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A neurobiologia da violência: complexidade e ética

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01/12/2012 às 13:42
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IV – Neurociência e a Integração Mente – Corpo

Um dos pesquisadores que buscaram tecer o link entre a neurologia e as ciências humanas, em especial a ética e a filosofia, numa abordagem dirigida para além dos especialistas em neurociência, foi o neurologista português Antonio R. Damásio, cujo trabalho, em parceria com a sua esposa Hanna, também neurologista e especialista em neuroimagem, deu origem a novos ramos científicos interdisciplinares, como a neurofilosofia, a neuroética e o neurodireito.

Para Antonio Damásio, Médico-Chefe do Departamento de Neurologia da Universidade de Iowa, existe um novo enfoque com relação à consciência, à percepção e ao conhecimento, devido à maturidade das ciências do cérebro e da mente na atualidade. [49] Existem técnicas novas que permitem o estudo efetivo dos substratos neurológicos do processo mental, ao lado da neuroimagiologia.

Hoje, pode-se demonstrar que sentimentos e emoções envolvem mapas anatômicos no cérebro, e que determinados componentes cerebrais estão envolvidos na consciência. Por exemplo, o tronco cerebral e o córtex cingulado mostram mudanças funcionais durante estados de alteração da consciência, como durante a medicação pré-anestésica. [50]

O Prof. Damásio empenhou-se em resolver o dilema cartesiano do corpo e do espírito (mente). René Descates propôs o dualismo de substãncia: o corpo e suas partes são matéria física, enquanto que a mente não. Descartes enfatiza que “o que é ação para a alma, tem que ser padecimento para o corpo”. O método cartesiano serviu de base para a Ciência e a Medicina, com o estudo separado da mente (os fenômenos psicológicos) e o corpo. Para Damásio, essa visão deixou de ser a perspectiva atual, na ciência e na filosofia, mas continua a visão preferida da maior parte dos seres humanos. Porém, longe de existir uma separação entre mente e corpo, a mente não pode existir ou operar sem o corpo [51].

À medida que cresceu o conhecimento do cérebro humano, “os fenômenos mentais foram revelados como estreitamente dependentes do funcionamento de uma enorme variedade de circuitos cerebrais.” [52] Para Damásio, a arte é uma forma de conhecimento tão legítima como a ciência e a tecnologia. Ele faz uma ponte entre a poesia e a neurociência, citando Wordsworth: “Doces sensações sentidas no sangue e levadas até o coração.” [53]

Nietzsche tem uma visão muito clara sobre essa relação, a respeito do corpo:

Corpo eu sou, e alma’ – assim fala a criança. E por que alguém não deveria falar como as crianças? Mas o desperto e entendido diz: corpo eu sou inteiramente, e nada mais; e alma é apenas uma palavra para algo sobre o corpo. O corpo é a grande razão, uma pluralidade com um sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Um instrumento do seu corpo é também sua pequena razão, meu irmão, que você chama ‘espírito’ – um pequeno instrumento e brinquedo da sua grande razão... Por trás dos seus pensamentos e sentimentos, meu irmão, permanece um poderoso legislador, um sábio desconhecido – cujo nome é ‘self’. No seu corpo, ele habita; ele é o seu corpo. Há mais razão no seu corpo do que na sua melhor sabedoria. [54]

Segundo o entendimento do Prof. Damásio, as visões tradicionais da natureza da razão não são corretas. A emoção e a razão não são produzidas em áreas estanques, separadas, da mente, mas emoção e razão constituem um processo só, interligado. A emoção é fundamental no mecanismo de tomada de decisão como “retrato” do ambiente externo em que o indivíduo está inserido. As emoções são as “antenas”, os sensores do corpo.

Ele mostra como é possível caracterizar estados emocionais através do conjunto de diversos parâmetros fisiológicos. Um desses métodos é o algoritmo, em que quatro estados emocionais – fúria, tristeza, felicidade e medo – são descritos através de quatro parãmetros: ritmo cardíaco, variação do ritmo cardíaco, ritmo respiratório e variação do ritmo respiratório. Por exemplo: a fúria caracteriza-se por aceleração do ritmo cardíaco sem alteração na sua variabilidade, enquanto o medo implica a aceleração do ritmo cardíaco, diminuição da variabilidade e mudança na respiração. [55]

Ainda como exemplo, a lesão de estruturas como a amígdala cerebral provoca a ausência do sentimento de medo. Também crianças que sofrem lesões cerebrais em certas regiões do lobo frontal nos primeiros anos de vida desenvolvem defeitos importantes de comportamento social, apesar de preservadas a inteligência e a capacidade cognitiva. Elas não exibem emoções sociais, como compaixão, vergonha, culpa e apresentam dificuldade em aplicar as convenções sociais e regras éticas de maneira efetiva. [56]

O Prof. Damásio coloca, portanto, um fundamento social e emocional para a ética, como produto da evolução. Para ele, o comportamento ético é o substrato do comportamento social. Não se pode falar em ética fora do conceito de sociedade. Esse pensamento é desenvolvido também por Spinoza e Levinas, como mencionaremos. A expressão do comportamento ético está ligado às emoções sociais: simpatia, vergonha, embaraço, culpa e indignação moral. Conclui o Prof. Damásio: “A construção a que chamamos ética começa com o edifício da biorregulação”. [57] Biorregulação envolveria os mecanismos automáticos que permitem ao ser humano equilibrar o seu metabolismo, manter a vida, e alcançar o bem-estar, e que produz ainda desejos e motivações, emoções e sentimentos. Para Damásio, a ética inicia com a biorregulação e continua com o ambiente cultural, existindo um grau de liberdade que permite ao indivíduo intervir.

No seu livro mais recente [58], Prof. Damásio questiona:

How do we humans develop the values that permit us to classify objects as beautiful or ugly and to judge actions as good or evil? What is the basis for the moral judgements we pronounce? Where are good social conducts and ethical principles grounded? … We believe that there was a biolgical blueprint for the intelligent construction of human values, and that the biological blueprint was present in nonhuman species and early humans. We also believe that a variety of natural modes of biological response, which include those known as emotions, already embody such values. They too were present in nonhuman species and early humans. [59]

Prof. Damásio deixa claro a seguir a intenção de não minimizar o papel das interações sociais e a história cultural dos povos na “construção, refinamento, codificação e transmissão desses valores”. Como ele coloca: “Nós não estamos reduzindo os valores humanos a simples instintos biológicos herdados. Apenas desejamos sugerir que a sua construção foi impelida e orientada em certas direções por condições biológicas preexistentes.” [60]

Como então, se deu esse processo? Como ele explica a seguir, o projeto biológico para a construção dos valores humanos pode ser encontrado no funcionamento da homeostase, ou homeodinâmica, que regula a existência de todos os organismos vivos. Como o estudou Claude-Bernard, o objetivo desse processo é reger uma coleção de sistemas que permite ao organismo manter os processos biológicos dentro do nível compatível com a vida.

A regulação da vida não é um processo neutro, mas funciona visando determinados objetivos a fim de proporcionar o melhor bem-estar do organismo. É um processo dinâmico e complicado, que envolve escolhas e preferências, ainda que no nível básico de otimização da vida essas escolhas sejam feitas de maneira automática. O sistema de regulação da vida é construído de maneira a atingir determinados objetivos, quais sejam a manutenção da vida e da saúde, a prevenção de circunstâncias que possam levar à morte e destruição e a busca de estados que levem ao máximo bem-estar, para além de um nível de neutralidade. Ou seja, o sistema de regulação da vida, ou homeostase, incorporou valores no sentido de rejeitar as condições que levam à doença e à morte e procurar condições que levem à sobrevivência na melhor maneira possível.

O interessante é que esse sistema reproduz a nível biológico o esquema psicológico de dor e punição, de um lado, e prazer e recompensa, do outro. O que registramos como dor e prazer refletem a experiência de configurações particulares de estados fisiológicos caracterizados por certos parâmetros químicos no ambiente interno do organismo, como o tônus das vísceras ou a liberação de neurotransmissores. Em ressumo, a manutenção de estados de dor e punição por um longo tempo leva à doença e morte; por outro lado, estados de prazer e recompensa resultam em saúde e bem-estar.

Enfatiza o Prof. Damásio:

The same lines of thinking can be applied to the origins of our ability to classify objects or situations as beautiful or ugly. When we consider the range of operation of homeostatic processes, we can objectively describe states of efficiency, states of inefficiency and states in between. Efficient regulatory states are those, for example, in which the performance of regulations not only adequate but timely, with minimal consumption of energy, minimal impediment, ease and smoothness. Given the multi-tiered structure of the homeostatic process, the notion of harmony is perfectly apt to describe such states. The inefficient part of the regulatory spectrum is characterized by higher energy consumption, inadequate and untimely performance, impediment, difficulty, raggedness, and discoordination. The notions of disharmony and discord are not far behind either. [61]

Ele conclui seu raciocínio sugerindo que, na origem dos valores humanos, os objetos foram classificados como belos quando associados com a promoção de estados eficientes no organismo, seja porque ocorriam nas circunstâncias da vida nas quais o nível homeostático encontrava-se eficiente, ou devido ao fato de que os objectos por si só fossem capazes de ocasionar ou “disparar”estados homeostáticos eficientes. E, ao contrário, objetos feios eram aqueles associados com níveis ineficientes ou disfuncionais de homeostase.

Como diz o poeta Jorge Luís Borges: “Tenho para mim que a beleza é uma sensação física, sentida com todo o corpo. Ou sentimos a beleza, ou não a sentimos.”

Nesse ponto é importante frisar, e o Prof. Damásio o faz, que não se pode reduzir a percepção estética diretamente ou linearmente à pura ocorrência de estados fisiológicos eficientes ou ineficientes. Há algo muito maior envolvido na experiência sublime de se ouvir uma sonata de Bach, ou se contemplar uma tela de Rembrandt, por exemplo. Existe a ocorrência de um estado emotivo e sentimental, mas também um tipo de cognição associado e uma evocação de um conhecimento pertinente. Novamente, como ele enfatiza, não se busca um reducionismo, apenas a demonstração das origens da construção dos valores humanos. De maneira alguma se quer dizer que a construção se reduz às origens biológicas do mesmo, ou que o edifício equivale aos seus fundamentos. O que se intenta é chamar a atenção para os fundamentos.

Como Spinoza enfatizou, ao contrário do que propôs Descartes, não existe separação entre mente e corpo. A alma não é um “homúnculo” assentado sobre uma parte do cérebro controlando o corpo. A mente não existe por si só. Se assim acontecesse, quando o corpo morresse, a mente continuaria existindo: pensando, raciocinando e exercendo valores éticos. Mas como bem o frisou Spinoza, não existe corpo sem alma, e vice-versa, a não ser em outras dimensões espirituais, para quem assim o acredita.

Como coloca o Prof. Jean-Pierre Changeux, há séculos os homens vêm estudando a base do seu próprio sistema de valores éticos e estéticos. Até recentemente, esses estudos eram realizados através do pensamento de filósofos e teólogos, ou pelo achado de historiadores e sociólogos com respeito às variações desses valores dentro das diferentes populações e agrupamentos humanos. Muitos cientistas naturalistas evitavam esse campo de investigação, deixado dentro dos limites da filosofia., o que levou a uma dicotomia entre o “mundo de valores” e o “mundo da realidade”. É como se estuda na filosofia do direito: a separação do mundo do ser (as ciências naturais) e o mundo do dever-ser (as ciências sociais). David Hume expressou essa dicotomia no seu comentário: “Existe uma profunda e crucial distinção entre o “ser” da ciência e o “dever-ser” da ética”. [62]

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Porém atualmente, com o desenvolvimento da neurociência e neuroimagem, que demonstram no cérebro vivo as áreas que são ativadas em associação com idéias e atitudes estéticas e morais, e a etologia, que nos permite observar o comportamento social e “moral” em animais, permitiu desenvolver-se um congraçamento, uma interação, entre as várias áreas do conhecimento. Isso levou ao desenvolvimento da neurociência da ética, ou neuroética.

Um dos temas que emergem do atual conjunto de conhecimentos e dados é a origem inata do comportamento moral, implicando não apenas que existe um substrato cerebral para esse comportamento, mas que ele se desnvolveu por seleção evolutiva, o que corresponde às conclusões de Charles Darwin. O pensamento original de Charles Darwin postula que o comportamento moral é de origem inata, e que tanto no homem como no animal é o resultado do processo de seleção natural.

Jean-Pierre Changeux escreveu um livro com o filósofo Paul Ricouer, como resultado de uma série de encontros onde os dois discutiam ética, a natureza humana e o cérebro, sob bases neurobiológicas e filosóficas. Nele Changeux postula que não se pode mais pensar o cérebro como um computador composto de circuitos pré-fabricados pelos gens, numa abordagem determinista. Mas que, ao contrário, as conexões entre os neurônios são estabelecidas gradualmente no curso do desenvolvimento humano, por meio de um processo de tentativa e erro. A seleção e eliminação dessas conexões são reguladas num grau substancial pela interação do neonato com o ambiente e consigo mesmo. [63]

Portanto, o cérebro não pode mais ser visto como uma máquina genética; ele incorpora, dentro de um “pacote genético” definido peculiar a cada espécie, uma série de impressões “epigenéticas” que são estabelecidas por variação e seleção. Por epigenética, entenda-se as características obtidas por meio da evolução. O que ele quer dizer é que a competição evolucionária (epigenética) dentro do cérebro acontece a partir da evolução biológica (genética) das espécies e cria, como conseqüência, links orgânicos com o meio ambiente físico, social e cultural. Isso leva a que o conhecimento humano se veja obrigado a fazer um link entre as ciências sociais e naturais, para que possa entender o comportamento humano.

Os autores explicam que a clivagem entre cientistas e filósofos é relativamente recente. Na antigüidade, filósofos como Demócrito e Aristóteles eram também cientistas da natureza e matemáticos como Tales de Mileto e Euclides eram filósofos. A separação entre cientistas, filósofos e artistas ocorre a partir do Renascimento, ainda que alguns cientistas, como Leonardo da Vinci fossem também artistas. A partir do século XIX, como comentado anteriormente, reapareceu o pensamento filosófico entre os homens da ciência, como Henri Poincaré. Poincaré, matemático francês, escreveu sobre epistemologia, ou teoria do conhecimento, no livro A Ciência e a Hipótese. E em tempos recentes, ressurgiu o interesse no estudo da ciência por filósofos como William James, filósofo e psicólogo americano, que no seu trabalho The Principles of Psychology, considerado totalmente inovador, compara a ciência da mente às disciplinas biológicas e considera a consciência como um estado de adaptação das espécies. A tese fundamental de James é de que existe uma relação causal entre os fenômenos psíquicos e as sensações nervosas e as perturbações viscerais.

Outros filósofos que tentaram unir as ciências biológicas, em especial, num pensamento filosófico foram Henri Bergson, Maurice Meleau-Ponty e atualmente, Paul e Patricia Churchland, que criaram a disciplina de Neurofilosofia, e orientam o alcance filosófico do trabalho de vários neurocientistas, entre eles Antonio e Hanna Damasio.

Ricouer cita Georges Canguilhem, médico e filósofo, que demonstrou como os seres humanos estruturam o seu meio ambiente e projetam “valores vitais”que dão sentido ao seu comportamento. [64] Ambos autores concordam que existe urgente necessidade de colaboração interdisciplinar envolvendo pesquisadores das ciências naturais e cientistas sociais. O “gap” institucional que separa as ciências da vida das ciências humanas tem tido resultados catastróficos. A experiência tem demonstrado que, na maioria das vezes, é nas fronteiras entre as disciplinas que acontecem as grandes descobertas, os grandes “insights”.

No seu artigo de março de 2007, após estudar vários pacientes neurológicos, o Prof. Antonio Damásio estabelece que os vínculos intensos entre a tomada de decisão, a emoção e o funcionamento e interação social expõem uma nova visão do relacionamento entre a biologia e a cultura. Especificamente, é através de uma via emocional que as influências sociais da cultura vão formar o aprendizado, o pensamento e o comportamento. [65]

Conclui o Prof. Damasio, no referido artigo:

As the childhood-onset prefrontal patients show, morality and ethical decision making are special cases of social and emotional functioning. While the beginnings of altruism, compassion and other notions of social equity exist in simpler forms in the nonhuman primates, human cognitive and emotional abilities far outpace those of the other animals. Our collective accomplishments range from the elevating and awe inspiring to the evil and grotesque. Human ethics and morality are direct evidence that we are able to move beyond the opportunistic ambivalence of nature; indeed, the hallmark of ethical action is the innibition of immediately advantageous or profitable solutions in the favor of what is good or right within our cultural frame of reference. In this way, ethical decision making represents a pinnacle cognitive and emotional achievement of humans. At its best, ethical decision making weaves together emotion, high reasoning, creativity, and social functioning, all in a cultural context. [66]

Como ele declara, em termos neurobiológicos e evolucionários, a criatividade é um meio de sobreviver e florescer dentro de um contexto cultural e social. E isso vai desde as circunstâncias relativamente banais da vida diária até “a complexa arena do pensamento e do comportamento ético”.

No seu livro mais recente [67], Michael Gazzaniga desafia-nos não apenas a enfrentar as questões éticas inerentes à neurobiologia, mas ainda a tentar entender como nossos cérebros governam nossas respostas éticas. Também recentemente, David Pearce argumenta a partir de evidências arqueológicas e antropológicas que os padrões neurais de atividade entrelaçados dentro do cérebro humano ajudam a explicar o grau de arte religiosa e práticas sociais produzidas pelo povo na era Neolítica [68].

Donald Pfaff acredita que os mecanismos neurobiológicos básicos que sustentam o arcabouço da ética encontram padrões de similaridade nos animais. Os behavioristas animais ou etologistas chamam a isso “altruísmo recíproco”. Animais, de maneira individual, sofrem riscos de maneira a proteger o grupo. Um animal realiza coisas que ajudam outros membros do grupo a sobreviver. Por exemplo, um pássaro pequeno produz o seu alarme sonoro de maneira a alertar e salvar o resto do grupo de um falcão que se aproxima, ainda que, ao fazer isso, ele revele a sua própria localização para o predador. Da mesma maneira, um babuíno compartilha comida com um membro faminto da sua tropa, ainda que, com isso, sobre menos comida para ele próprio. [69]

Pesquisas recentes têm demonstrado que a ação conjunta dos hormônios oxitocina e vasopressina encoraja os animais a agir em relação aos outros em comportamentos cooperativos e amigáveis. Essa neurobiologia emergente que visa interações sociais harmoniosas em animais, incluindo os seres humanos, provê um conjunto positivo de mecanismos que direcionam a uma resposta ética em determinada situação.

Porém os fenômenos neurobiológicos da ética levantam várias questões. Como sabemos, nem todos se comportam de maneira ética todo o tempo. Por que algumas pessoas acham mais difícil se comportar de maneira ética do que outras? Por que algumas pessoas possuem tendências mais “amigáveis” do que outras? Pode a neurobiologia ajudar a entender a diferença de comportamento ético entre as pessoas, e porque para alguns é mais fácil violar regras éticas, seja uma atitude indelicada ou um ato de violência? Donald Pfaff conclui no seu artigo que a neurociência é um novo parceiro e não um substituto para outras abordagens intelectuais ao estudo da ética.

Como coloca Steven Hyman, a palavra ética abrange um sistema de princípios morais e a disciplina que os estuda. Bioética exprime o campo que examina as implicações éticas da medicina e da pesquisa biológica. O termo mais recente, neuroética busca chamar a atenção da opinião pública, e também dos médicos, cientistas e políticos sociais para os profundos dilemas morais levantados pelo recente progresso das ciências do cérebro. [70]

Como enfatiza o Prof. Hyman:

While advances in many fields in the life sciences raise questions of ethics and policy, the brain has a special status: it is the organ of the mind and the substrate of all our thoughts, emotions and behavior. Issues raised by progress in brain research bring to the fore concerns about our identities, our sense of agency, and what may be our last bastion of privacy, our own thoughts. Such weighty issues deserve the focus created by the concept of neuroethics; the time for broad ethical discussions related to brain science is upon us. [71]

Jean-Pierre Changeux, no seu artigo “Neuroscience and Human Dignity” questiona o temor recente de que o progresso do conhecimento científico com respeito aos atributos do ser humano possa ter o efeito de retirar a “aura sagrada” daquilo que é magnificente por encontrar-se escondido. Ele argumenta que o mesmo poderia ter sido dito sobre o amor humano quando descobertas na neuroendocrinologia o explicaram melhor. No seu entender, da mesma maneira que o entendimento do papel dos hormônios de maneira alguma diminuiu o significado ou o valor das paixões envolvidas no amor humano, o conhecimento dos substratos neurais e biológicos ligados às idéias de verdade, beleza e bondade não diminuirão a riqueza desses valores.

No mesmo entendimento da ética do conhecimento de Jacques Monod, Changeux considera que o conhecimento possui um valor essencial que constantemente nos convida a lutar para alcançar o sublime. Segundo ele, a história nos ensina que a degradação acompanha o obscurantismo mais do que o faz o conhecimento.

Como J.Z. Young escreveu:

It is time that people stop talking about reductionism as if increased knowledge somehow subtracted from human dignity. On the contrary [it] adds greatly to understanding of our possibilities and limitations and hence ability to conduct ourselves wisely, and especially with the full respect for other human beings, and indeed for all life. [72]

Portanto, conhecer o funcionamento cerebral, é contribuir para aperfeiçoar a condição humana, da mesma maneira que a psiquiatria atual, embora com pouco tempo de atuação, tenha contribuído grandemente para minorar o sofrimento envolvido na doença mental, fazendo grandes conquistas na retomada da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, a pesquisa na neurobiologia tem levado a uma melhor compreensão da sociopatia e acrescentado novas abordagens terapêuticas.

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Sobre a autora
Ana Clélia de Freitas

Médica, com Especialização em Cirurgia Geral e Dermatologia. Pós-graduação em Ciências Penais. Graduação em andamento em Direito. Membro da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC) e da Sociedade Brasileira de Psiquiatria Biológica. Pesquisadora da FAPEPI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Ana Clélia. A neurobiologia da violência: complexidade e ética. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3440, 1 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23133. Acesso em: 25 abr. 2024.

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