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Considerações sobre a declaração de inconstitucionalidade de lei pelo Poder Executivo

14/01/2013 às 11:27
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A declaração de inconstitucionalidade de lei pelo Poder Executivo é uma realidade que, exercida com a ponderação exigida pelo sistema constitucional, somente engrandece a doutrina da efetividade da Constituição.

Resumo: O Poder Executivo, por seu Chefe, pode negar vigência a lei que reputa inconstitucional, num controle político repressivo, pois as virtualidades da Constituição, destinada a regular o fenômeno político, não podem ser reduzidas ao domínio judicial.

Palavras-chave: Inconstitucionalidade. Poder Executivo. Controle político repressivo.


A Constituição é a Lei Suprema da qual todas as demais leis retiram seu fundamento de validade e perante a qual todas devem se conformar, sob pena de receber a pecha da inconstitucionalidade. A força normativa da Constituição obriga a todos: particulares e, principalmente órgãos públicos, que lhes devem obediência.  

A compreensão da Constituição como Lei Fundamental e a aceitação de sua obrigatoriedade representou, sem dúvida, uma grande evolução no Direito dos povos ocidentais, permitindo, inclusive, o amadurecimento dos estudos acerca do fenômeno da inconstitucionalidade.

Sem adentrar na questão da inconstitucionalidade de atos privados, cujo regime jurídico a que estão submetidos é, naturalmente, diverso daquele que estão sujeitos as leis e outros atos do Estado[1], e da qual se ocupa a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, é inegável que os atos do Poder Público regulados direta e imediatamente pelo Texto Magno poderão ser tachados de inconstitucionais[2].

A doutrina do direito constitucional vê a constitucionalidade e a inconstitucionalidade como conceitos de relação[3]. Segundo Jorge Miranda[4], “é a relação que se estabelece entre uma coisa – a Constituição – e outra coisa – um comportamento – que lhe está ou não conforme, que com ela é ou não compatível, que cabe ou não no seu sentido”.

Cuida-se, como anota Gilmar Ferreira Mendes, de uma relação de índole normativa, que qualifica a inconstitucionalidade e que implica trazer, para seu conceito, a ideia de sanção à violação do texto constitucional[5]. E esta sanção, via de regra, é representada pela nulidade, comportando as atenuações que o Direito Positivo lhe conferir[6].

O responsável pela fiscalização ampla da constitucionalidade das leis é o Poder Judiciário, que pode declarar sua invalidade, incidentalmente, no controle difuso[7], afastando a obrigatoriedade da lei tida como inconstitucional, ou mesmo fulminar a própria lei, no controle abstrato e concentrado, quando a decisão do Judiciário passaria a valer contra todos e vincular as demais instâncias julgadoras e órgãos da Administração.

É esse, em traços largos, o sistema de controle de constitucionalidade consagrado pela Constituição de 1988 que se mantém até hoje, sem modificações substanciais[8].

No Brasil, a partir da Constituição de 1988, que ampliou o rol de legitimados ativos para propositura de ações diretas de inconstitucionalidade (art. 103 da CF)  – antes nas mãos apenas do Procurador-Geral da República – passou-se a olhar, com reservas, a negativa de cumprimento de uma lei emanada por outros órgãos, pois o controle de constitucionalidade seria exercido com exclusividade pelo Poder Judiciário, por se tratar de atributo ínsito ao exercício da Jurisdição.

Se o Supremo é quem diz o que é a Constituição, conformando as leis a sua autoridade, seria franqueada a possibilidade de existirem manifestações incoerentes e conflitantes de diversos órgãos públicos que, a seu critério, negassem vigência à lei por entender que desbordam da Carta Magna.

No entanto, essa restrição põe em evidência outro problema: não faz sentido o Poder Executivo deixar de lado a Constituição para dar cumprimento a lei que lhe parece inconstitucional.

A moderna teoria do direito constitucional tem ressaltado que as virtualidades da Constituição, inspirada na pretensão de disciplinar o fenômeno político, não podem ser reduzidas exclusivamente ao domínio judicial, cabendo falar em interpretação constitucional realizada pelo legislador e pelo administrador, aos quais se deve reconhecer também papel fundamental na concretização do conteúdo das normas constitucionais[9].

Moreira Alves[10], em estudo doutrinário, é incisivo: “[a] opção entre cumprir a Constituição ou desrespeitá-la para dar cumprimento à lei inconstitucional é concedida ao particular para a defesa do seu interesse privado. Não o será ao Chefe de um dos Poderes do Estado para a defesa, não do seu interesse particular, mas da supremacia da Constituição que estrutura o próprio Estado?” 

A Constituição é uma carta aberta à sociedade dos intérpretes, é um texto que rompe o isolamento e se concretiza como norma na vida dos cidadãos. Nas palavras de Peter Härbele[11], "no processo de interpretação constitucional, estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição". Nesse processo aberto, os tribunais atuam apenas a posteriori, uma vez e somente se for instaurado o conflito.

Sob a Constituição de 1988, com a redação dada ao art. 102, § 1º da CF pela EC nº 3/93, passou-se a sustentar, numa interpretação a contrario sensu, que o Poder Executivo poderia, num controle político repressivo, fiscalizar a constitucionalidade das leis, afinal a Administração Pública só estaria vinculada a dada interpretação somente a partir de decisão de mérito do STF. Nesse sentido, o Supremo, no julgamento da Representação de Inconstitucionalidade nº 980, defendeu que o Poder Executivo pode deixar de cumprir leis inconstitucionais. Ao apreciar Decreto do Governador do Estado de São Paulo que mandou descumprir lei por entende-la contrária à Constituição, o Ministro Moreira Alves defendeu que, “(...) em face dos princípios que norteiam a atividade administrativa, que exige plena e total conformidade com a ordem jurídica que assenta, fundamentalmente, nos países de Constituição rígida, como é o nosso, no texto da Constituição – a única conclusão possível é, repetimos, a de que não somente pode o Executivo recusar cumprimento a disposições emanadas do Legislativo, mas evidentemente inconstitucionais, como é de seu dever zelar para que não tenham eficácia na órbita administrativa.”

Administração Federal, por seu Chefe e Ministros que lhes auxiliam, pode, com efeito, exercer a fiscalização da constitucionalidade das leis, afinal não faz sentido o Poder Executivo deixar de lado a Constituição para dar cumprimento a lei que lhe parece inconstitucional e, o que é pior, que viola o núcleo essencial de direitos fundamentais[12]. Aliás, ao ser empossado, o Presidente da República assume o compromisso de “defender, manter e cumprir a Constituição” e de “observar” as leis. O juramento pode ser visto, de um lado, como mera liturgia do cargo. Mas, de outro lado, por se tratar de regra jurídica com dignidade constitucional (art. 78 da CF), o mínimo de eficácia que dela se extrai é o reconhecimento da possibilidade de fiscalização da constitucionalidade das leis pelo Chefe do Executivo, que está obrigado a “defender, manter e cumprir” a Constituição e apenas “observar” as leis. Se não fosse assim, a Constituição perderia seu caráter de limite ao Poder Executivo. A força normativa da Constituição valeria para todos, exceto para o administrador. Um verdadeiro nonsense.

A possibilidade de fiscalização política repressiva foi reconhecida ao Tribunal de Contas da União, segundo enunciado nº 347 da Súmula do STF, segundo a qual, o TCU, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público.  O TCU, vale ressaltar, auxiliar do Poder Legislativo, que está alheio á estrutura e exercício da função jurisdicional.

Enfim, além de concentrar o poder de negar a vigência de lei inconstitucional, dentro da Administração Pública, ao Chefe do Poder, o que evita a banalização da fiscalização da constitucionalidade dada a multiplicidade de sentidos possíveis que podem ser extraídas de um texto interpretado, outra saída intermediária estaria em deixar adstrita a decisão administrativa à superveniência de pronunciamento do STF, em medida cautelar, que passaria a vincular todos os órgãos públicos, ratificando ou rejeitando o posicionamento adotado pelo Poder Executivo.

A declaração de inconstitucionalidade de lei pelo Poder Executivo é uma realidade que, exercida com a ponderação exigida pelo sistema constitucional, somente engrandece a doutrina da efetividade da Constituição.


Notas

[1] Não obstante o entendimento tradicional de somente os atos do Poder Público poderem incidir em inconstitucionalidade, desenvolve-se na doutrina constitucional alemã a teoria da eficácia externa dos direitos fundamentais, que amplia a abrangência destas garantias, passando a vincular, diretamente, entes públicos e privados. Nesta teoria, haveria espaço para a declaração da inconstitucionalidade de atos de direito privado. Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos, São Paulo: Saraiva, 1990, p. 10, nota de rodapé.

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[2] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 415.

[3]. Ibidem

[4]. MIRANDA, Jorge apud MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos,  p. 6.

[5]. MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos, São Paulo: Saraiva, 1990, p. 6.

[6]. A nulidade continua sendo a consequência principal da declaração da inconstitucionalidade de um ato normativo brasileiro, não obstante seja o direito positivo que desenhe a sanção a um ato reputado inconstitucional. Nesta linha, a Lei 9868/99 admitiu, em seu art. 27, a declaração da inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade, quando razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social recomendarem que a decisão produza efeitos a partir de seu trânsito em julgado (ex nunc) ou de outro momento fixado pelo STF, por maioria de 2/3 dos seus membros. Este dispositivo, cumpre ressaltar, foi alvo de algumas ações diretas de inconstitucionalidade que questionaram, dentre outros aspectos, o quorum estabelecido, que é mais rígido do que a maioria absoluta exigida pelo texto constitucional para outras deliberações do Supremo.

[7]. Historicamente, a fiscalização difusa da constitucionalidade, trazida para o Brasil sob auspícios do direito constitucional Norte-americano, tem, praticamente, a mesma idade da República. Previsto, pela primeira vez, no Decreto nº. 848/1890, que instituiu a Justiça Federal, foi reafirmado pela Constituição de 1891, fixando-se, a partir daí, definitivamente, na nossa tradição constitucional. Já o controle concentrado ganhou contornos mais próximos aos atuais somente meio século depois, com a EC. nº 16/65, que instituiu a Ação Direta de Inconstitucionalidade sob o regime da Constituição de 1946. Anteriormente a ela, existia no país a Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva, que, nada obstante a semelhança do nome, trata de objeto nitidamente distinto, a saber, a lide que se estabelecia entre a União e um Estado-membro, por conta da violação de um princípio sensível por este último ente federado.

[8].  A EC nº 45/2004 operou algumas modificações no Texto Magno, mas não trouxe nenhuma característica que destoe da breve síntese. Apenas realizou algumas modificações pontuais, ampliando o rol de legitimados para a propositura da ADIN e ADC, consagrando, outrossim, de forma expressa, o efeito vinculante e a eficácia erga omnes das decisões proferidas em sede de controle abstrato.

[9]. CHEMERINSKY, Erwin. Constitucional law – principles and policies, New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2011, p. 26.

[10]. MOREIRA ALVES, apud RAMOS, Elival da Silva. A Inconstitucionalidade das Leis: vício e sanção. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 238.

[11]. HÄRBELE, Peter. Hermenêutica constitucional. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 13.

[12] SARLET, Ingo Wolfgang.  A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 388.

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Sobre o autor
Ricardo Marques de Almeida

Procurador Federal no Estado do Rio de Janeiro. Representante Suplente da Carreira de Procurador Federal no Conselho Superior da AGU.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Ricardo Marques. Considerações sobre a declaração de inconstitucionalidade de lei pelo Poder Executivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3484, 14 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23439. Acesso em: 19 abr. 2024.

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