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A neurobiologia da violência: complexidade e ética

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Agenda 01/12/2012 às 13:42

V – A Prevenção da Violência

Através dos tempos, a prevenção da violência tem se baseado em leis e preceitos morais e a ameaça da punição. Como alternativa à elaboração de leis penais e a punição dos delinqüentes, o modelo que considera o controle da violência como um problema de saúde pública com raízes multifatoriais enfoca a prevenção da violência como prioridade de política pública.

A prevenção da violência através de políticas de saúde pública tem sido aplicada em vários países, dentre eles os Estados Unidos, onde ocorreu em abril de 2006 o Simpósio de Prevenção da Violência, organizado pela Academia de Ciências de Nova York. A diminuição dos níveis de violência requer uma ampla colaboração interdisciplinar, incluindo sociólogos, juristas, psicólogos e neurobiologistas.

De acordo com a SENASP (Secretaria Nacional de Segurança Pública) [73], a prevenção da violência abrange o conjunto de ações que visam reduzir a incidência da violência e seus efeitos negativos sobre os indivíduos e a comunidade. A prevenção da violência se dá em três níveis:

A prevenção da violência implica dar atenção ao papel dos fatores sociais, psicológicos e biológicos na sua gênese. O foco principal é dirigido à violência juvenil, que é o tempo quando o comportamento violento se inicia. As intervenções devem ser feitas especialmente nos períodos críticos – na infância, através da nutrição e cuidados ao ambiente familiar e social, e na adolescência, dando atenção ao papel que os modelos sociais e os grupos desempenham nessa faixa etária.

Como um dos aspectos da prevenção, o uso de medicamentos para diminuir a agressividade e a impulsividade inclui vários grupos como os estabilizadores do humor, antidepressivos (os inibidores da recaptação da serotonina), beta-bloqueadores, etc. De acordo com um especialista em neurobiologia da violência, o objetivo a médio prazo é a farmacoterapia baseada no genótipo do indivíduo. O caminho promissor para esse objetivo seria um teste genético para determinar os indivíduos com déficit de enzimas que intervêm no metabolismo dos neurotransmissores e aumentam o risco de comportamento violento e anti-social.

Com respeito à dopamina, está bem determinado que o aumento da sua atividade no cérebro correlaciona-se com o aumento da violência. Anfetaminas e cocaína são drogas que aumentam a atividade da dopamina e estão relacionadas ao aumento da violência em alguns indivíduos.

A enzima mono-amino-oxidase (MAO) regula a inativação metabólica da dopamina, nor-adrenalina e serotonina. Vários gens polimorfos controlam o nível de atividade dessa enzima. Indivíduos com baixa atividade de MAO, se sujeitos a maus-tratos, têm um alto risco de desenvolver comportamento anti-social, de acordo com um estudo realizado em 500 homens por Caspi e McClay em 2002 [74]. Este foi o primeiro estudo demonstrando a relação entre os gens, os neurotransmissores e os fatores ambientais na gênese do comportamento violento.

Em 2006, foi descoberto um gen que altera a MAO [75], afetando o metabolismo da serotonina e nor-adrenalina, e diminui o volume e a atividade do córtex cingulado anterior, circuito responsável pelo controle da agressividade e impulsividade. Essas alterações, mais presentes em homens, contribuem para o risco aumentado de comportamento violento e impulsivo.

Quanto à dieta e nutrição, sabe-se que a intervenção nutricional pode diminuir a agressividade emocional e a violência. Por exemplo, a hipoglicemia, que prejudica e reduz a função cerebral, causa sintomas como confusão, desinibição, falta de coordenação, alucinações e agressão. Muitos estudos têm demonstrado que a diminuição de açúcar na dieta pode afetar o comportamento.

Similarmente, a administração de ácidos graxos ômega-3 pode ser bem sucedida em controlar alguns problemas de agressividade, déficit de atenção, distúrbios mentais e outros problemas de comportamento. A maior quantidade de ômega-3 na dieta aumenta a concentração de serotonina no cérebro, reduzindo os problemas de comportamento.

O turnover dos ácidos graxos no plasma reflete o aporte dietético, mas é suscetível a variações devidas ao metabolismo. O uso crônico de álcool diminui as concentrações do ácido decosahexenóico no cérebro e no plasma, levando à diminuição do 5-HIAA (ácido 5-alfa-hidroxi-acético), um metabólito da serotonina.

Um experimento de laboratório mostrou que a deficiência de triptofano, um aminoácido usado para produzir serotonina, estava relacionada com agressividade. Tem sido demonstrado ainda que uma alimentação pobre em carboidratos por vários dias pode levar a alterações de humor e depressão, assim como uma alimentação com excesso de proteína.


VI – Complexidade e Ética

Spinoza introduziu uma tese que chamou de Paralelismo Psicofísico, que vai contra o dualismo entre corpo e alma, opondo-se a filósofos como Descartes e Platão. Spinoza afirma não existir diferença de natureza entre o corpo e a alma, mas que esses dois “corpos” juntos constituem um único ser. Para Spinoza, se o corpo sofre, a alma é miserável, também sofre. [76]

Ele diz que não existe alma sem corpo, mas também não existe corpo sem alma. O que for ação para um determinado corpo é igualmente ação ou paixão para o espírito daquele corpo. Para Spinoza, “todos os corpos são animados, e todas as almas têm corpos”. A ordem e a conexão das ações e paixões do corpo coincidem com a ordem e conexões das paixões da alma. Cada coisa é idea et ideatum, corpo e mente. Nenhuma mudança pode ocorrer no corpo sem a produção de um estado mental correspondente, e o corpo é afetado por outros corpos. [77]

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Spinoza pensa o corpo e a alma na imanência e não na transcendência. Ele mostra que todo ser humano reluta em aceitar o que existe de fato, o que é, e por isso tenta usar a transcendência para fugir dessa realidade, em busca de um ideal que não exise.

Daí Spinoza introduz o conceito de potência, ou essência de cada ser. Tudo na vida passa a ter potência, e para ele liberdade seria exercitar nossa potência até o limite. Dentro da sociedade, liberdade se opõe a constrangimento, e se queremos ser livres e éticos perante a vida devemos respeitar as outras potências, numa relação produtiva que faça expandir a nossa potência e evitar aquelas potências que nos constrangem, que diminuem a nossa potência, e com isso, nossa liberdade de expressão e nossa essência.

Ele entra num conceito que só vai ser desenvolvido no século XX, com a física quântica: o de que os seres são partículas que só se distinguem umas das outras através das relações. Através do encontro e das relações é que compõem ou decompõem algo. Um corpo se define através da capacidade de ser afetado, ou seja, através do afeto.

Nilton Bonder, no seu livro Sobre Deus e o Sempre, desenvolve esse conceito de afeto e relação presentes no discurso de Spinoza. Diz Bonder que o afeto é a própria razão de nossas vidas. “O afeto é tudo que importa na existência. Sem afeto, sem afetarmos ou sermos afetados, a morte ou o desaparecimento (a não-existência) nos são melhores”. Como diz Zalman Schachter, “troco com a vida, logo existo”. O afeto é essa troca, essa interação. “É o afeto que nos oferece uma âncora à realidade”. [78]

Spinoza nos fala de dois afetos, ou paixões primárias da alma, que são: a alegria e a tristeza. A alegria é o afeto que aumenta a nossa potência de agir, é uma variação intensiva positiva, para mais. Já a tristeza é o afeto que faz com que aconteça uma diminuição da nossa potência de agir. A alegria, portanto, está ligada à expansão, e a tristeza ao constrangimento. Os outros afetos variam entre esses dois.

Para Spinoza, o próprio tempo é uma construção mental. O tempo é mera forma de pensamento (modus cogitandi), não há antes ou depois, apenas eternidade. Nesse sentido, Nilton Bonder lembra que a palavra “tempo” (zman, em hebraico) tem a mesma raiz de azmana (convite). Mais do que uma trilha, uma linearidade absoluta, o tempo é um convite para uma intervenção na vida, para uma troca. São as “janelas de oportunidade”, no conceito da Medicina. O conhecimento do funcionamento fisiológico e da neurobiologia da agressividade e do comportamento impulsivo, mais do que um determinismo biológico de um tempo linear é um convite para uma atuação efetiva visando à prevenção de comportamentos auto e hetero-destrutivos.

Para Levinas, “o laço com o outro só se aperta como responsabilidade, quer seja esta aceita ou rejeitada, se saiba ou não como assumi-la, possamos ou não fazer alguma coisa concreta por outrem.” A aceitação deste convite, o reconhecimento da responsabilidade, é o hineni,o”eis-me aqui”. E essa aceitação se traduz mais profundamente no naassê venishmah (“faremos e ouviremos”). Eu aceito a responsabilidade antes que me seja revelado o que devo fazer.

Assumir a responsabilidade por outrem é, para todo o homem, uma maneira de testemunhar a glória do Infinito, de ser inspirado. Há profetismo, há inspiração no homem que responde por outrem, paradoxalmente, mesmo antes de saber o que, concretamente, se exige dele. [79]

Spinoza viveu no século XVII, numa época em que a religião ainda normatizava e regulava a vida em sociedade, as relações entre as pessoas. A ética de Spinoza propõe uma nova forma de se pensar a vida em sociedade e a interação entre os homens, não centrada na religião.

A sua ética parte da idéia de biorregulação e homeoestase (ou homeodinâmica), usando conceitos que só vão ser desenvolvidos séculos depois por Claude-Bernard, William James e Freud, os quais também leram Spinoza. De acordo com o seu pensamento, os organismos agem no sentido de preservar o seu próprio ser, tendência essa que constitui a essência dos seres. Os organismos nascem com a capacidade de regular a vida e sobreviver, e tendem a atingir e buscar uma perfeição maior, que se traduz na alegria. E essas tendências têm origem no inconsciente.

Spinoza diz então que as normas que regulam a vida em sociedade devem ser construídas a partir de um conhecimento profundo da humanidade, conhecimento este que entra em contato com o Deus ou a Natureza que existe dentro de cada um de nós. Ele vê então a relação entre o bem-estar e a felicidade pessoal com a felicidade coletiva. Ele prega a liberdade de expressão, a separação entre a religião e o Estado e a promoção do bem-estar dos cidadãos. A ênfase da sua ética é na vida terrena, e não na vida eterna, num paraíso celestial.

Diz Spinoza: “The greatest good of those who seek virtue is common to all, and can be enjoyed by all equally”. [80] E ainda: “The good which everyone who seeks virtue wants for himself, he also desires for other men”.[ 81]

Muitos conceitos de Spinoza foram desenvolvidos no século XX pela física quântica, como o princípio da totalidade sem costura de Böhn, o qual afirma que todas as coisas estão interconectadas no universo. Spinoza diz que a realidade biológica da auto-preservação é a base da ética na sociedade, porque, pelo fato de estarmos em conexão com os outros, de afetarmos e sermos afetados, para nos manter em equilíbrio necessitamos ajudar os outros a também encontrar o equilíbrio. É uma ética da harmonia, dentro de um sistema complexo de interdependência. A ética, para Spinoza, é o meio pelo qual os indivíduos atingem o equilíbrio natural que se exprime na alegria.

Norbert Elias trabalha conceito semelhante, ao dizer que o ideal é o desenvolvimento da sociedade de maneira a que não apenas alguns, mas a totalidade de seus membros tenha a oportunidade de alcançar a harmonia entre o bem-estar individual e o social. Diz Elias:

Só pode haver uma vida comunitária mais livre de perturbações e tensões se todos os indivíduos dentro dela gozam de satisfação suficiente; e só pode haver uma existência individual mais satisfatória se a estrutura social pertinente for mais livre de tensão, perturbação e conflito. [82]

Norbert Elias exprime ainda o mesmo conceito de interdependência para se entender a relação entre os indivíduos e a sociedade: “para compreendê-los, é necessário desistir de pensar em termos de substâncias isoladas únicas e começar a pensar em termos de relações e funções”. [83]

A ética em Spinoza é uma ética que chama à responsabilidade, que mostra a importância do indivíduo no todo, na complexidade do tecido social, e a importância das relações entre todos os indivíduos para que se possa alcançar o bem-estar social e a potência maior, que se traduz na alegria.

A ética, conforme Levinas a define, é a ética entendida como responsabilidade. Diz Levinas: “Entendo a responsabilidade como responsabilidade por outrem, portanto, como responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz, ou que não me diz respeito; ou que precisamente me diz respeito, é por mim abordado como rosto”. [84] É a ética da responsabilidade, contraposta à neutralidade, ou indiferença.

Essa responsabilidade pode ser vista dentro do estudo da violência, como análise das possíveis aplicações do conhecimento científico, não se restringindo a uma abstrata “neutralidade” do conhecimento. Como diz Damásio, não existe objeto neutro. Para Levinas, o ser nunca é a sua própria razão de ser. É uma ética que visa o outro.

Martin Buber critica o cosmopolitismo ou universalismo, que vai contra “a necessidade de uma pluralidade de comunidades concretas”. Essa visão de Buber traz a ética da alteridade para dentro das nações e das sociedades complexas, indo contra a igualdade, de que fala Ruth Gauer [85], que elimina o diferente, a identidade do outro. Existe um estudo do Police Practice and Research [86] que aponta como uma das razões atuais do crescimento da violência dentro dos países o confronto étnico, entre culturas diferentes, na qual a cultura mais antiga não aceita os “emergentes”, os diferentes, como os anglo-saxões em relação aos pretos e os latinos nos Estados Unidos, os bascos na Espanha, os indianos na Inglaterra, os albaneses na Grécia, os árabes na Alemanha e tantos outros.

Nesse sentido, Buber diz que “comunidade” e “personalidade” são conceitos polares e são definidos um em função do outro. “Uma comunidade real é uma associação orgânica de personalidades, mas uma personalidade somente pode ser definida por seu relacionamento com o Outro, dentro de uma comunidade”. [87] Em total sintonia com Levinas, Buber diz que uma personalidade é orientada para o outro, para o próximo, sendo antiegoísta e responsável por suas ações. Um indivíduo, ao contrário, é possuidor de uma simples liberdade, que se traduz na ausência de direção e função. As ‘massas’ seriam agregados amorfos desses ‘indivíduos’, que deixam pouco ou nenhum lugar ao desenvolvimento e à preservação das personalidades genuínas. Segundo Nilton Bonder, Buber tenta desenvolver um conceito de experiência que não é centrada no indivíduo, mas na relação, numa interdependência onde o ser humano se torna um “eu” por conta de um “tu”, e quanto mais ele troca com a vida e com os outros, mais cristalino fica o seu “eu” na sua consciência. [88]

Para a introdução à epistemologia da complexidade no estudo da neurobiologia da violência, é importante não perder de vista o que Buber comenta sobre indivíduo e comunidade: “Na minha opinião, a unicidade do indivíduo, seu caráter singular que, na verdade, é incomparável, não pode ser deduzida por nenhum método científico.” [89] A unicidade é um segredo.

Nesse sentido, também Levinas:

Tudo se pode trocar entre os seres, exceto o existir. Neste sentido, ser é isolar-se pelo existir. Sou mônada enquanto existo. É pelo existir que sou sem portas nem janelas, e não por qualquer conteúdo que em mim seria incomunicável. Se é incomunicável, é porque está enraizado no meu ser, que é o que há de mais privado em mim. [90]

Levinas funde então o entendimento sobre os conceitos de comunidade, individualidade e temporalidade:

O real não deve determinar-se apenas na sua objetividade histórica, mas também a partir do segredo que interrompe a continuidade do tempo histórico., a partir das intenções interiores. O pluralismo da sociedade só é possível a partir desse segredo. [91]

A ética da alteridade, no nosso entender, pode ser vista dentro de várias facetas no estudo do fenômeno da violência. Este estudo é desde o início o encontro de diversidades, da Medicina, o Direito, a Criminologia, com a Filosofia, a Bioética e a História. Propõe uma teoria criminológica que integre o conhecimento dos vários fatores envolvidos na gênese da violência: neurológicos, psicológicos, econômicos, culturais e sociais. E visa o estudo do ser humano que apresenta comportamento violento e anti-social dentro da sua complexidade, para além dos rótulos do Outro, o delinquente, o estigmatizado, o anormal, qualquer que seja a origem dessa rotulação.

Como conjugar o estudo dos fatores neurobiológicos da violência com a epistemologia da complexidade? Diz Edgar Morin: “Ainda que o ser humano seja ao mesmo tempo biológico, psicológico e cultural, uma cortina de ferro separa o cérebro do espírito, o homem biológico do homem social. Quisemos reunir aqui as disciplinas separadas, que se ignoram umas às outras.” [92] Esta foi também a pretensão deste projeto de pesquisa. Tentar, como Morin, a partir dos princípios do paradigma da simplificação, “resgatar, de maneira correspondente, complementar e antagonista ao mesmo tempo – aí está uma idéia tipicamente complexa – os princípios da inteligibilidade complexa.” [93]

Morin é o pioneiro do pensamento complexo que se opõe a qualquer forma de reducionismo e de determinismo, sem deixar de considerar as descobertas e os avanços do conhecimento científico, porém mantendo um olhar crítico sobre esse saber. Declara Morin: “Atrás da agitação, da dispersão, da diversidade, existem as leis. Por conseguinte, o princípio da ciência clássica é evidentemente legislar, colocar as leis que regem os elementos fundamentais da matéria da vida; e para legislar ela deve disjuntar, isto é, isolar os objetos sujeitos às leis.” “Legislar, disjuntar, reduzir – esses são os princípios fundamentais do pensamento clássico. Não se trata absolutamente, do meu ponto de vista, de decretar que esses princípios sejam doravante abolidos.” [94]

Morin [95] fala dos desafios da complexidade com respeito aos meios ou princípios utilizados no conhecimento científico clássico, que são a ordem, que engloba a idéia de determinismo; a separação, que separa o sujeito do objeto; o princípio da redução, em que se estuda as partes para conhecer o todo, com o todo consistindo na soma de suas partes; e o princípio “dedutivo-indutivo-identitário”, ou a validade absoluta da lógica clássica, da causalidade linear, identificado com a Razão.

Com respeito à razão, Morin trabalha com a idéia de articulação entre o racional e o razoável. Não se deve destruir toda idéia racional, mas dar sentido ao que se estuda. O razoável dá lugar à ética, o horizonte do julgamento razoável é o da finalidade ética. Como demonstrado por Antonio Damásio na neurociência, enfatiza Morin que a visão do razoável “aparenta-se mais ao sentimento do que ao pensamento e mesmo à percepção. Ela revela assim que o racional tem uma base afetiva e, consequentemente, a própria razão encontra-se enraizada na afetividade.” [96]

Então, não se discute a retirada da racionalidade do discurso científico, mas uma ampliação “dessa dimensão da razão até o telos, ou seja, a razão prática.” “É nela que o dinamismo da racionalidade se finaliza, e é na relação a seus fins que a razão toma a forma do razoável.” [97] É quando o racional passa a ter sentido, e faz-se uma articulação positiva entre o racional e o razoável. Conclui, portanto, Morin:

O princípio da separação não morreu, mas é insuficiente. É preciso separar, distinguir, mas também é necessário reunir e juntar. O princípio de ordem não morreu, é preciso integrá-lo na dialógica ordem-desordem-organização. Quanto ao princípio de redução, encontra-se morto, porque jamais chegaremos ao conhecimento de um todo a partir do conhecimento dos elementos de base. O princípio da lógica dedutivo-identitária deixou de ser absoluto, e é preciso saber transgredi-lo. [98]

O que seria, então, a epistemologia complexa? Seria o conhecimento do conhecimento. Ela retoma os princípios da ciência clássica, englobando-os. Existem duas instâncias (a realidade empírica e a verdade lógica) que permitem controlar o conhecimento, sendo cada uma delas necessária e cada uma delas insuficiente. Passa a existir uma pluralidade de instâncias, com um princípio de incerteza sobre um fundo de verdade.

Com relação à biologia e à medicina, Jacques Raffé, em “Biologia Humana e Medicina de Predição” [99] enfatiza a importância da medicina preventiva “que visa ao bloqueio do desenvolvimento de uma situação potencialmente perigosa, traída por sinais muito discretos ou por um contexto ambiental ameaçador”, e coloca a diferença entre medicina preventiva, que dirige-se a pacientes potencialmente doentes, e a medicina de previsão, que visa pacientes ainda sãos, concluindo a seguir:

A medicina de previsão consiste, pois, na análise dessas duas séries de fatores: fatores natos, inicialmente (patrimônio genético que nos confere aptidões de defesa ou fraqueza), e em seguida fatores adquiridos, que se relacionam aos ataques ambientais. O papel do médico será, em cada caso, o de determinar o que cada um pode aceitar e fazer de tal modo que fatores inatos e fatores adquiridos complementares na gênese do estado patológico jamais possam se encontrar. [100]

Sobre a autora
Ana Clélia de Freitas

Médica, com Especialização em Cirurgia Geral e Dermatologia. Pós-graduação em Ciências Penais. Graduação em andamento em Direito. Membro da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC) e da Sociedade Brasileira de Psiquiatria Biológica. Pesquisadora da FAPEPI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Ana Clélia. A neurobiologia da violência: complexidade e ética. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3440, 1 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23133. Acesso em: 23 dez. 2024.

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