Seguindo tranquilo pela estrada conduzindo o meu automóvel na viagem de férias, sem me preocupar com os pedágios, passo pelo perímetro urbano e observo viaturas policiais com a placa de fundo cinza e letras pretas, típicas de veículos particulares, indicando a primeira vista que se trata de uma frota terceirizada. Ao volante, me pergunto, diante dessa cena, os limites e as possibilidades da terceirização de serviços públicos, um debate acalorado na década de 1990, mas que hoje se faz presente, de forma velada, nas contratações e soluções governamentais.
A Lei n° 8.666/93, o estatuto das licitações, indica Art. 6º que “VII - Execução direta - a que é feita pelos órgãos e entidades da Administração, pelos próprios meios” e que “VIII - Execução indireta - a que o órgão ou entidade contrata com terceiros sob qualquer dos seguintes regimes: a) empreitada por preço global - quando se contrata a execução da obra ou do serviço por preço certo e total; e b) empreitada por preço unitário - quando se contrata a execução da obra ou do serviço por preço certo de unidades determinadas.” Apresenta o normativo duas opções de execução das tarefas que dão suporte a prestação de serviços públicos a população, em que existe a intervenção do Estado.
Na execução indireta, existe a figura de um acordo bilateral entre o poder público e o prestador de serviços, que rege a transferência as organizações privadas (sociedades empresariais, associações ou fundações)de recursos financeiros oriundos dos orçamentos públicos, para remunerar a execução dessas atividades, de acordo com regras pré-estabelecidas. Não é uma questão simples a definição do que deve ter aexecução pela via direta ou indireta, pois essa decisão é precedida da questão do quê o Estado deve financiar/subsidiar, ou o que deve ser transferido para exploração da atividade econômica pelo mercado. Ou seja, onde ele atuará como indutor, e uma vez que haja a execução pelo Estado, se essa será pela sua estrutura própria ou pela terceirização para empresas ou OnGs.
A discussão do que deve ser executado diretamente pelos servidores e empregados públicos e o que deve ser realizado por terceiros é polarizada e extremamente ideologizada, de forma que, na prática,transferimos ao privado a execução de tarefas impróprias e mantemos no âmbito estatal outras de igual qualidade, por força de grupos de interesse e injunções políticas, configurando-se essa questão do papel do Estado, na nossa humilde opinião, como uma das mais relevantes nas discussões sobre gestão pública no momento atual, considerando ainda os atrativos volumes de recursos dos fundos públicos.
Tem-se observado nos discursos que a transferência a terceiros se pauta, de modo geral,pelo pressuposto de que o público é ineficiente e o privado funciona, em especial pela possibilidade de demissão ou troca de fornecedores ineficientes em um desenho de execução indireta. Esse axioma é sujeito a questionamentos pelos eventos do mundo real, na prestação precária de serviços terceirizados e na ação com excelência de outros de execução direta, na presença de “cisnes negros” que nos levam a questionar essa visão absoluta da questão. A competitividade não é a única forma de se sustentar as relações com ganhos mútuos. Os estudos de arranjos em rede indicam que temos desenhos cooperativos e competitivos convivendo entre si nas organizações.
Quando o privado se faz eficiente? Não é simplesmente por ser privado! A competitividade, com certeza, é um fator, mas a existência de metas e a inserção de um sistema de avaliação são outros fatores de indução da eficiência mais próximos da realidade do serviço público. A execução direta pode importar modelos de competitividade, mas isso não pode desconsiderar a utilização de metas e sistemas de avaliação, que mirem não apenas no suposto concorrente, mas também no passado, como indicativo de melhoria.
A análise da eficácia e da eficiência na execução de tarefas no serviço público pode ser relacionada a algumas categorias, que exploraremos ao longo dessas breves linhas, para fins didáticos: a estrutura do mercado, os mecanismos de avaliação, os instrumentos de pressão popular e a relevância dessa atividade no contexto estratégico.
No que tange a estrutura do mercado, as aulas de economia nos mostram que um mercado concorrencial com poucos atores ou dominado por um ator rompe a lei de oferta e procura, pela falta de opções dos consumidores de troca de fornecedor que atendam as suas necessidades, gerando submissão nos quesitos de preço, atendimento e qualidade, tornando os clientes escravos de organizações que lucram de forma exorbitante.
Cabe aos mecanismos de regulação estabelecer a normatização desses mercados. Mas, nos perguntamos: seria o Estado e seus mecanismos de regulação suficientes? Temos o mito da normatização, que apenas a regra estabelecida resolve o problema, mas no campo dos serviços prestados a população por meio de execução indireta, observa-se a fragilidade desses dispositivos, principalmente diante das peculiaridades do nosso sistema jurisdicional e da falta crônica de associativismo entre nossos cidadãos.
Assim, seja pela execução direta ou pela indireta, dependendo das dimensões e da peculiaridade do serviço, os governos se veem em mercados monopolísticos ou cartéis, com serviços essenciais nas mãos dos seus órgãos ou de empresas, mas ambos os casos em desenhos de dependência, o que se agrava no caso privado pelos interesses ligados a lucratividade e aos dividendos dos acionistas.
Por seu turno, os processos de execução da ação estatal carecem de mecanismos avaliativos. Vivemos no Brasil uma incipiente cultura de avaliação da ação estatal. Seja a auto avaliação, a avaliação externa, a avaliação rotineira. Crescemos em uma gestão sem cultura de diagnósticos preventivos e corretivos. Em processos muito específicos, com grande carga de conhecimento tecnológico agregado, a atividade de avaliação e monitoramento se torna tão complexa quanto a atividade objeto de análise, exigindo corpo técnico e expertise. Assim, direta ou indireta, o Estado não pode abrir mão do seu papel de acompanhar a execução, pelos resultados, mas de olho nos processos, para não ser surpreendido em situações que,pela sua tendência, conduzam a prejuízos plenamente evitáveis.
O descrédito com a atuação estatal leva as comunidades a ter um baixo nível de exigência do que lhes é ofertado pelas políticas públicas, envolvendo-se e contribuindo pouco com as tarefas ligadas a essas políticas. A transparência, nesse sentido, permite que as informações sobre os serviços prestados, seja pela execução direta ou indireta, circulem e que os cidadãos possam avaliar se a realidade coaduna com o planejado, retroalimentando os sistemas administrativos, sejam os de controle, sejam os de regulação.
A avaliação necessita de dados consistentes, em especial no que tange ao custo. Na exaltação das fenecias da execução indireta, quando falamos da merenda terceirizada, do hospital repassado para uma Organização Social (OS), exaltamos os fatores de qualidade percebidos, como justificativa para aquela opção, mas por raras vezes analisamos os custos, em especial os de longo prazo, daquela opção diante da execução direta, especialmente pela falta de uma cultura de custos na administração pública, o que faz essas comparações incompletas.
Para fins de avaliação, o mantra de que o privado é eficiente deve ser rompido, identificando junto a cada tarefa as peculiaridades de se adotar um modelo de execução direta ou indireta, considerando-se ainda que a avaliação que fornecerá subsídios sobre a coerência de se adotar uma ou outra opção frente a um problema na política pública. Indicadores não são exclusividade do público ou do privado e a atividade avaliativa deve olhar as tarefas como um todo, executadas em ambas as modalidades, como subsídio para a construção de modelos de atuação.
Destarte, os instrumentos de pressão da população beneficiária dos serviços públicos devem ser considerados no processo de escolha entre a execução direta e indireta, pois esses permitem que os “clientes” interajamcom os serviços prestados. Fica a questão: a população tem mais poder, mais ingerência em uma atividade porexecução direta ou indireta? Bem, existem casos e casos, pois o executor privado se ampara em um contrato, cuja formalidade o mantém mais alheio a pressões. Entretanto, o público pode estar em uma situação de capitalização política que o permita ignorar as pressões de determinados segmentos, mesmo estando inserido no jogo eleitoral. Por vezes, o privado utiliza-se da própria pressão popular para agir junto ao governo para atender seus pleitos, utilizando o fantasma da descontinuidade dos serviços, o que aliado a baixíssima elasticidade do consumidor-governo,torna refém a desamparada população, dependendo do frágil e polêmico mecanismo da encampação.
Terceirizar serviços típicos, ou seja, que não são ofertados normalmente no mercado a outras organizações, e que tenham relação com atividades contínuas essenciais à coletividade, representa um grande risco na terceirização, pois empresas e contratos se quebram e a improbidade não é exclusiva do público ou do privado. Falamos às vezes de terceirizar para induzir o mercado, mas esse busca também diminuir seus riscos e maximizar seus lucros, em uma equação de objetivos por vezes dissonantes, o chamado “conflito de agência”, fato queé esquecidoquando esse assunto da execução indireta vem a baila.
Assim, quanto maioresas dimensões do processo de terceirização, mais fácil alimentamos um monstro e por ele sermos devorados, pela dificuldade de relação da qualidade dos serviços com a remuneração da organização. Aí, já conhecemos o filme: procure a ouvidoria, o SAC, fale com nossos atendentes, anote a senha. Partimos para o Estado, na sua atividade de regulação, ou procuramos as prestações jurisdicionais, amargando a burocracia mesmo diante do privado. Isso tudo não consegue abalar a relação contratual desse monopólio, que ainda que seja privado, guarda todas as mazelas que atribuímos ao público.
Por fim, a opção de execução deve considerar o papel estratégico do Estado. Estratégico no sentido de romper a visão minimalista de enxergar apenas aquele momento na construção da solução, levando-se em conta o futuro e o contexto, nas relações transversais de cada ação .
A ação indutora do Estado gera empregos e externalidades, sendo demandada em diversos setores por algum tempo. O mesmo setor privado que diz que o Estado atrapalha, pede socorro a este nos momentos de crise. Da mesma forma, outras tarefas, que envolvem o seu poder de império, são historicamente executadas pela via direta, o que não inibe a sua terceirização em uma ou outra ação que demande expertise, mas que seja um know-how que venha da experiência similar no privado e não o privado com o “manto da eficiência” inventando a roda quando contratado pelo setor público.
Infelizmente, a discussão da execução indireta e direta não tem um gabarito, uma resposta padrão, sendo permeada de interesses privados de dentro e de fora do aparelho do estado, em discursos falaciosos. Ainda que o gerencialismo indique que o Estado não deve remar e sim navegar, fica a questão das dificuldades de um comandante de conduzir a sua embarcação quando seu poder sobre ela é restrito, nos temidos motins e nas imprevisíveis tempestades.
A qualidade do serviço público, em qualquer modalidade de execução, deve ser aferida em indicadores de insumos e de produtos, na percepção dos beneficiários, contando com a ferramenta diferencial do setor público, a participação da população em diversos fóruns, opinando e fiscalizando, rompendo a máxima reducionista de que tudo pela via privada é bom, mas também superando as forças corporativas que ocultam as fragilidades da execução direta.
Seguindo de férias pela estrada, diga-se de passagem, de boa qualidade e sem pedágio, continuo nessa reflexão sem solução aparente no plano abstrato. Pergunto-me se os mecanismos jurídicos e administrativos existentes dariam conta no caso da quebra da empresa prestadora de serviços à força policial, que parâmetros de comparação temos para saber a justeza daquele preço, quantas empresas no mercado poderiam opor-lhe resistência em um mercado concorrencial. Perguntas práticas, mas que indicam que a análise dessa opção, direta e indireta, merece considerar o futuro e o contexto e que a natureza de determinadas atividades é complexa, exigindo soluções de igual natureza.