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O direito à visita íntima e a ressocialização do indivíduo submetido à pena privativa de liberdade

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Agenda 23/04/2013 às 16:01

Não se pode deixar de aplicar um direito inerente ao ser humano, como é o exercício livre de sua sexualidade, pela precariedade das condições em que ocorre um direito anterior a ele, como o é o tratamento digno e a assistência durante a execução da pena.

Se se proíbem aos cidadãos uma porção de atos indiferentes, não tendo tais atos nada de nocivo, não se previnem os crimes: ao contrário, faz-se que surjam novos, porque se mudam arbitrariamente as idéias ordinárias de vício e virtude, que antes se proclamavam eternas e imutáveis.

(Cesare Bonesana, Marchese di Beccaria)

Resumo: A recente chegada na Câmara Federal de projeto de lei com proposição estabelecendo o direito à visita íntima para o menor infrator e a polêmica nacional suscitada trouxeram à tona a problemática do exercício da sexualidade no ambiente prisional, bem como as condições degradantes em que o condenado cumpre sua pena privativa de liberdade e os reflexos na eficácia de seu objetivo ressocializador. Assim, objetivou-se analisar a importância do desenvolvimento da sexualidade do encarcerado para o processo de preparação e reintegração à vida livre em sociedade, por meio do instituto da visita íntima. Tendo em vista a complexidade e atualidade do tema e a reduzida bibliografia existente, fez-se o uso de pesquisa bibliográfica e documental abrangendo vídeo documentário, artigos jornalísticos, leis e relatórios do Ministério da Justiça sobre execução penal. Para a consecução desse objetivo, delineou-se o estudo mediante aparato geral sobre as teorias que informam as penas privativas de liberdade, sua finalidade e seu estágio atual, analisando-se ainda a aplicação de programas de tratamento com fim ressocializador, de modo que se pudesse verificar na legislação nacional e estadual base para aplicação das visitas íntimas, tendo em vista ausência de previsão legal para o instituto e a grande variação de procedimentos administrativo-penitenciários de acordo com a Unidade da Federação pesquisada, entre elas o Tocantins. Considerou-se, por fim, ser a visita íntima um direito e uma alternativa ao problema da inaplicabilidade de outro direito, o exercício da sexualidade, que, por sê-lo inerente ao ser humano como uma de suas funções biológica e psíquica essenciais, promotor de sua integralização e da comunicação com o outro e com o próprio mundo, sua não concretização viola o ideal ressocializador da pena como sanção de caráter preventivo e retributivo, conforme exterioriza o atual sistema prisional brasileiro.

Palavras-chave: Visita íntima, Pena Privativa de Liberdade, Ressocialização.

Sumário: 1.   INTRODUÇÃO. 2.   PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE E RESSOCIALIZAÇÃO. 2.1 O castigo do crime. 2.2 Fontes de Legitimação da pena.2.3 Da pena privativa de liberdade. 2.4 A pena privativa de liberdade e objetivo ressocializador. 3.   O PROBLEMA SEXUAL NAS PRISÕES. 3.1 Breve panorama do Sistema Prisional Brasileiro na atualidade. 3.2 O cárcere e a privação da sexualidade. 4.   DA VISITA ÍNTIMA. 4.1 Conceito e origem. 4.2 Direito ou Benefício?. 4.3 A intimidade da visita nos estabelecimentos penais femininos. 4.4 Homossexualismo e Visita Íntima. 4.5 A visita íntima e o menor infrator. 5.   Considerações Finais. REFERÊNCIAS. ANEXO A – Formuário de Visita ao Reeducando das Penitenciárias Federais. ANEXO B – Termo de Responsabilidade para Visita Íntima ao Reeducando das Penitenciárias Federais.


1.      INTRODUÇÃO

É de grande atualidade e evidente relevância social, técnica e científica o estudo da visita íntima como alternativa à problemática da sexualidade nas prisões e sua contribuição para o processo de ressocialização do indivíduo que cumpre a sanção punitiva de privação da liberdade de ir e vir.  

A recente chegada à Câmara dos Deputados de projeto de lei ampliando a abrangência do direito às visitas conjugais, atingindo o menor submetido à medida sócio-educativa, e a reação da opinião pública, rechaçando a medida enquanto benefício ou regalia incompatível com o cumprimento de pena, trouxe à tona a importância da análise do exercício da sexualidade como um direito não alcançado pelas restrições resultantes de sentença penal condenatória, bem como evidencia a dificuldade de se tratar de um tema que envolve grandes tabus e “pré-conceitos” socioculturais, essencialmente no que diz respeito às relações de gênero e orientações sexuais distintas, como é o caso da sexualidade e do estigma do condenado ao cárcere – marginalizado antes, durante e depois do cumprimento de sua pena – que se reflete, muitas vezes, na norma jurídico-penal que define o normal e o “anormal” aceitável socialmente.

Além da problemática sob o enfoque da significância coletiva, exsurge a questão da aplicabilidade de um direito em face de uma realidade degradante em que se vêem situados os estabelecimentos prisionais no Brasil, gerando altos índices de reincidência criminosa entre os egressos, cuja manutenção das relações afetivas com a família potencializaria a reintegração social.

Além disso, o tema proposto se justifica pela sua relevância científica, tendo em vista a ausência de doutrina jurídica específica, regulamentação ou estudos técnicos e pesquisas sociais que lhe abordem sistematicamente, assim como importância de natureza técnica, ao oferecer aos militantes da ordem jurídica e realizadores da justiça uma abordagem humana no tratamento do encarcerado, alterando posturas e levantando a necessidade de sua normatização.

Assim, o objetivo principal desse trabalho se ateve na análise da importância do desenvolvimento da sexualidade do preso, através da visita íntima, para o seu processo de preparação e reintegração à vida em sociedade, no além cárcere.

Buscando a consecução deste objetivo, o presente trabalho dividiu-se em três fases sucessivas que se refletiram na abordagem dos capítulos que lhe integram, todos eles construídos mediante levantamento bibliográfico e documental, este último tipo de pesquisa ganhando essencial destaque quando da análise do tema da visita íntima na ordem jurídico-legal e na recepção de sua aplicação por parte da sociedade civil, haja vista a reduzida quantidade de pesquisas e trabalhos científicos sobre o tema e regulamentação normativo-legal específica que prescindisse de interpretações principiológicas, voltando-se esse estudo para a análise de artigos jornalísticos, relatórios e informações disponibilizadas pelo Ministério de Justiça do Brasil através de seus órgãos administrativo-penitenciários.

Desta forma, no primeiro capítulo, intitulado Pena Privativa de Liberdade e Ressocialização, foram tratados temas que conceituaram a pena e sua finalidade ao longo da história da humanidade, a evolução de sua natureza de custódia para sanção penal, a necessidade econômico-social e normativa da utilização dos programas de tratamento e ressocialização para a massa carcerária, mão-de-obra ociosa e resultante de uma marginalização criminógena da sociedade.

No capítulo dois, O Problema Sexual nas prisões, a situação decadente da pena privativa de liberdade e os problemas de natureza heterogênea que dela emanam são abordados brevemente para abraçar a sexualidade e a importância do seu exercício para a humanização do ser submetido as suas condições degradantes, bem como para o homem dito “livre”, preso nos seus próprios preconceitos e valores socialmente introjetados.

Por fim, o terceiro e último capítulo, Da Visita Íntima, elevando o instituto como alternativa para o problema sexual nas prisões, e, assim, fator essencial para elevar a auto-estima e auto-conhecimento do indivíduo privado de sua liberdade, assim como mantenedor das relações sócio-afetivas com sua família, ensejando-o em suas atitudes e comportamentos o laço e a expectativa positiva da mudança ante à ordem legal, ao valor do outro e do bem comum como incentivo para o retorno consciente e eficaz à vida livre, ressocializando-o de modo pleno e impedindo, assim, a marginalização do parceiro livre, que dele depende psíquica e socialmente, e, muitas vezes, material e financeiramente, concretizando princípios como a individualização e personalização da pena, que ainda deve punir, mas não desproporcionalmente ao mal cometido.


2.      PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE E RESSOCIALIZAÇÃO

 2.1 O castigo do crime

Se a mulher de um homem tiver sido pega dormindo com outro varão, ambos serão atados e jogados no rio com pés e mãos atadas ou poderá ser jogada do alto da torre do recinto. (GRIMBERG apud MOTA; BRAICK, 1997, p. 20)

Desde os tempos mais remotos, a idéia de se retribuir o mal com o próprio mal fundamentou a justiça penal. E aos homens que caluniavam, difamavam ou injuriavam restava o corte de suas línguas; as mulheres adúlteras ora eram mortas a pedradas ora afogadas, conforme se verifica na chamada Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), presente no Velho Testamento e no primeiro código de leis escrito, Código de Hamurábi, do qual se extrai o trecho acima.

A “justiça cega” da vingança também imperou no Brasil Colônia entre 1603 e 1830, com a aplicação efetiva do catálogo de monstruosidades que definia o Livro V das Ordenações Filipinas, dedicado aos delitos e penas regidos pelo direito canônico.

Um verdadeiro código de barbáries em que a definição de crimes apontava a indistinção das esferas religiosa, moral, política e social na justificação das punições; heresia ou feitiçaria confundiam-se com crimes de natureza econômica, como a falsificação de moeda e o furto; com crimes políticos / “de lesa-majestade”, como o desrespeito a símbolos da dinastia; ou com delitos de cunho privado, como o de preferência sexual. (PAIXÃO, 1991, p.15)

O castigo aplicado acompanhava a finalidade da intimidação pelo terror atribuída à lei repressiva, desconsiderando a praticidade de penalidades alternativas, o contexto da ofensa ou a intenção do ofensor; a desobediência por si só legitimava o tormento.

Essa concepção da ordem legal ilustra os altos índices de pena de morte durante a aplicação das Ordenações. Qualquer fato considerado típico poderia comportar diferentes níveis de crueldade em sua execução: “natural”, “cruelmente natural”, “natural para sempre”, pela “força” e pelo “fogo” eram gradações correspondentes à gravidade do delito, cujas alternativas punitivas ainda sustentavam o poder intimidante da violência, como o confisco de bens e extensão da infâmia aos seus descendentes, degredo, mutilações, torturas vis como o açoite “com baraço e pregão” e marca a ferro em brasa para estigmatizar o criminoso enquanto vivesse. (BRUNO apud PAIXÃO, 1991, p. 15)

Na mesma oportunidade o autor salienta, ao lado do papel secundário atribuído ao juiz – simples administrador de tormentos punitivos –, um processo penal que criminaliza a marginalidade ao legitimar e institucionalizar desigualdades sociais. Penas consideradas vis como aquelas não poderiam abranger estamentos dominantes que, ainda, eram destinatários de privilégios como prisão “sobre suas homenagens”, excetuados certos tipos penais.

É no ápice da militância da filosofia das “luzes” contra as “trevas” e sua mentalidade envolta nas idéias de universalidade, individualidade e autonomia, alterando a própria racionalização da sociedade ocidental, que o espetáculo do suplício enquanto política de punição pública começa a se extinguir. Dava-se à luz uma nova ordem social e legal.

Mandrau, ao analisar o caso da feitiçaria, demonstra como o cerimonial da pena vai sendo obstaculizado e transformado em ato procedimental ou administrativo. Antes do declínio da caça às bruxas, com o Movimento Iluminista do séc. XVIII:

O processo judicial que se seguia a uma acusação pública de feitiçaria era altamente rotinizado. Raspavam-se os pêlos do acusado, buscava-se a marca física atribuída à possessão demoníaca pela aplicação conscienciosa, por médicos, de agulhas no corpo do acusado até a descoberta do ponto de insensibilidade que resultava da possessão e, diante de alguma resistência à confissão, apelava-se para o teste definitivo: atirava-se o acusado, de pés e mãos amarrados, a um rio – acreditava-se que o feiticeiro tinha o poder de não afundar. O próximo passo era a tortura e à confissão seguia-se a fogueira e o confisco de bens. (MANDROU apud PAIXÃO, 1991, p. 16)

Posteriormente, a mentalidade ilustrada apontando fronteiras entre as esferas justificadoras da punição, concentrando-a na jurídico-legal ante às moral e religiosa, acabou também por limiar o normal do patológico, do que se seguiu reação dos órgãos da administração da justiça ao arbítrio na obtenção e análise das evidências do crime de feitiçaria, em conformidade com a nova mentalidade jurídica em formação.

Para Kant, é o momento em que o homem atinge a maioridade e passa a ter confiança em sua capacidade de raciocinar, recusando qualquer arbítrio na imposição da autoridade. (KANT apud ARANHA; MARTINS, 1993, p. 221)

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O poder passa a frear a si mesmo e a liberdade de atuação da autoridade judicial transforma-se no poder-dever de fazer aquilo que é permitido por lei, mediante regras e procedimentos que prescindem dos meros propósitos do Estado e soberano e da moral coletiva. Racionaliza-se a definição do crime, a justificação moral da punição e sua administração. Racionaliza-se, enfim, a justiça criminal.

Do castigo do crime retira-se o caráter de sofrimento cruel, suplício que aduz à irracionalidade e vingança, incompatível com o ideal de Estado, substituindo-o pela pena proporcional à infração cometida.

Assim, com o passar do tempo as penas de natureza atroz e bárbara foram pondo fim aos seus vestígios no Ocidente, embora, como observa Foucault (1997, p. 16-17), a pena de morte ainda mantenha seu caráter de suplício – punição do corpo do condenado –, ela o submete a um conjunto rigoroso de medidas a fim de que o mesmo não sinta o mal, sendo-lhe retirados os seus direitos sem a imposição de sofrimento. São penas isentas de dor.

 2.2 Fontes de Legitimação da pena

A pena é o sofrimento imposto pelo Estado, na execução de uma sentença, ao autor de uma infração penal. Desta noção se depreendem as seguintes características: é um sofrimento, ou sentido pelo prisioneiro como um sofrimento. Este provém da restrição ou privação imposta ao condenado de bens jurídicos que lhe pertencem, como vida, liberdade, propriedade, etc. É imposta pelo Estado. A pena é pública, imposta pelo Estado para a preservação do direito ou para restaurá-lo quando perturbado pelo crime. A sanção deve ser imposta pelos tribunais de justiça como resultado de um julgamento criminal; deve ser pessoal, deve recair exclusivamente sobre o prisioneiro, para que ninguém possa ser punido por atos de outrem; deve estar legalmente estabelecida por lei e dentro dos limites por ela fixados, para um fato previsto pela mesma como delito. (CUELO CALÓN apud GUIMARÃES, 2002, p. 76)

Da violação às normas da ordem legal, surge para o Estado e a sociedade o “poder-dever” da punição, uma obrigação de natureza moral, com um fim em si mesmo. É a atribuição à pena de seu caráter retributivo, mal justo que ataca o mal injusto praticado pelo ofensor. Nas palavras do clássico Cuelo Calón, transcritas acima, resume-se a teoria da pena com fundamento nas teorias absolutas, cujos grandes ensinamentos podem ser atestados por Kant e Hegel.

Analisando o castigo do crime sob o aspecto ético, Kant eleva a realização da justiça ao posto de razão de ser do homem na Terra, de modo que o cometimento da infração leve à penalização pura e simplesmente pela violação da ordem, sem considerar sua utilidade ao intimidar ou recuperar o delinqüente. (GUIMARÃES, 2002, p. 77)

Hegel, por sua vez, ao expor a teoria da justiça retributiva sob o enfoque jurídico, reafirmando a mentalidade de sua época ao tratar o delinqüente como ser dotado de liberdade e racionalidade, defende a aplicação da pena como negação da negação do Direito, tendo em vista que o delito nega o direito, enquanto a pena coaduna-se com a negação do delito. Esta anulação simbólica do crime reafirma o direito e, assim, o princípio moral que constitui a sociedade, transformando o delinqüente em ser honrado pela racionalidade. (HEGEL apud PAIXÃO, 1991, p. 18-19)

A essa fase jurídica da escola clássica, passadas na linha evolutiva as fases das vinganças privada, divina e pública correspondentes à natural reação defensiva, às fases religiosa e ética medieval, respectivamente, sucede-se a defesa social, na qual a pena é vista como um instrumento a inibir novas práticas ofensivas.

Surgem, assim, as teorias preventivas da pena e a escola positiva, em que a sanção deixa de ser uma retribuição pela falta moral a implicar proporcional castigo, revelando-se agora, enquanto medidas sociais de cunho repressivo e preventivo, que se assentando sobre a natureza do delito, evidenciam maior eficácia e humanidade na defesa da coletividade. A justificação moral da punição dá-se pela utilidade social desta, visando a dissuadir o engajamento individual em comportamentos que agridem direitos alheios ou o bem-comum por uma economia política da moralidade em detrimento de imperativos morais absolutos. (BENTHAM apud PAIXÃO, 1991, p. 19)

BETTIOL (2000, p. 654) interpreta magistralmente umas das faces da função preventiva da pena formulada por FEURBACH:

A doutrina da prevenção geral parte da consideração de que o fim único das penas é afastar os delitos da sociedade, em razão do que através da ameaça deve-se considerar presente na aplicação e na execução da pena a idéia de que a generalidade dos cidadãos é colocada na condição psicológica de não cair no delito. A sociedade defende-se de melhor modo contra o crime quando através da ameaça da pena em geral e sua aplicação ou execução em particular, suscita nos cidadãos implicações capazes de frustrar aquelas forças psicológicas que podem existir no ânimo dos cidadãos como determinantes do crime. [sem grifo no original]

Para os defensores dessa doutrina, entretanto, não houve o êxito esperado para a intimidação pela ameaça da cominação legal, que só com a efetiva aplicação e execução da pena ao caso concreto poderia realizar o fim desejado, ante aos tormentos vivenciados pelo apenado em seu cumprimento e o temor em voltar a senti-los.

Assim, nasciam os expoentes da prevenção especial, face outra da teoria preventiva da pena, em que a finalidade permanece na prevenção do crime, mediante a reeducação e ressocialização do delinqüente, e não mais sua retribuição ou intimidação. Foca-se o criminoso em particular dentro da generalidade dos cidadãos em medidas que visam à não reincidência. (CERVINI apud GUIMARÃES, 2002, p 79)

Ante a essa dualidade doutrinária vale questionar qual o verdadeiro custo / benefício da pena aplicada ao delito: punir para prevenir novas práticas delitivas em geral; punir para que quem o pratique não volte a cometê-lo ou retribuir com sofrimento o sofrimento causado à vitima e à sociedade com a prática delituosa? É da junção destas finalidades da pena que novas teorias foram sendo construídas, orientando a formulação dos mais diversos códigos criminais.

Assim, estabelecendo finalidades preventivas da pena em função do estágio da norma, a teoria unificadora teve seu alcance abraçado inclusive pelo vigente Código Penal Brasileiro:

Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: [...]. [Sem grifos no original][1]

Os militantes da teoria unificadora ou mista da pena convergem retribuição, prevenção geral e específica como aspectos do complexo fenômeno que se traduz na pena, retribuição que persegue os fins de prevenção, preservando a confiança na autoridade estatal como também garantindo os direitos fundamentais do homem. (GUIMARÃES, 2002, p. 79)

A par da grande aceitação desta teoria e de sua influência nos dias atuais, a concepção unitária da pena é vítima de críticas que a elevam à posição de utopia e ao mesmo tempo demonstram que a simples junção de finalidades retributivas e utilitárias não extingue as falhas peculiares a cada uma delas, conforme as palavras de Thompson:

O conceito da tríplice finalidade é bastante familiar mesmo ao homem comum do nosso tempo, para quem ao menos no plano racional, o preso é colocado na penitenciária com vistas a ser punido, intimidado e, principalmente, reformado. [...] Punir é castigar, é fazer sofrer. A intimidação a ser obtida pelo castigo, demanda que este seja apto a causar terror. Ora, tais condições são reconhecidamente impeditivas de levar ao sucesso uma ação pedagógica. (THOMPSON apud CATÃO, 2006)

No contexto atual, originam-se das teorias apresentadas representantes da prevenção geral positiva e do neo-retribucionismo. Daquela, desdobram-se ainda as espécies limitadora e fundamentadora, que define a finalidade da própria pena limitando o poder punitivo estatal pela observância de princípios garantidores, entre os quais a intervenção mínima e a ressocialização, ou especifica a confirmação das normas e seus valores como fim pretendido com a imposição da pena, respectivamente. (SHECAIRA; CORRÊA JR., 2002, p. 132)

Tanto uma quanto outra têm a pena como instrumento para a consolidação do sentimento coletivo de confiança na autoridade do Estado e na eficiência e eficácia da ordem jurídico-legal, recriando no cidadão atitude de fidelidade à lei de forma duradoura. A distinção entre ambas dá-se na atribuição destes fins à função preventiva ou retributiva da pena, conforme nos ensina Morselli:

O erro dos autores da chamada prevenção geral integradora ou positiva consiste em atribuir tudo isto à função geral preventiva da pena, quando, na nossa maneira de ver, trata-se simplesmente dos efeitos típicos da função retributiva, exatamente conforme a óptica da concepção clássica, iluminada pela visão psicodinâmica neo-retributiva. Em síntese, é um erro considerar a consolidação e o reforço dos sentimentos de justiça, de fidelidade à lei e de consciência jurídica coletiva como objetivos finais da pena na concepção de prevenção geral. Devemos, aliás, considerá-los ‘efeitos induzidos’, ou seja, indiretos da função retributiva da pena. (MORSELLI apud GUIMARÃES, 2002, p. 79-80)

Levantadas as distinções entre as teorias retributiva e utilitarista e suas derivações, o ponto em comum quando de sua combinação: a pena privativa de liberdade como regra.

Dela, uma última concepção passa a ser afirmada: a função neutralizadora ou incapacitatória como fonte de legitimação para a privação da liberdade daqueles inadequados ou “inadaptados” ao convívio social, pelo maior espaço de tempo possível.

Nos dizeres de Zaffaroni, na incapacidade de solucionar conflitos sociais, posto que de aplicabilidade a posteriori, e, portanto, de conteúdo inegavelmente irracional, sua irracionalidade deve ser sempre mitigada, utilizando-se para tal, mecanismos principiológicos como a lesividade e a intervenção mínima, em detrimento das severas penas privativas de liberdade. (ZAFFARONI apud CATÃO, 2006)

2.3 Da pena privativa de liberdade

A privação da liberdade nos conduz aos primórdios da humanidade.

Os mais antigos registros literários de que se tem conhecimento já indicavam sua existência.

Das prisões bárbaras, em que homens ou animais eram amarrados em cavernas ou fossas pelos membros ou pelas juntas, passando pelos cárceres em que cavalos mantinham-se isolados à espera do grande sinal da partida – e que viria a ser o lócus de escravos e vencidos nas guerras –, às “penitenciárias” medievais, onde pessoas eram isoladas do mundo dos homens e apresentados ao mundo divino em suas penitências, a privação da liberdade ainda não possuía a função de pena que a modernidade urge como mal necessário.

Assim, a Antiguidade reserva às prisões a função de custódia aos que se ergueram contra as normas de convivência social, de modo a garantir, como as atuais penas processuais, a futura e certa aplicação da sanção penal, não se confundindo com esta, de viés pertencente ao plano do divino.

Confirmavam-se, desta forma, expressões para a posteridade, como a deixada por Ulpiano: “Carcer enin ad continendos homines non ad puniendos haberi debit”; a prisão não serve para o castigo dos homens, mas para sua custódia. (CUELLO CALÓN apud CIPRIANI, 2005, p. 26)

Continua o autor, sobre a existência da prisão no Direito Germânico, ao referir-se a “um édito de Luitprando, rei dos Longobardos (712-744) que dispunha que cada juiz tivesse em sua cidade uma prisão para manter ladrões por 1 ou 2 anos”.

Na mesma linha, a determinação por Carlos Magno, no século seguinte, do recolhimento à prisão – com finalidade corretiva –, das “pessoas de bem” cometedoras de delitos. 

Os primeiros vestígios da prisão moderna só seriam deixados mais tarde, nos “mil anos de trevas” medieval, e com o alicerce da própria Igreja.

A prisão nasce neste momento fruto de desigualdades sociais e éticas percebidas entre os criminosos, que ao arbítrio dos governantes, em função de seus estamentos e da indignidade de seus crimes para o merecimento de penas capitais, poderiam receber penas privativas de liberdade.

A esta Prisão de Estado passaria a ladear a chamada Prisão Eclesiástica, que mediante penitência e oração, em celas longe do mundo e dos homens, oportunizava, pela natureza fraterna e caridosa da Igreja, o arrependimento do mal praticado e a correção. (BITENCOURT, 1993, p. 18)

Não só o arrependimento dos pecados, a consciência da culpabilidade pelo ofendido e o advento de uma mentalidade racional e humanista desencadearam a mudança de concepção custódia-sanção para a privação de liberdade.

Fins menos espirituosos, como o estado de necessidade social e a degradação econômica da população resultante de guerras quase atemporais, encabeçaram a restrição da adoção de penas cruéis sobre o corpo do delinqüente e a introdução das “casas de correción”, readaptando-o para o trabalho e para a vida regrada e a disciplina. (KAUFMANN apud CIPRIANI, 2005, p. 30)

A marginalização social, econômica e política da população no berço da modernidade gerou uma criminalização sem precedentes, impingindo à violência função instrumental para a sobrevivência individual.

O internamento mostra seus primeiros sinais de malefício necessário, e o século XVIII vê o desenvolvimento das penas privativas de liberdade e a criação de estabelecimentos específicos para sua implementação movimentarem-se para a correção da massa delinqüente e manutenção de toda uma “ordem”.

A idéia de prevenção geral na obstaculização de novos delitos aliava-se a razões de natureza econômica, tendo em vista o inegável rendimento do trabalho do internado para sua mantença e a para a do próprio Estado.

Nesta linha, surgem as primeiras instituições penitenciárias, inicialmente em Bridewell, na Inglaterra, em meados de 1.552, em que protestantes transformaram um antigo castelo em alojamento de ociosos e miseráveis – treze anos mais tarde denominado de House of Correction –, e que em 1.566 inspiraria outros condados na construção de similares. Em 1595, a Holanda criaria seu primeiro estabelecimento prisional, específico para delinqüentes do sexo masculino, e, nos três anos subseqüentes, para mulheres. Por sua vez, a França teve o ano de 1656 como marco para o erguimento de seus cárceres para vagabundos e mendigos. Na Itália, o Papa Clemente XI constrói o primeiro estabelecimento do país em 1703, o Hospício de São Miguel, destinado também a menores infratores. (FRAGOSO, 1986, p. 298)

A pena privativa de liberdade inaugurava assim uma nova etapa na racionalização da justiça penal, pondo fim ao ciclo dos antigos métodos de castigo, então falidos por razões de políticas criminais, penológicas e econômicas.

Mas o sucesso da prisão-pena, como salientou o criminologista germânico Von Hentig, passava por uma remodelação de objetivos, que o eram a detenção preventiva e a busca do tratamento educativo. (VON HENTIG apud CIPRIANI, 2005, p. 33)

 2.4 A pena privativa de liberdade e objetivo ressocializador

O sentimento de otimismo na pena privativa de liberdade como resposta penológica que viesse a apagar o passado de horror no castigo daqueles que rompessem as barreiras impostas pela ordem social e as críticas ferrenhas ao seu alcance trôpego de finalidades transformaram simultaneamente o século XIX em marco temporal de apogeu e decadência da prisão-pena.

Inegável a progressividade reformadora no desenvolvimento dos sistemas penitenciários com os aprimoramentos humanitários, positivistas e os da defesa social, e também a agonia e a regressão de um sistema de pena ao seu nascimento monstruoso e incapacitatório de re-construção do ser humano errantes em suas práticas sociais.

Entretanto, conforme averbara Foucault (1994, p. 208 e 244), a pena de prisão não fracassou; pelo contrário, eficientemente cumpriu os objetivos que motivaram sua criação, que sejam a estigmatização, a segregação e a separação dos delinqüentes, sendo a “detestável solução da qual não se pode abrir mão” e, por isso, não he sendo possível a total supressão enquanto meio punitivo, essencial a intervenção positiva e a melhoria de suas condições.

Assim, reiteram-se ensinamentos que conduzem ao “Erreurs monumentales figées dans la pierre” (erros monumentais fixados em pedra), de modo a ensejar teorias em que o problema da prisão situa-se na própria prisão[2].

De se ver que não são poucas as críticas à prisão como sanção cominada ao delinqüente, a maior parte delas incidindo sobre sua incapacidade relativa, ou mesmo absoluta, de se cumprir seu objetivo ressocializador.

Das primeiras manifestações contrárias a sua imposição às atuais percepções que se lhe aviltam, a história evolutiva das prisões na humanidade sempre pôs no solo de sua constante reforma progressiva – frente sua abolição –, o status de viável solução.

Segundo Bitencourt (1999, p. 2), nenhum País jamais seguiu o extremo radical abolicionista, independentemente do regime político ou jurídico adotado, por entender, como se salienta do Projeto Alternativo Alemão de 1966, que a “pena é uma amarga necessidade de uma comunidade de seres imperfeitos como são os homens”. A humanidade demonstra, assim, o caminho da permanente reforma, de cujo roteiro compõe-se a progressiva humanização e liberalização interior, dista igualmente do outro pólo de críticas, o total conservadorismo. [grifo do autor]

E essa mesma história indicativa da constante e insaciável necessidade de reformulação das políticas criminais ante à modificação gradativa dos conceitos e da realidade das práticas penais – infelizmente dotadas de notável confusão prática legislativa e até mesmo doutrinária –, começava a demonstrar a falência do modelo clássico de repressão ao problema social do delito, de base exaustivamente dissuasiva pela atuação do legítimo e inconteste poder punitivo institucionalizado do Estado; a reprimenda pelo castigo como fim preventivo no seio comunitário.

A abordagem do castigo pelas deprimentes e desmoralizantes penas, mantida também na execução das punições mediante o cárcere nos primeiros sistemas penitenciários implantados – com reflexos que ainda hoje cegam a realidade do controle do crime –, revelaria sua incompatibilidade com os princípios norteadores de um Estado de Direito de essência democrática e garantidora de preceitos humanitários como a fundamental ressocialização do infrator.

A reprovação do uso do “arsenal” punitivo repressivo do século XVIII, atacada através da insuficiência recuperadora do delinqüente, tem como verdadeira pedra fundamental a publicação do clássico Programa de Marburgo de Von Liszt, acerca do pensamento finalista do Direito Penal, permanecendo no centro das discussões do Congresso de Bruxelas de 1889 (União Internacional de Direito Penal). Conforme seu argumento principal, a pena privativa de liberdade imposta até então, além de ser incapaz de práticas educativas, carecia de intimidação eficiente, posto que, entorpecia o condenado, retirava-o do seu meio de vida, rompendo-lhe os laços sanguíneos e de afinidade, e ainda deixava-lhe estigmas que dele jamais se afastariam. (MOURULLO apud BITENCOURT, 1997, p. 22).

A nova modelação para teorizar a reação ao delito cometido, de cunho essencialmente humanista, preocupar-se-ia então com a historicidade, a realidade do sistema penitenciário e das políticas criminais adotadas ao centrar sua análise na recuperação do condenado para a vida social, ou seja, na positivação de suas atitudes frente à sociedade, facilitando o reencontro digno no meio social do qual foi obrigado a marginalizar-se.

Boschi, ao defender o princípio de humanidade como informador do justo direito penal, inspirado no respeito à pessoa humana, proclama:

Se as pessoas, erigidas pelo contratualismo à condição de indivíduos no mundo, decidiram repelir, com veemência, por intermédio do “homem artificial”, os padecimentos físicos ou morais que lhes eram infligidos com as penas cruéis, degradantes, desproporcionais, não haveria sentido ético ou jurídico retornar a sua cominação ou aplicação, pois isso implicaria frontal violação dos deveres assumidos quando da celebração do Contrato Social, deslegitimando-se o poder e viabilizando-se, com isso, a volta aos padrões de conduta que mancharam o solo do planeta com o sangue de milhões de inocentes. (BOSCHI, 2004, p. 55)

O dogma do castigo pelo castigo cede espaço ao realista paradigma ressocializador, que concentra no ser humano – na pessoa da vítima, mas também na do ofensor –, o seu debate, e na utilidade da pena o seu instrumento de prevenção, ainda mais específica, como se vê da teoria apontada nas seções anteriores, por concentrar-se no delinqüente concreto, e não aquele a que se abstrai da cominação legal, e na finalidade prática da execução penal, ante ao idealismo codificado de dissuasão.

Sobre a idéia de ressocialização e tratamento como incremento às expectativas e possibilidades de participação social do preso, o belo apanhado de García-Pablo de Molina:

O paradigma ressocializador propugna, portanto, pela neutralização, na medida do possível, dos efeitos nocivos inerentes ao castigo, por meio de uma melhora substancial do seu regime de cumprimento e de execução e, sobretudo, sugere uma intervenção positiva no condenado que, longe de estigmatizá-lo como uma marca indelével, habilite-o para se integrar e participar da sociedade, de forma digna e ativa, sem traumas, limitações ou condicionamentos especiais. Não se trata, evidentemente, de alcançar objetivos sublimes, conversões milagrosas, muito menos mudanças qualitativas de personalidade. Não existe a pretensão oculta em fazer do delinqüente “um homem novo”, nem a perniciosa tentação que denunciara William Sargant: “a conquista da mente humana”. (MOLINA; GOMES, 1997, p. 350-351)

Desta forma, Molina sintetiza os debates fervorosos que situam a ressocialização em seu núcleo enquanto combate alusivo à função de retribuição da pena, cuja eficácia se daria pelo próprio soterramento do modelo ressocializador, reerguendo-a; bem como, numa visão paralela, a utopia de uma ideologia humanista puramente socialista, e, portanto, incompatível com o atual sistema político, econômico e cultural capitalista.

Nesta última linha, o importante, decisivo, mas também conteste pensamento de Alessandro Baratta, segundo o qual existe um nexo histórico-causal entre a manutenção do cárcere e a das relações produtivas na fábrica, ambas instituições sociais capitalistas asseguradoras da desigualdade social e da marginalidade, verdadeiros mecanismos de controle estigmatizadores e repressivos essenciais à sobrevivência do sistema de classes. É esta separação de natureza moral entre honestos e desonestos que ampara o processo de criminalização e que funciona como símbolo do castigo da pena a impossibilitar o seu objetivo ressocializador. Em outras palavras, o sistema penal, mediante os efeitos diretos e indiretos da condenação, produz a marginalização, daí a utopia da pretensão ressocializadora do delinqüente sob essas condições. (BARATTA apud BITENCOURT, 1997, p. 27)

Nesse sentido, a política de grandes transformações sociais ungidas como solução ao problema da incapacidade recuperadora do condenado na sociedade capitalista atribui à comunidade e ao Estado, dotados do poder de controle sobre o indivíduo, a função máxima de ressocialização, ao visualizar no micro-sistema social familiar, nas instituições morais como a escola e a Igreja, o aparato para implementação do objetivo ressocializador pela defesa do bem-estar comum, prevenindo-se a criminalidade. Nessa ótica, a readaptação social penal e penitenciária apresentar-se-ia como faculdade para o delinqüente ajudar-se a si mesmo, responsabilizando-se minimamente pela sua ressocialização. Daí a contestação às críticas de Baratta. Seria necessária a mudança e a revolução no seio do sistema capitalista para a realização deste objetivo, o que em nada melhoraria ou solucionaria a problemática dos condenados submetidos a penas privativas de liberdade degradantes e estigmatizantes até o advento da revolução proletária.

Apesar do antagonismo dessas correntes, verifica-se que em todas elas há a predominância de crenças sobre a aceitação ou rechaça do objetivo ressocializador, exaltando-o ou minimizando-o pela crença ou descrença na sua potencialidade de concretização, o que pode ser explicado pela própria natureza complexa e heterogênea de seu conceito, em mobilidade constante entre teorias / finalidades e a simplificada execução da pena, tendo em seu bojo a unidade apenas na reprovação ao retribucionismo.

Daí o vigoroso questionamento de ser o ideal ressocializador inerente à finalidade da pena ou adstrito a sua execução. A par de sê-la esta última a que parece conduzir a maior parte dos pensadores da atualidade, como verdadeiramente atingir esse fim, mediante um cumprimento de pena humanizado, se a própria pena não carregar em si a tal pretensão ressocializadora?

Para García-Pablos (1997, p. 355), contudo, mais importante para a compreensão da ressocialização se faz a análise do processo de adaptação do condenado aos padrões sociais, levantando para a discussão os pensamentos da socialização e os da sua polaridade correcionalista. Para aquela teoria, o crime consistiria num déficit social, uma carência no processo de socialização do indivíduo que o levaria ao isolamento e ao conflito com os modelos e pautas sociais. Assim, o objetivo da intervenção punitiva seria assisti-lo para sua reinserção social. Contrária a essa adequação funcional do individuo à comunidade, a pretensão pedagógica e tutelar de correição do debilitado socialmente, emendando-o pela reabilitação de sua liberdade interior. Ambas, contudo, eivadas de críticas por serem, respectivamente, criminalizantes da marginalidade e legitimadoras de intervenção penal extrema.

Comparando-se o homem minimalizado e fragilizado pelo correcionalismo ao ser animalesco e perigoso combatido pela prevenção geral – trabalhada nas seções anteriores –, neste último caso, não tendo a reincorporação social o caráter de objetivo do sistema, já que resultado lógico de um isolamento que retirou do criminoso sua periculosidade, ergue-se a posição da Defesa Social como teoria transitória para pôr fim aos delitos e angariar o humanista desejo de ressocialização do infrator para uma nova vida social, em liberdade de ir e vir e de consciência de seus atos.

É o momento de se ensejar um novo modelo de humanização da pena em seus fins e instrumentos de execução com vistas ao recluso e não desfocadas para as ideologias de sistemas sociais defensivos. É o que incita o Estado Democrático de Direito, parte da evolução de nossa história.

Diante dessa necessidade, muito se questionou sobre a validade e a valoração do programas ressocializadores. Em alguns casos, argumentos em comum foram utilizados para ampliar-lhe a importância e, simultaneamente, para tirar-lhes a força.

Aos que os condenam veementemente, por acreditar ser ilegítima a intervenção, qualquer que seja, na pessoa do condenado, não se pode negar que a não-intervenção representa desconhecimento da realidade vivida no cárcere, cuja solução, para ofensor, vítima e a própria sociedade não está em relegar às sombras e ao esquecimento o apenado, mantendo e, mesmo, ampliando, o leque de criminosos e, com isso, alterando os limites da ordem e da justiça.

Além do mais, operar e proclamar a ineficácia de um tratamento em geral é negar a possibilidade de se reformar e “re-construir” indivíduos por si só pertencentes a grupos e históricos de vida distintos, de forma que ao se criticar, que se critiquem determinados programas, com base em seus aspectos e fatores tomados por base, antes de se atacar e destruir intervenções com fins positivos, porque se arrisca a negar a realidade de toda uma população, dentro e fora do cárcere:

O ideal ressocializador deixará de ser um mito e um lema vazio de conteúdo quando, depois do oportuno debate científico, seja alcançado um elementar consenso em torno de três questões básicas: quais objetivos concretos podem ser percebidos em relação a cada grupo ou subgrupo de infratores, quais meios e técnicas de intervenção são válidos, idôneos e eficazes em cada caso e quais limites não devem ser superados em qualquer tipo de intervenção. (GARCÍA-PABLOS, 1997, p. 398)

A Lei Orgânica Geral Penitenciária espanhola (Lei nº. 1, de 26.09.1979), que prevê expressamente programas de tratamento ou intervenção de natureza científica como forma de reabilitação social de seus apenados parece iluminar a realidade carcerária de efetividade, embasando a posição criminológica desse autor.

Não inserindo diferenciações visíveis entre o que consiste em práticas penitenciárias e práticas interventivas, designa, já em seu artigo 59, § 1º, o tratamento enquanto complexo de atividades imediatamente voltadas para a finalidade social de reinserção e reeducação do preso. A referida lei atribui à ressocialização concepção de transformação do condenado em pessoa com disposição introspectiva e capacidade para respeitar as leis de natureza penal e, ao mesmo tempo, satisfazer suas necessidades. E assinala no parágrafo subseqüente, que possa o mesmo respeitar a si mesmo e à sociedade, nos planos da família e do outro. Adiante (art. 60, § 1º), ressalta que devem ser ainda considerados a personalidade peculiar ao agente e os obstáculos ambientais para a perseguição daqueles fins, de forma que os encarregados do tratamento usem todos os métodos que, “respeitando sempre os direitos constitucionais não atingidos pela condenação, possam facilitar a obtenção daqueles”.

Da leitura da legislação espanhola, da qual emana pensamento socialmente positivo para o tratamento do recluso, vê-se a elevação de direitos inerentes ao homem – não contemplados entre os efeitos da sentença condenatória[3] –, para instrumentalizar o próprio reencontro com aqueles até então suspensos por terem sido atingidos pelos feixes da condenação, e, assim, nitidamente de caráter ressocializador.

A jurisprudência brasileira, por sua vez, elenca como direitos essenciais à ressocialização do preso, a visita familiar e o labor, conforme segue:

O Direito, especialmente o instrumental, é orgânico e dinâmico, somente sendo possível retornar a fase ultrapassada mediante autorização normativa. O ato mediante o qual o juízo defere a progressão no regime de cumprimento da pena é judicial – arts. 112 e 194 –, desafiando agravo – art. 197, todos da Lei de Execução Penal. Imutável ante o silêncio Estado-acusador, descabe revê-lo e, potencializando o título judicial condenatório, suplantado em execução, indeferir, presente o enquadramento do crime na Lei nº. 8.072 / 90, os benefícios tão caros à ressocialização do preso, que são a visita periódica da família e o trabalho extra-muros. Precedente: Habeas Corpus nº. 79.835-1/SP, Primeira Turma, relator ministro Sepúlveda Pertence, decisão publicada no Diário da Justiça de 15 de outubro de 1999. (RIO DE JANEIRO, Tribunal de Justiça, HC. 83.911, Relator: Min. Marco Aurélio, 2004).

Segundo Herkenhoff (2009), o exercício da sexualidade figura entre esses direitos, por não ser subtraído com a prisão do indivíduo.

O mesmo autor, em outra oportunidade (HERKENHOFF, 1998, p. 37), sustenta a tese de que “a ruptura de laços familiares e outros vínculos humanos, a convivência promíscua e anormal da prisão, o homossexualismo não escolhido, mas forçado, são fatores que em nada ajudam a integração do ser”. Reitera, assim, a concepção de que o encarceramento se torna incompatível com o pretendido tratamento, a ressocialização.

García-Pablos (1997, p. 384), ratifica a posição de Herkenhoff, ao demonstrar que os chamados programas de controle repressivo-admonitório (repreensão que denuncia o mal social causado e busca encarecer o bem a ser feito), como o castigo e o isolamento são de escassa utilidade a médio prazo, ocasionando efeitos contraproducentes em relação à ressocialização. Nesse diapasão, ainda critica outros tratamentos que se limitam ao indivíduo, perdendo sua própria efetividade, por não darem a atenção adequada a variáveis cognitivas como a auto-estima do delinqüente, cuja problemática potencializa a criminalidade como meio de oferecimento de poder e domínio do mundo, e que poderia ser apaziguada mediante relações socioafetivas.

No mesmo sentido, o tratamento oferecido pela teoria positiva embasadora da legislação de execuções penais da Espanha, com a proposição do fomento da vontade e da determinação do condenado para a mudança –, partindo-se do ponto de vista de que sua motivação real constitui fator decisivo para o êxito pedagógico, pela re-construção de si mesmo através de uma teoria dirigida para sua situação de vida, suas necessidades emocionais e individuais –, podendo oferecer alternativas a esta constrição do “aqui e agora” e motivar o detento para a submissão ao tratamento. (SCHMIDEBERG apud GARCÍA-PABLOS, 1997, p. 379).

Nítido, então, entender que fatores como a superpopulação carcerária, o clima social no confinamento e a violência condicionam decisivamente o comportamento dos internos, e, portanto, sua motivação para a mudança; para o aquém da margem social.

Sobre a autora
Priscila Wieczorek Spricigo

Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Federal do Tocantins - UFT, Especializanda em Direito Eleitoral e Processo Eleitoral pela Universidade Federal do Tocantins - UFT, Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Tocantins - UFT, Bacharel em Comunicação Social - Habilitação em Publicidade e Propaganda pelo Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP/ULBRA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SPRICIGO, Priscila Wieczorek. O direito à visita íntima e a ressocialização do indivíduo submetido à pena privativa de liberdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3583, 23 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24246. Acesso em: 21 dez. 2024.

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