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O sigilo de dados telefônicos e sua não oponibilidade ao órgão regulador

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Agenda 17/12/2012 às 14:01

4.Do dever do órgão regulador de manter sigilo sobre os dados a que tem acesso.

Nessa linha, é preciso ressaltar que o órgão regulador possui o dever de sigilo sobre tais dados, obtidos em decorrência de sua fiscalização. A LGT, em seu art. 174, aduz que “toda acusação será circunstanciada, permanecendo em sigilo até sua completa apuração”. Já ao tratar das sessões realizadas no âmbito do Conselho Diretor, dispõe que “quando a publicidade puder colocar em risco a segurança do País, ou violar segredo protegido ou a intimidade de alguém, os registros correspondentes serão mantidos em sigilo”. Por fim, em seu art. 3º, inciso V, assegura aos usuários o direito ao sigilo de seus dados, ressalvando, porém, as hipóteses legal e constitucionalmente previstas, conforme se observa: “o usuário de serviços de telecomunicações tem direito à inviolabilidade e ao segredo de sua comunicação, salvo nas hipóteses e condições constitucional e legalmente previstas”.

A Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo na esfera federal, também aborda o assunto, impondo, em seu art. 2º, parágrafo único, inciso V, o dever de sigilo. Após dispor que “a Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”, reza que “nos procedimentos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas na Constituição”. Segue a mesma linha a Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação – LAI):

Art. 31.  O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais. 

§ 1o  As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem: 

I - terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; e 

II - poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem. 

Além disso, é de se ter em mente que, se algum servidor público quebrar indevidamente o sigilo dos dados a que teve acesso em razão do exercício de suas funções, sofrerá a punição cabível, podendo, eventualmente, cumular sanções nas três esferas, quais sejam, administrativa, cível e criminal. De fato, consoante o art. 116, inciso VIII, da Lei nº 8.112/90, é dever do servidor guardar sigilo sobre assunto da repartição.


5.Do entendimento jurisprudencial.

Tecidos esses comentários, por meio dos quais já resta demonstrada a não oponibilidade do sigilo de dados frente à fiscalização do órgão regulador, é de bom alvitre, para reforçar o entendimento aqui exposto, trazer à tona mais um entendimento do Supremo Tribunal Federal – STF. Pois bem. A Corte Suprema entende que o sigilo de dados não pode ser oponível a órgão que tem a atribuição constitucional de fiscalizar o assunto pertinente. Tratava-se de caso envolvendo o Ministério Público e dados mantidos por instituição financeira, entendimento este que, mutatis mutandis, também se aplica à questão levantada por este trabalho. Colaciona-se trecho da decisão:

O poder de investigação do Estado é dirigido a coibir atividades afrontosas à ordem jurídica e a garantia do sigilo bancário não se estende às atividades ilícitas. A ordem jurídica confere explicitamente poderes amplos de investigação ao Ministério Público – art. 129, incisos VI, VIII, da Constituição Federal, e art. 8º, incisos II e IV, e § 2º, da Lei Complementar n. 75/1993. (MS 21.729)

Nessa linha, vale lembrar que a Receita Federal tem acesso aos dados financeiros dos contribuintes. Se não tivesse, seu poder fiscalizador restaria esvaziado. O mesmo acontece com o órgão regulador do setor de telecomunicações. Impedido de ter acesso às informações em tela, não teria mais como exercer seu mister constitucional.

A Lei Complementar nº 105/2001, por exemplo, que regula o sigilo das operações de instituições financeiras, dispõe, em seu art. 2º, § 1º, que o sigilo, inclusive quanto a contas de depósitos, aplicações e investimentos mantidos em instituições financeiras, não pode ser oposto ao Banco Central do Brasil no desempenho de suas funções de fiscalização.

Gilmar Ferreira Mendes também traz hipótese em que a fiscalização, de índole constitucional, em atenção ao interesse social, deve prevalecer, no caso concreto, frente ao sigilo assegurado:

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No Supremo Tribunal Federal, há acórdãos afirmando que “a administração penitenciária, com fundamento em razões de segurança pública, de disciplina prisional ou de preservação da ordem jurídica, pode, sempre excepcionalmente, e desde que respeitada a norma inscrita no art. 41, parágrafo único, da Lei n. 7.210/84, proceder à interceptação da correspondência remetida pelos sentenciados, eis que a cláusula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas” (HC 70.814-5/SP, DJ de 24-06-1994, Rel. Celso de Mello). Ao ver do relator, a inviolabilidade de correspondência deve ser compreendida, “com vista à finalidade ética ou social do exercício do direito que resulta da garantia, tutela desta natureza não pode ser colocada para a proteção de atividades criminosas ou ilícitas”. Por isso, as correspondências poderiam ser abertas “em todas as hipótese que aviltem o interesse social ou se trate de proteger ou resguardar direitos ou liberdades de outrem ou do Estado, também constitucionalmente assegurados.”[6] [grifo nosso]

Destarte, diante do sigilo de dados, que tem a finalidade de proteger a intimidade/privacidade do usuário perante terceiros em geral, e da função fiscalizadora da ANATEL, com previsão constitucional, há de prevalecer, no caso concreto, esta última, porquanto não traz qualquer prejuízo àquele sigilo, conforme já demonstrado. Esse entendimento é a concretização do que a doutrina chama de princípio da concordância prática. Gilmar Ferreira Mendes leciona sobre o tema:

Sabe-se que a restrição de direitos fundamentais pode ocorrer mesmo sem autorização expressa do constituinte, sempre que se fizer necessária a concretização do princípio da concordância prática entre ditames constitucionais. Não havendo direitos absolutos, também o sigilo de correspondência e de comunicações telegráficas são passíveis de ser restringidos em casos recomendados pelo princípio da proporcionalidade.

(...) Omissis

A colisão entre direitos individuais ou entre direitos individuais e bens tutelados constitucionalmente atua como uma restrição imanente que legitima a intervenção na esfera do direito não submetido expressamente a uma limitação, eliminando-se a possibilidade de conflito com recurso à concordância prática (colisão constitucional como justificativa de uma intervenção). Essa orientação tem a vantagem de não impor limitação a priori ao âmbito de proteção de determinado direito, cingindo-se a legitimar, constitucionalmente, eventual restrição. A interpretação sistemática atuaria, assim, de forma corretiva, permitindo tanto a justificação de novas restrições quanto a delimitação do âmbito de proteção de determinado direito.[7]

Alexandre de Moraes também trata do assunto:

Os direitos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5º da Constituição Federal, não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.

Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).

Desta forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua.[8] [grifo nosso]

Fica claro, portanto, que o sigilo de dados telefônicos não é oponível à Anatel, órgão com atribuição constitucional e legal para regular e fiscalizar o setor das telecomunicações, visando, em última ratio, à proteção dos direitos dos próprios usuários.


6.Das conversas entre atendentes dos call centers das prestadora e seus clientes.

Por fim, vale registrar que, na mesma linha aqui apresentada, não há que se falar em oposição à Anatel de um suposto sigilo das conversas dos(as) atendentes dos call centers das empresas com seus clientes (ou potenciais clientes). Eventualmente, o órgão regulador pode precisar dessas informações para fiscalizar determinadas condutas.

Também não há que se alegar, obviamente, sigilo frente ao próprio usuário que participou da conversa. Para ele claramente existe o direito de ter acesso à sua conversa com o(a) atendente do call center. Pode-se até mesmo dizer que o usuário é o principal tutelado com a gravação da conversa, seja para que ele próprio eventualmente busque seus direitos seja para que o órgão regulador tome as medidas cabíveis quando necessário, providências estas que, em última instância, visam ao equilíbrio da relação consumerista, de modo a compensar a hipossuficiência do consumidor.

Na verdade, a gravação dessas conversas tem por finalidade resguardar todos os envolvidos – tanto empresas como usuários –, para que seja possível comprovar o que ficou contratado/prometido na conversa. A Anatel, então, como órgão fiscalizador e competente para resolver controvérsias e eventualmente punir o infrator, também deve ter acesso a essas conversas, caso seja necessário.

Quanto ao atendente em si do call center, registre-se por derradeiro, que ele não divulga nessas conversas informações privadas e/ou íntimas de sua vida. O teor das conversas, ao contrário, é de cunho estritamente comercial, assunto que, aí sim, diz respeito ao objeto de regulação da Agência e ao qual, por isso, pode surgir a necessidade de se ter acesso.


7.Conclusão

Considerando a necessidade de o órgão regulador do setor de telecomunicações fiscalizar a correta tarifação das chamadas, em prol dos próprios consumidores, não há que se falar em oposição de sigilo de dados de chamadas (Registro de Detalhes de Chamada) à Anatel, órgão com previsão constitucional e competência para fiscalizar as prestadoras de serviços de telecomunicações.

No mesmo sentido, não há que se falar em sigilo, frente ao órgão regulador, do conteúdo das conversas entre atendentes de call centers das prestadoras e seus clientes (ou potenciais clientes).

De todo modo, em relação a todas as informações obtidas em razão da fiscalização, persiste o dever de manutenção de sigilo por parte do órgão regulador.


8.Referências bibliográficas

BARROSO, Luís Roberto; Interpretação e Aplicação da Constituição, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003;

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, 16ª ed., São Paulo: Saraiva, 1995;

______. Dicionário de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994;

CARVALHO FILHO, José dos Santos; Manual de Direito Administrativo, 17ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007;

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2008;

MELLO, Celso Antônio Bandeira de; Curso de Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005;

MENDES, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; e Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008;

MORAES, Alexandre de; Direito Constitucional, 13ª ed., São Paulo: Atlas, 2003;

_________ Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo: Atlas, 2007;


Notas

[1] Moraes, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2005, p. 52.

[2] Moraes, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo: Atlas, 2007, p. 177.

[3] Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; e Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 392.

[4] Barroso, Luís Roberto, Interpretação e Aplicação da Constituição. Rio de Janeiro: Saraiva, 2003, p. 200 e 201

[5] Carvalho, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 712.

[6] Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; e Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 392.

[7] Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; e Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 345 e 392.

[8] Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2003, p. 60 e 61.


ABSTRACT: This study analyzes the constitutional confidentiality of data and the competences of the regulatory agency to monitor and punish, specially the necessity to supervise the pricing calls. It is verified if the Call Detail Records are covered by the confidentiality of data and if this confidentiality can prevent the supervision of the National Telecommunications Agency.

KEY WORDS: Constitutional – Confidentiality of data – Regulatory agency – Administrative - Supervision.

Sobre o autor
Paulo Firmeza Soares

Procurador Federal em Brasília (DF). Pós-graduado em Regulação de Telecomunicações. Pós-graduando em Direito Administrativo e em Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Paulo Firmeza. O sigilo de dados telefônicos e sua não oponibilidade ao órgão regulador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3456, 17 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23256. Acesso em: 5 nov. 2024.

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