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Não foi um acidente?

Agenda 22/11/2012 às 13:52

Existe uma falsa premissa de que reprimindo de forma mais ativa o acusado, com diminuição de suas garantias de defesa, estar-se-ia aumentando a eficácia da lei penal e diminuindo a impunidade.

“Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem;  pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada.  Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada." Eduardo Alves da Costa

Ultimamente, um movimento popular que busca a mudança da legislação penal brasileira, no que tange aos crimes de trânsito, tem ganhado cada vez mais força e apoio, sob o amparo da campanha “Não foi acidente”.

O movimento, que já conta com quase 800.000 (oitocentos mil) adeptos, pretende aumentar as penas para os crimes de trânsito cometidos por condutor de veículo que tiver ingerido bebida alcoólica, passando a ser imputada ao homicídio culposo neste caso, pena de 5 a 9 anos de reclusão.

Além dessa mudança, outra alteração pretendida pelo projeto de lei é referente a prova da embriaguez nos casos concretos. De acordo com a proposta, não seria mais necessário o exame de sangue ou o exame do etilômetro (bafômetro), para comprovação da embriaguez, bastando para isso a afirmação de um agente com fé pública.

No que se refere a histórica impunidade que margeia a punição de autores de delito de homicídio, não só no caso de crimes de trânsito, e nas tentativas (quase sempre fracassadas) de alterações na legislação para promover a eficácia da lei e a diminuição da impunidade, não há o que se comentar. É fato sabido de todos que a legislação penal no Brasil perpassa por uma distorção histórica e por remendos, muitas vezes com a intenção de aumentar a carga punitiva, que culminam na verdade em mais brechas e lacunas para a defesa dos acusados (cite-se a exemplo a própria Lei Seca).

No entanto, mais preocupante que isso é a mobilização popular, que caminha sempre em um sentido uniforme de requerer cada vez mais a atuação de um Estado autoritário e repressivo, que institua formas de punição severa a acusados e com diminuição e restrições cada vez maiores de garantias e direitos fundamentais da defesa.

Sem nenhuma dúvida, o autor de crimes de trânsito deve ser punido pelo fato e pelas decorrências do acidente que causou. A maneira como isso será feito e o inerente respeito a um devido processo legal, subsidiado pela mais ampla defesa e pelo contraditório, no entanto, são condições basilares para que a pena aplicada se mostre legítima de acordo com os princípios de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

A campanha “não foi um acidente”, encabeçada por um parente de vítimas fatais de trânsito, em acidente no qual o autor teria feito ingestão de bebida alcoólica, lembra-me a fala de um professor de Direito Penal, que na sala de aula sempre dizia: “O Direito Penal não é, e nem pode ser, escrito pelo pai da vítima e nem pela mãe do autor. Neste caso teríamos a vingança privada e isso significa um grande retrocesso na história e na evolução do direito”.

A idéia básica que norteia a restrição de direitos e garantias fundamentais apoia-se na falsa premissa de que reprimindo de forma mais ativa o acusado, com diminuição de suas garantias de defesa, estar-se-ia aumentando a eficácia da lei penal e consequentemente culminando em menos impunidade no sistema jurídico.

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No entanto, para qualquer entendedor mínimo do sistema processual, sabe-se que tal ponto de vista não passa de uma falácia, das mais perigosas e arriscadas. Inicialmente porque qualquer espécie de restrição de garantias é uma grave lesão não só ao acusado, como também ao próprio Estado Democrático. Afinal o que é pior: um culpado impune ou um inocente preso?

Imagine-se que caso aprovado o projeto de lei mencionado, a palavra do agente de trânsito ou do policial seria suficiente para determinar a embriaguez do motorista. A questão que surge a partir daí é se no atual cenário nacional em que casos de abuso de autoridade são frequentes no dia a dia, seria prudente que a simples afirmação de um policial atenda à necessidade de provar a culpa de um motorista? Ou pior, seria razoável permitir que os condutores ficassem a mercê dos agentes de trânsito que determinariam o grau de embriaguez dos mesmos a partir de uma simples constatação em um boletim de ocorrência? Qual a capacitação técnica que estes agentes teriam para isso? Isso para não se falar nos noticiados casos de corrupção de agentes públicos.

Assim, sem pensar nas conseqüências de suas palavras e de seus atos, milhares de brasileiros dão apoio incondicional à campanha “não foi acidente”. Estes mesmos brasileiros que hoje clamam por uma legislação que dê poder irrestrito a um policial de trânsito são aqueles que posteriormente vão à TV e aos jornais reclamarem contra os abusos cometidos pelas autoridades, e pelas restritas oportunidades de defesa que a legislação lhes proporciona.

Como já foi dito, a certeza de que é necessária a atualização da legislação que regula o trânsito no Brasil existe e está à vista de todos. Entretanto fazer isso com irresponsabilidade e sem pensar nas conseqüências dos atos é prova da ignorância de um povo que já lutou muito contra um estado repressivo e ditatorial.

O Estado, por sua vez, assiste passivo a tais campanhas. Afinal, quanto mais poder o mesmo tiver à sua disposição melhor. Quanto menos garantias o acusado tiver, melhor. É isso que as autoridades querem, é contra isso que os defensores da ordem jurídica lutam. Ninguém é a favor da impunidade, isso todos deveriam entender. Mas o que é certo é que a vitima de hoje pode ser o condenado injustamente de amanhã. Neste caso, seria um acidente? 

Sobre o autor
Alison Mendes Nogueira

Advogado. Pós Graduando em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Alison Mendes. Não foi um acidente?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3431, 22 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23069. Acesso em: 22 dez. 2024.

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