa12, uma vez que a criminalidade acabou por se tornar altamente lucrativa. No Estado Penal, o encarceramento tornou-se uma verdadeira indústria e uma indústria bastante lucrativa. Para Wacquant (2003, pp. 31-32):

[...] a política do “tudo penal” estimulou o crescimento exponencial do setor das prisões privadas, para o qual as administrações públicas perpetuamente carentes de fundos se voltam para melhor rentabilizar os orçamentos consagrados à gestão das populações encarceradas. Elas eram 1.345 em 1985; serão 49.154 dez anos mais tarde, faturando dinheiro público contra a promessa de economias ridículas: alguns centavos por dia e por preso, mas que, multiplicados por centenas de milhares de cabeças, justificariam a privatização de fato de uma das funções régias do Estado. Um verdadeiro comércio de importação-exportação de prisioneiros prospera hoje entre os diferentes membros da União: a cada ano, o Texas “importa” vários milhares de detentos dos estados vizinhos, ao arrepio do direito de visita das famílias, para reenviá-los no fim da pena para suas cidades de origem, onde serão consignados sob liberdade condicional.

O Estado Penal, paulatinamente, substituiu as ações sociais do Estado Providência, em detrimento de um jus puniendi muito mais repressivo/punitivo. As malhas do Estado Penal atingem sobremaneira as classes desfavorecidas do sistema social e econômico, dando ênfase à criação de tipos penais que culminam com a aplicação desmedida da pena privativa de liberdade, o que ainda resulta na superpopulação carcerária e na desumanidade na execução da pena. O fim último deste Estado Penal é a privatização/terceirização dos presídios, numa demonstração de que, a partir da ascensão do sistema de produção capitalista até os dias atuais, o Direito Penal tem servido para a manutenção do status quo das classes mais abastadas, detentoras do poder em sua mais larga acepção.

Sobre os autores
Fátima Ferreira Martinez

Professora de Ética e Legislação Aplicada aos Negócios no Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM. Bacharel e Mestra em Direito.

Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Fátima Ferreira; MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado K.: sempre o Urso Branco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3421, 12 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23004. Acesso em: 25 nov. 2024.

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