Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Reflexões sobre o art. 515, § 3º do Código de Processo Civil e o duplo grau de jurisdição

Agenda 06/02/2013 às 16:22

Há polêmica em relação à constitucionalidade ou legalidade do art. 515, §3º, do CPC, incluído pela Lei nº. 10.352/01, que seria uma ofensa ao duplo grau de jurisdição.

Resumo: O presente ensaio enfrentará a alteração sofrida no art. 515, § 3º, do CPC, incluído pela Lei nº. 10.352, de 26 de dezembro de 2001, permitindo o julgamento de mérito diretamente pelo Tribunal, nos casos de sentença terminativa impugnada por meio de apelação, desde que atendidas as formalidades legais.

Palavras-chave: Art. 515, § 3º, do CPC. Duplo grau de jurisdição. Constitucionalidade.


Várias foram as tentativas do legislador em resolver o problema da tempestividade da prestação jurisdicional mediante a edição de uma série de leis, visando alterar o Código de Processo Civil, em busca de uma maior celeridade do processo sem, no entanto, esquecer a necessidade de garantir a segurança jurídica e a unicidade do sistema processual.

Diversas modificações no sistema recursal pátrio foram introduzidas pela Lei nº. 10.352, de 26 de dezembro de 2001, que alterou dispositivos do CPC, referentes aos recursos e ao reexame necessário. Este ensaio, entretanto, limitar-se-á a analisar os pontos controvertidos referentes ao acréscimo do parágrafo terceiro ao art. 515, do CPC, que tem a seguinte redação:

Art. 515 – A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada.

§ 1º Serão, porém, objeto de apreciação e julgamento pelo tribunal todas as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que a sentença não as tenha julgado por inteiro.

§ 2º Quando o pedido ou a defesa tiver mais de um fundamento e o juiz acolher apenas um deles, a apreciação devolverá ao tribunal o conhecimento dos demais.

§ 3º Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento.

Com a introdução do citado parágrafo terceiro ao art. 515, do CPC, concedeu-se aos tribunais, na hipótese de interposição de recurso de apelação visando a reforma de sentença terminativa, a análise do mérito da causa, desde que se trate de questão exclusivamente de direito e o processo esteja em condições de imediato julgamento.

Como bem observa Eduardo Cambi:

A inclusão do §3º, ao art. 515 do CPC partiu da premissa que a morosidade é um dos maiores fatores de deslegitimação do mecanismo processo e uma das causas mais graves que impedem o acesso á ordem jurídica justa, já que a justiça tardia constitui fonte de descrédito da população no Poder Judiciário, em razão das angústias, sofrimentos psicológicos e econômicos que provoca. Assim, a questão da distribuição do ônus do tempo no processo deve estar no centro das novas técnicas de aperfeiçoamento do instrumento processual[1].

Sem dúvida, o dispositivo teve o objetivo de abreviar a duração dos processos. Contudo, cumpre indagar: qual a consequência processual, considerando o duplo grau de jurisdição e a reformatio in pejus? E, ainda, se o dispositivo está em consonância com os ditames constitucionais.

Observe-se, portanto, o que a doutrina já denominou de teoria da causa madura[2], é dizer, aquela que está completamente instruída e pronta para receber a sentença de mérito, sem faltar, portanto, qualquer providência que possa vir a atrasar o julgamento da causa.

Tal modificação representou, outrossim, significativa transformação no processo civil brasileiro, em especial no âmbito recursal, que segundo Humberto Theodoro Junior, é onde se encontra um dos maiores fatores de congestionamento e, por conseguinte, da intolerável demora com que a máquina judiciária responde à demanda da tutela a cargo do Poder Judiciário[3] e vem causando grande controvérsia entre os operadores de direito.

Com efeito, um dos pontos mais debatidos do § 3º, do art. 515, do CPC, diz respeito à violação ou não ao princípio do duplo grau de jurisdição.

Sobre o mencionado princípio, preleciona Moacyr Amaral dos Santos que:

O princípio do duplo grau de jurisdição, consagrado na Revolução Francesa, consiste em admitir-se, como regra, o conhecimento e decisão das causas por dois órgãos jurisdicionais sucessivamente, o segundo de grau hierarquicamente superior ao primeiro. A possibilidade do reexame recomenda ao juiz inferior maior cuidado na elaboração da sentença e o estímulo ao aprimoramento de suas aptidões funcionais, como título para sua ascensão nos quadros da magistratura. O órgão de grau superior, pela sua experiência, acha-se mais habilitado para reexaminar a causa e apreciar a sentença anterior, a qual, por sua vez, funciona como elemento e freio à nova decisão que se vier a proferir[4].

Ademais, não basta assegurar o direito de recurso se outro órgão não se encarregasse da revisão do decisório impugnado. Assim, para completar o princípio da recorribilidade existe, também, o princípio da dualidade de instância ou do duplo grau de jurisdição. Isto quer dizer que, como regra geral, a parte tem direito a que sua pretensão seja conhecida e julgada por dois juízos distintos, mediante recurso, caso não se conforme com a primeira decisão[5].

Destarte, pode-se afirmar que o princípio do duplo grau de jurisdição se baseia em dois fundamentos: a) sanar e evitar as possíveis falhas e abusos cometidos pelos magistrados; b) amenizar o sentimento de revolta, de injustiça, que geralmente acomete a parte vencida em toda e qualquer demanda.

Não se pode negar, ainda, a natureza constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição, independente de estar ele explicitado ou não no texto da Constituição da República de 1988 e, dessa forma, não se pode conceber uma legislação voltada à supressão total dos recursos do sistema processual pátrio.

Cite-se, ainda, que mencionada reforma processual ampliou o efeito devolutivo do recurso de apelação. É que o novo § 3º do art. 515 do CPC introduz no direito processual civil brasileiro o chamado efeito devolutivo per saltum por admitir que o tribunal examine o mérito, mesmo nas hipóteses de apelação que visam à reforma de sentença terminativa, se causa dispuser sobre questão exclusivamente de direito ou estiver em condições de imediato julgamento[6].

Com a entrada em vigor do dispositivo debatido, verifica-se, pois, o alargamento do efeito devolutivo do recurso de apelação, levando ao conhecimento do órgão colegiado, também, os aspectos meritórios da lide, pois se permitiu ao Tribunal apreciar não só o vício formal que deu causa à extinção do processo sem julgamento de mérito, como também adentrar no mérito da causa, desde que atendidos alguns pressupostos apontados por Humberto Theodoro Junior:

O efeito devolutivo da apelação permitirá ao tribunal julgar o mérito da causa, desde que satisfeitos dois requisitos: a) a causa versar sobre questão exclusivamente de direito; e b) o feito estiver em condições de imediato julgamento (um recurso contra o indeferimento da inicial, por exemplo, não pode ser apreciado pelo mérito da causa, porque ainda não se realizou o contraditório; assim, também, quando a extinção se deu na fase de saneamento, sem que ainda se pudesse ter o contraditório como completo).

(...)

Mesmo que não haja prova a ser produzida, não poderá o Tribunal enfrentá-lo (o mérito) no julgamento da apelação formulada contra sentença terminativa, se um das partes ainda não teve oportunidade processual adequada para debater a questão de mérito. Não é, em outras palavras, a simples circunstância de envolver o mérito da causa questão só de direito que se deve levar em conta, mas também a necessidade de cumprir o contraditório[7].

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Quanto ao primeiro requisito acima mencionado, note-se que a expressão “questão exclusivamente de direito” significa que os fatos debatidos na demanda devem ser incontroversos, pois se há questões de mérito que dependem de prova, estas não podem ser analisadas diretamente pelo Tribunal, devendo passar pelo crivo do juiz de primeira instância. Vale recordar que a própria lei processual reconhece que o julgador que participa da colheita das provas tem melhor condições de bem avaliá-las, conforme determina o art. 132, do CPC[8].

Cumpre trazer à baila a lição do processualista mineiro:

Se houve instrução probatória, mesmo encerrada, não se aplica, portanto, a regra do art. 515, § 3º. Haverá questão de fato a acertar, mediante apreciação do quadro probatório controvertido. Enquanto estiverem em jogo versões conflitantes de fatos entre as partes, não se pode dizer que o juiz estará julgando apenas questões de direito. O julgamento só é apenas de direito, quando apoiado em fato incontroverso entre as partes[9].

Discute-se, portanto, a necessidade ou não de retorno dos autos à primeira instância para julgamento do mérito, motivo pelo qual a reforma processual poderia ter sido mais clara nesse sentido, consagrando os casos que envolvem matéria de fato já provado ou mesmo incontroverso. Oportunas são as ponderações de Pedro Luiz Pozza quando afirma que:

O legislador foi extremamente infeliz na redação do dispositivo, pois bastaria, para permitir a incidência da hipótese prevista no novo §3º do art. 515, exigir, como requisito para a apreciação do mérito pelo tribunal, ao reformar sentença que não examinou o meritum causae, que a causa estivesse madura. Quer dizer: se a causa versar questão exclusivamente de direito, sempre poderá o tribunal suprimir o primeiro grau de jurisdição; porém se a causa versar, também, questões fáticas, a supressão poderá ocorrer, da mesma forma, desde que a instrução da lide esteja concluída, ou seja, reste esgotada integralmente a dilação probatória[10].

Situação diversa se figura quanto a aplicação do art. 515, § 3º, do CPC naqueles casos em que houve julgamento de mérito em primeiro grau e o Tribunal reconhece a existência de nulidade absoluta da sentença. Tratando-se de questão exclusivamente de direito e estado madura a causa, não pode o Tribunal apreciar diretamente o mérito, devendo determinar a remessa dos autos para outro julgamento.

Nesse sentido é o escólio de Rodrigo Barioni:

O regime das nulidades processuais, portanto, é bem diferente daquele relativo ao exame da decisão que, equivocadamente, extingue o processo sem julgamento do mérito. Naquele, a sentença padece de invalidade (insanável), enquanto neste a sentença, embora contendo error in procedendo, é válida e apta a produzir efeitos regulares. Quando interposto recurso contra decisão nula, não pode o tribunal convalidar a nulidade. É indispensável, neste caso, que haja a repetição do ato, sendo proferida nova sentença sem o vício que a inquinara[11].

Outra questão polêmica diz respeito à obrigatoriedade ou não da aplicação do art. 515, § 3º, do CPC, quando preenchidos seus pressupostos.

Parte da doutrina preleciona que preenchidos os requisitos do art. 515, § 3º do CPC, não tem o órgão julgador discricionariedade para decidir ou não a demanda, sendo obrigatória a análise imediata do mérito. Nesse sentido:

A devolução será então dupla, ainda sem que assim fosse a vontade do recorrente. Essa situação é muito provável, quando a sentença terminativa houver sido proferida depois de cumprido todo o procedimento em primeiro grau jurisdicional e, portanto, depois de encerradas todas as oportunidades instrutórias[12].

Com relação ao exame do mérito, após a cassação da sentença terminativa, trata-se de atividade a ser desenvolvida ex officio, ou seja, independentemente da vontade do apelante. (…) Até a vigência da Lei 10.352, cabia exclusivamente ao apelante a fixação do limite (art. 515, caput). Agora, em razão do § 3.º, ainda que não versada na apelação a matéria de mérito, porque não tratada na sentença, deverá o tribunal examiná-la, se presentes os requisitos legais. (…) Nada impede que o apelante, ciente de que a impugnação da sentença terminativa poderá acarretar julgamento de mérito em 2º grau, manifeste expressamente o desejo de limitar o âmbito da análise a parte do pedido. O silêncio, porém, equivale a admitir a devolução integral da pretensão material, pois ele já sabe de antemão que o acolhimento de suas razões implicará não só o afastamento da extinção sem julgamento do mérito, mas também o exame deste. A ausência de manifestação expressa significa devolução integral, mesmo porque o recurso parcial constitui exceção[13].

Advogando tese contrária, outra parte da doutrina entende que se o Tribunal julgar diretamente o mérito sem pedido do apelante haveria completa desconsideração do princípio tantum devolutum quantum apellatum, segundo qual o tribunal somente deverá conhecer das matérias que forem suscitadas pela parte recorrente.

Essa é a lição de Humberto Theodoro Junior:

Se a parte vencida recorre pedindo apenas a anulação ou cassação da sentença que extinguiu o processo sem apreciação do mérito, não é lícito ao tribunal enfrentar a questão de mérito que não integrou o pedido do recorrente e, por isso, não passou pelo contraditório da apelação.

Não é aceitável, todavia, que podendo o apelante definir a extensão do recurso, venha o Tribunal a decidir questão que intencionalmente a parte recorrente não quis incluir na devolução recursal. Cabendo-lhe o poder legal de fixar o conteúdo da apelação (art. 515, caput), não é de aplicar-se o § 3º do mesmo art. 515, quando o recurso da sentença terminativa não contenha pedido de apreciação do mérito da causa[14].

Na mesma trilha é o ensinamento de Leonardo José Carneiro da Cunha:

Como já se viu, a devolutividade da apelação e, de resto, a de qualquer recurso é definida pela parte recorrente. Assim, cabe ao apelante fixar a extensão do efeito devolutivo de sua apelação, diferentemente da profundidade que é estabelecida em lei. Em relação à apelação, a profundidade de seu efeito devolutivo é ampla, em virtude da regra contida nos §§ 1º e 2º do art. 515 do CPC. Já a extensão é, repita-se, fixada pelo recorrente, nas razões de seu apelo. Então, o tribunal, concordando ser caso de análise de mérito, somente poderá dele conhecer, após dar provimento ao apelo na parte que impugna sentença terminativa, na hipótese de o apelante requerê-lo expressamente em suas razões recursais[15]

Ponderando tais questionamentos, alguns doutrinadores argumentam que a matéria não está ligada ao princípio dispositivo, mas sim, com a competência, aduzindo que a norma legal, ao ampliar o efeito devolutivo do recurso de apelação, atribuiu ao tribunal competência funcional para julgar a lide. Originariamente, a competência para decidir a lide é do juiz de primeiro grau. Entretanto, se não o faz por entender que o processo deve ser extinto sem julgamento do mérito, a competência para a decisão de mérito é transferida ao tribunal, desde que preenchidos os requisitos enunciados no 3º, do art. 515 do CPC[16].

Merece menção também o fato de que a doutrina entende não ser possível a aplicação do princípio da proibição da reformatio in pejus, para piorar a situação do apelante, sem que tenha a outra parte também recorrido.

O normativo processual em discussão, ao estabelecer que o Tribunal, afastada a sentença de extinção do processo, julgue o mérito da causa, abriu a possibilidade de, no julgamento da lide, a decisão ser desfavorável ao apelante. Daí terem surgido dúvidas sobre tal possibilidade representar uma violação ao princípio da proibição da reformatio in pejus.

Parte da doutrina, entretanto, concluiu que não há violação, pois, ao julgar o mérito, o Tribunal não estará reapreciando uma matéria, mas adentrando no mérito da questão pela primeira vez. Seria, pois, absurdo admitir a reforma para pior de algo que, a bem dizer, ainda não foi formado.

Essa é a posição incorporada por Ricardo Procópio Bandeira de Melo:

Na hipótese prevista no § 3º do art. 515, dar-se-á um primeiro julgamento sobre o mérito, ou seja, sobre a pretensão de direito material deduzida na própria petição inicial. Vale dizer, não se verá a parte diante de um segundo julgamento de mérito que lhe seja desfavorável, sem ter havido pedido a respeito, naquilo que ela houvera sido vencedora no julgamento de primeiro grau. O caso é de não ter havido o julgamento de primeiro grau, de modo que o julgamento do tribunal, na hipótese do § 3º, do art. 515, é do mérito da ação em primeiro grau, isto é, caberá ao tribunal acolher ou desacolher o pedido feito à inicial[17].

Em sentido divergente, já se manifestou José Roberto dos Santos Bedaque:

Outro problema diz respeito a eventual resultado menos favorável ao apelante, pois uma carência poderia transformar-se em improcedência. (…) Admitida essa premissa, chega-se à conclusão inexorável de que o sistema processual brasileiro passou a admitir, ainda que em caráter excepcional, a reformatio in peius. O apelante pretendia simplesmente a cassação da sentença terminativa e acabou recebendo pronunciamento de mérito contrário a seus interesses. Sem dúvida, sua situação piorou com o resultado do julgamento realizado em 2º grau. Mas a solução é previsível e justificável, pois representa simplesmente a antecipação de um resultado que, mais cedo ou mais tarde, viria a ocorrer. Aceita-se a limitação ao duplo grau, princípio inerente ao sistema, mas não dogma intangível, em nome da celeridade processual, especialmente porque não se vislumbra prejuízo a qualquer das partes. O autor sabe de antemão o risco de optar pela apelação. Caso não pretenda corre-lo, poderá propor nova demanda, eliminando os vícios que acarretaram a extinção do processo[18].

Derradeiramente, traz-se a lume a problemática da remessa obrigatória e o § 3º, do art. 515, do CPC. Com efeito, algumas causas versam sobre interesses públicos, como as da Fazenda Pública – federal, estadual ou municipal. Por essa razão, o Código de Processo Civil prevê, em seu art. 475, a exigibilidade do cumprimento do princípio do duplo grau de jurisdição, quando a sentença for contrária a esses interesses. Transcreve-se o referido artigo:

Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:

I – proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público;

II – que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI).

§ 1o Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los.

§ 2o Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor.

§ 3o Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente.

Logo, proferida sentença contrária aos interesses públicos, concernentes às hipóteses previstas nos incisos do art. 475, do CPC, o juiz ordenará obrigatoriamente, a remessa dos autos ao tribunal competente, havendo ou não apelação da parte vencida. Tais prerrogativas conferidas à Fazenda Pública são emanações da supremacia do interesse público sobre o particular e visam resguardar a administração pública e, indiretamente, acautela os interesses da sociedade. 

Relembre-se que a natureza jurídica do reexame necessário não é de recurso, e sim de condição de eficácia da sentença. Esse é o entendimento de Nelson Nery Junior que preleciona ser a remessa obrigatória uma condição de eficácia da sentença, manifestação do efeito translativo no processo civil. Transfere-se o conhecimento integral da causa ao tribunal superior, com a finalidade de estabelecer-se o controle sobre a correção da sentença de primeiro grau[19].

Ademais, sobreleve-se que, ao estabelecer que são sujeitas ao reexame necessário as sentenças proferidas contra a Fazenda Pública, boa parte da doutrina entende que tal dispositivo somente compreende as sentenças de julgamento de mérito. Não há duplo grau obrigatório, portanto, nos casos em que o processo se extingue por meio de sentença terminativa, ainda que vencida, em tal hipótese, a Fazenda Pública. É essa a lição de Luiz Wambier e Teresa Arruma Alvim Wambier:

A expressão ‘proferida contra’, em nosso entender, deve abranger exclusivamente sentença de mérito de improcedência, e não aquela em que a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município e suas respectivas autarquias e fundações de direito público sejam autores e em que tenha havido extinção do processo sem julgamento do mérito[20]

Apresentando divergência, Caetano Lagrasta Neto afirma que:

O alcance da expressão ‘proferida contra’ abrange as decisões de extinção do processo, sem apreciação do meritória, acreditando-se que seu verdadeiro sentida seja: ‘decisão contrária’ aos entes enumerados, quer se apresentem no processo na condição de autores ou réus[21]

O alcance da expressão “proferidas contra” encontra contornos destacados, pois, ao se entender que apenas as sentenças de mérito estão sujeitas ao reexame necessário, então é forçoso concluir que se aplica, outrossim, o disposto no art. 515, § 3º, do CPC, às sentenças de extinção do processo em que a Fazenda Pública seja autora, podendo, neste caso, o Tribunal conhecer diretamente do mérito da demanda, quando a questão for eminentemente de direito ou estiver em condições de imediato exame.

A questão, todavia, não é pacífica em doutrina. Alguns juristas argumentam que a mesma Lei nº. 10.352/01, que acrescentou o § 3º ao art. 515, do CPC, também trouxe expressivas modificações no art. 475 do mesmo diploma legal. Portanto, se quisesse o legislador instituir mais uma forma de abrandamento da remessa ex officio poderia fazê-lo, mais silenciou, o que significa que essa não era a sua intenção.

Ademais, os mesmos opositores da aplicação § 3º, do art. 515, do CPC, em desfavor da Fazenda Pública, argumentam que a decisão contrária ao ente público surgiria somente na segunda instância e não seria condicionada à remessa obrigatória. Estar-se-ia, assim, desconsiderando, a regra do reexame necessário, que é uma prerrogativa da Fazenda Pública, ou seja, uma norma de caráter especial, que não pode ser afastada por norma geral.

Assim, e em conclusão, não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade no art. 515, § 3º do CPC e nem ofensa ao duplo grau de jurisdição, tendo o dispositivo aprimorado o sistema recursal pátrio, agilizando o procedimento e minimizando a duração do processo em homenagem a celeridade processual.


Notas

[1] CAMBI, Eduardo. Mudando os rumos da apelação : comentário sobre a inclusão, pela Lei 10.352/2001, do §3º ao art. 515 do CPC. In Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos e de Outros Meios de Impugnação às Decisões Judiciais. Coord. Nelson Nery Jr. e Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo : RT, 2002, p.179/180.

[2] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. v. 2, 7ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 91

[3] THEODORO JÚNIOR, Humberto. “Inovações da Lei 10.352/2001, em matéria de recursos cíveis e duplo grau de jurisdição”. In NERY JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coords.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos e outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. v. 6. p. 263.

[4] AMARAL SANTOS, Moacyr. “Primeiras Linhas de Processo Civil”, 3º Volume, 15ª ed., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 83/84.

[5] THEODORO JUNIOR, Humberto. Op. Cit. p. 32.

[6] NOGUEIRA, Antônio de Pádua Soubhie. Aplicações do novo § 3º do art. 515 do CPC. Repertório de Jurisprudência IOB. V. III. 2004, p. 253.

[7] THEODORO JUNIOR, Humberto. Op. Cit. p. 636.

[8] Art. 132 do CPC: O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência, julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos a seu sucessor.

[9] THEODORO JUNIOR, Humberto. Op. Cit. p. 636.

[10] POZZA, Pedro Luiz. As Novas Regras dos Recursos no Processo Civil e Outras Alterações. São Paulo : Forense, 2003, p. 27.

[11] BARIONI, Rodrigo. “A proibição da reformatio in peius e o § 3º do art. 515 do CPC”. ”. In: NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coords.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, v.8, p. 709.

[12] DINAMARCO, Cândido Rangel. “Os efeitos dos recursos”. In: NERY JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim Wambier (coords.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. v. 5. p. 39.

[13] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Apelação: questões sobre admissibilidade e efeitos. In. NERY JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coords.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outros meios de impugnação às decisões judiciais.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. v. 7. p. 452.

[14] THEODORO JUNIOR, Humberto. Op. Cit. p. 638/639.

[15] CUNHA, Leonardo José Carneiro da. “Inovações no processo civil (comentários às leis 10.352 e 10.358/2001)”. São Paulo: Dialética, 2002, p. 85.

[16] BARIONI, Rodrigo. Op. Cit. p. 715/716.

[17] BANDEIRA DE MELO, Ricardo Procópio. Op. Cit. p. 687.

[18] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Op. Cit. p. 454.

[19] NERY JUNIOR, Nelson. “Princípios do processo civil na Constituição Federal”. São Paulo: RT, 1999, p. 62.

[20] WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. “Breves comentários à 2ª fase da reforma do código de processo civil”. 2. ed. São Paulo: RT, 2002, p. 118.

[21] LAGRASTA NETO, Caetano. “Anotações sobre as mais recentes alterações ao Código de Processo Civil”, in RT 801/45.

Sobre a autora
Natália Hallit Moyses

Procuradora Federal. Chefe do Serviço de Orientação e Análise em Demandas de Controle da PFE-INSS. Especialista em Direitos Humanos, Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOYSES, Natália Hallit. Reflexões sobre o art. 515, § 3º do Código de Processo Civil e o duplo grau de jurisdição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3507, 6 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23658. Acesso em: 21 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!