Resumo: O Poder Executivo, por seu Chefe, pode negar vigência a lei que reputa inconstitucional, num controle político repressivo, pois as virtualidades da Constituição, destinada a regular o fenômeno político, não podem ser reduzidas ao domínio judicial.
Palavras-chave: Inconstitucionalidade. Poder Executivo. Controle político repressivo.
A Constituição é a Lei Suprema da qual todas as demais leis retiram seu fundamento de validade e perante a qual todas devem se conformar, sob pena de receber a pecha da inconstitucionalidade. A força normativa da Constituição obriga a todos: particulares e, principalmente órgãos públicos, que lhes devem obediência.
A compreensão da Constituição como Lei Fundamental e a aceitação de sua obrigatoriedade representou, sem dúvida, uma grande evolução no Direito dos povos ocidentais, permitindo, inclusive, o amadurecimento dos estudos acerca do fenômeno da inconstitucionalidade.
Sem adentrar na questão da inconstitucionalidade de atos privados, cujo regime jurídico a que estão submetidos é, naturalmente, diverso daquele que estão sujeitos as leis e outros atos do Estado[1], e da qual se ocupa a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, é inegável que os atos do Poder Público regulados direta e imediatamente pelo Texto Magno poderão ser tachados de inconstitucionais[2].
A doutrina do direito constitucional vê a constitucionalidade e a inconstitucionalidade como conceitos de relação[3]. Segundo Jorge Miranda[4], “é a relação que se estabelece entre uma coisa – a Constituição – e outra coisa – um comportamento – que lhe está ou não conforme, que com ela é ou não compatível, que cabe ou não no seu sentido”.
Cuida-se, como anota Gilmar Ferreira Mendes, de uma relação de índole normativa, que qualifica a inconstitucionalidade e que implica trazer, para seu conceito, a ideia de sanção à violação do texto constitucional[5]. E esta sanção, via de regra, é representada pela nulidade, comportando as atenuações que o Direito Positivo lhe conferir[6].
O responsável pela fiscalização ampla da constitucionalidade das leis é o Poder Judiciário, que pode declarar sua invalidade, incidentalmente, no controle difuso[7], afastando a obrigatoriedade da lei tida como inconstitucional, ou mesmo fulminar a própria lei, no controle abstrato e concentrado, quando a decisão do Judiciário passaria a valer contra todos e vincular as demais instâncias julgadoras e órgãos da Administração.
É esse, em traços largos, o sistema de controle de constitucionalidade consagrado pela Constituição de 1988 que se mantém até hoje, sem modificações substanciais[8].
No Brasil, a partir da Constituição de 1988, que ampliou o rol de legitimados ativos para propositura de ações diretas de inconstitucionalidade (art. 103 da CF) – antes nas mãos apenas do Procurador-Geral da República – passou-se a olhar, com reservas, a negativa de cumprimento de uma lei emanada por outros órgãos, pois o controle de constitucionalidade seria exercido com exclusividade pelo Poder Judiciário, por se tratar de atributo ínsito ao exercício da Jurisdição.
Se o Supremo é quem diz o que é a Constituição, conformando as leis a sua autoridade, seria franqueada a possibilidade de existirem manifestações incoerentes e conflitantes de diversos órgãos públicos que, a seu critério, negassem vigência à lei por entender que desbordam da Carta Magna.
No entanto, essa restrição põe em evidência outro problema: não faz sentido o Poder Executivo deixar de lado a Constituição para dar cumprimento a lei que lhe parece inconstitucional.
A moderna teoria do direito constitucional tem ressaltado que as virtualidades da Constituição, inspirada na pretensão de disciplinar o fenômeno político, não podem ser reduzidas exclusivamente ao domínio judicial, cabendo falar em interpretação constitucional realizada pelo legislador e pelo administrador, aos quais se deve reconhecer também papel fundamental na concretização do conteúdo das normas constitucionais[9].
Moreira Alves[10], em estudo doutrinário, é incisivo: “[a] opção entre cumprir a Constituição ou desrespeitá-la para dar cumprimento à lei inconstitucional é concedida ao particular para a defesa do seu interesse privado. Não o será ao Chefe de um dos Poderes do Estado para a defesa, não do seu interesse particular, mas da supremacia da Constituição que estrutura o próprio Estado?”
A Constituição é uma carta aberta à sociedade dos intérpretes, é um texto que rompe o isolamento e se concretiza como norma na vida dos cidadãos. Nas palavras de Peter Härbele[11], "no processo de interpretação constitucional, estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição". Nesse processo aberto, os tribunais atuam apenas a posteriori, uma vez e somente se for instaurado o conflito.
Sob a Constituição de 1988, com a redação dada ao art. 102, § 1º da CF pela EC nº 3/93, passou-se a sustentar, numa interpretação a contrario sensu, que o Poder Executivo poderia, num controle político repressivo, fiscalizar a constitucionalidade das leis, afinal a Administração Pública só estaria vinculada a dada interpretação somente a partir de decisão de mérito do STF. Nesse sentido, o Supremo, no julgamento da Representação de Inconstitucionalidade nº 980, defendeu que o Poder Executivo pode deixar de cumprir leis inconstitucionais. Ao apreciar Decreto do Governador do Estado de São Paulo que mandou descumprir lei por entende-la contrária à Constituição, o Ministro Moreira Alves defendeu que, “(...) em face dos princípios que norteiam a atividade administrativa, que exige plena e total conformidade com a ordem jurídica que assenta, fundamentalmente, nos países de Constituição rígida, como é o nosso, no texto da Constituição – a única conclusão possível é, repetimos, a de que não somente pode o Executivo recusar cumprimento a disposições emanadas do Legislativo, mas evidentemente inconstitucionais, como é de seu dever zelar para que não tenham eficácia na órbita administrativa.”
Administração Federal, por seu Chefe e Ministros que lhes auxiliam, pode, com efeito, exercer a fiscalização da constitucionalidade das leis, afinal não faz sentido o Poder Executivo deixar de lado a Constituição para dar cumprimento a lei que lhe parece inconstitucional e, o que é pior, que viola o núcleo essencial de direitos fundamentais[12]. Aliás, ao ser empossado, o Presidente da República assume o compromisso de “defender, manter e cumprir a Constituição” e de “observar” as leis. O juramento pode ser visto, de um lado, como mera liturgia do cargo. Mas, de outro lado, por se tratar de regra jurídica com dignidade constitucional (art. 78 da CF), o mínimo de eficácia que dela se extrai é o reconhecimento da possibilidade de fiscalização da constitucionalidade das leis pelo Chefe do Executivo, que está obrigado a “defender, manter e cumprir” a Constituição e apenas “observar” as leis. Se não fosse assim, a Constituição perderia seu caráter de limite ao Poder Executivo. A força normativa da Constituição valeria para todos, exceto para o administrador. Um verdadeiro nonsense.
A possibilidade de fiscalização política repressiva foi reconhecida ao Tribunal de Contas da União, segundo enunciado nº 347 da Súmula do STF, segundo a qual, o TCU, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público. O TCU, vale ressaltar, auxiliar do Poder Legislativo, que está alheio á estrutura e exercício da função jurisdicional.
Enfim, além de concentrar o poder de negar a vigência de lei inconstitucional, dentro da Administração Pública, ao Chefe do Poder, o que evita a banalização da fiscalização da constitucionalidade dada a multiplicidade de sentidos possíveis que podem ser extraídas de um texto interpretado, outra saída intermediária estaria em deixar adstrita a decisão administrativa à superveniência de pronunciamento do STF, em medida cautelar, que passaria a vincular todos os órgãos públicos, ratificando ou rejeitando o posicionamento adotado pelo Poder Executivo.
A declaração de inconstitucionalidade de lei pelo Poder Executivo é uma realidade que, exercida com a ponderação exigida pelo sistema constitucional, somente engrandece a doutrina da efetividade da Constituição.
Notas
[1] Não obstante o entendimento tradicional de somente os atos do Poder Público poderem incidir em inconstitucionalidade, desenvolve-se na doutrina constitucional alemã a teoria da eficácia externa dos direitos fundamentais, que amplia a abrangência destas garantias, passando a vincular, diretamente, entes públicos e privados. Nesta teoria, haveria espaço para a declaração da inconstitucionalidade de atos de direito privado. Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos, São Paulo: Saraiva, 1990, p. 10, nota de rodapé.
[2] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 415.
[3]. Ibidem
[4]. MIRANDA, Jorge apud MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos, p. 6.
[5]. MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos, São Paulo: Saraiva, 1990, p. 6.
[6]. A nulidade continua sendo a consequência principal da declaração da inconstitucionalidade de um ato normativo brasileiro, não obstante seja o direito positivo que desenhe a sanção a um ato reputado inconstitucional. Nesta linha, a Lei 9868/99 admitiu, em seu art. 27, a declaração da inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade, quando razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social recomendarem que a decisão produza efeitos a partir de seu trânsito em julgado (ex nunc) ou de outro momento fixado pelo STF, por maioria de 2/3 dos seus membros. Este dispositivo, cumpre ressaltar, foi alvo de algumas ações diretas de inconstitucionalidade que questionaram, dentre outros aspectos, o quorum estabelecido, que é mais rígido do que a maioria absoluta exigida pelo texto constitucional para outras deliberações do Supremo.
[7]. Historicamente, a fiscalização difusa da constitucionalidade, trazida para o Brasil sob auspícios do direito constitucional Norte-americano, tem, praticamente, a mesma idade da República. Previsto, pela primeira vez, no Decreto nº. 848/1890, que instituiu a Justiça Federal, foi reafirmado pela Constituição de 1891, fixando-se, a partir daí, definitivamente, na nossa tradição constitucional. Já o controle concentrado ganhou contornos mais próximos aos atuais somente meio século depois, com a EC. nº 16/65, que instituiu a Ação Direta de Inconstitucionalidade sob o regime da Constituição de 1946. Anteriormente a ela, existia no país a Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva, que, nada obstante a semelhança do nome, trata de objeto nitidamente distinto, a saber, a lide que se estabelecia entre a União e um Estado-membro, por conta da violação de um princípio sensível por este último ente federado.
[8]. A EC nº 45/2004 operou algumas modificações no Texto Magno, mas não trouxe nenhuma característica que destoe da breve síntese. Apenas realizou algumas modificações pontuais, ampliando o rol de legitimados para a propositura da ADIN e ADC, consagrando, outrossim, de forma expressa, o efeito vinculante e a eficácia erga omnes das decisões proferidas em sede de controle abstrato.
[9]. CHEMERINSKY, Erwin. Constitucional law – principles and policies, New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2011, p. 26.
[10]. MOREIRA ALVES, apud RAMOS, Elival da Silva. A Inconstitucionalidade das Leis: vício e sanção. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 238.
[11]. HÄRBELE, Peter. Hermenêutica constitucional. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 13.
[12] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 388.