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Crime de estupro: até quando julgaremos as vítimas?

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Mesmo em plena aurora do século XXI as mulheres ainda são julgadas como na Idade Média, onde somente mulher honesta e virgem poderia ser vítima do crime de estupro desde que, também, ficasse comprovado que ela havia lutado e gritado por socorro.

Resumo: O estupro sempre foi um crime - “tabu”, dele não se fala, não se comenta, não se denuncia. As mulheres, desde os tempos mais remotos, vêm sofrendo caladas e quando têm a coragem para denunciar têm suas vidas reviradas, para se ter a confirmação de que elas são dignas de confiança e credibilidade. Assim, no presente estudo temos uma visão histórica da forma como o estupro e as mulheres são tratados desde a idade média, como a sociedade machista pode contribuir para a perpetuação da cultura do estupro. E também uma classificação vitimológica, como a vítima de estupro se encaixa nela e como essa classificação é distorcida para que a sociedade possa achar uma culpada para o crime, desde que ela seja fora dos padrões considerados normais.

Palavras-chave: Estupro – Mulher – Vitimologia – História – Violência – Culpabilização - Machismo

Sumário: 1. Introdução – 2. Estudo da Violência Sexual na História – 3. Sociedade Patriarcal, Machista e as Mulheres – 4. Classificação das Vítimas – 5. Conclusão –  6- Referências


1. INTRODUÇÃO

No ano de 2012, tivemos dois casos de estupro coletivo que ganharam destaque na mídia, que podemos dizer que foram quase iguais. Mas, mesmo com semelhanças aparentes e a princípio um sentimento de indignação, após algumas semanas eles viraram grandes exemplos de como a vítima tem sua conduta e vida julgadas.

Os casos acima referidos são o da universitária indiana de 23 anos que foi violentada e espancada por 6 homens, sendo 1 menor de idade, dentro de um ônibus, em Nova Deli, quando voltava da Universidade em que estudava e o caso das duas jovens de 16 anos, brasileiras, que foram estupradas pelos 6 integrantes das banda baiana New Hit, dentro do ônibus da banda.

O caso da universitária indiana chocou o mundo colocando em xeque as autoridades indianas que tentavam há muito tempo esconder esses fatos da mídia internacional. Infelizmente a jovem não aguentou os ferimentos e veio a falecer. Já no caso das duas jovens, elas foram até o ônibus da banda New Hit para pegaram autógrafos com os integrantes da banda, elas foram convidadas a para entrar no ônibus quando os integrantes as agarraram, uma foi levada para o fundo do ônibus e a outra para o banheiro onde os homens se revezavam no ato de violência. Isso foi constatado por um exame feito nas roupas íntimas das meninas onde foram achados vestígios de sêmen de diversos homens.

Em ambos os casos podemos verificar que as mulheres não tiveram chance de defesa frente à quantidade de homens e a pouca força física para lutar contra eles, os momentos que passaram por essa violência devem, para elas, terem parecido uma eternidade e para as jovens brasileiras resta o trauma que levaram para o resto da vida.

Mas, aos olhos da sociedade esses casos, tirando o fato de serem estupros coletivos, não têm nenhuma semelhança. A jovem indiana estava voltando da Universidade, ela é “mulher honesta”, já as garotas brasileiras menores de idade não tinham que estar naquele local, num show onde as letras são repletas de duplo sentido e a coreografia da banda é explicitamente sexual. E mais, o que elas foram fazer dentro de um ônibus cheio de homens, “elas estavam querendo”? Essas palavras horríveis contra as meninas podem ser vistas em comentários nas reportagens que saem na internet sobre o caso, há comentários ainda mais grosseiros questionando se os pais dessas meninas também não teriam culpa por deixar as garotas irem nesse tipo de show. Já nos comentários sobre a jovem indiana, nos deparamos com outro pensamento de que os agressores são monstros, de que Deus ajude a família da jovem, entre outros, demonstrando um profundo sentimento de empatia com a vítima.

Já com relação aos agressores, na Índia os estupradores quase foram linchados pela população e houve dezenas de manifestações, até mesmo fora da Índia, pedindo leis mais rígidas e maior segurança para as mulheres. Agora, no Brasil o cenário era completamente diferente as duas jovens é que foram ameaçadas de morte, tendo até mesmo que entrar para o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM). Quando os integrantes da Banda New Hit foram presos uma multidão se formou em frente à delegacia pedindo para que os homens fossem libertados. Felizmente isso foi em vão; eles tiveram a prisão preventiva decretada e foram transferidos para o presídio de Feira de Santana. Após 38 dias presos conseguiram habeas corpus aceito pelo Tribunal de Justiça da Bahia. Quando os integrantes da banda estavam saindo do presídio foram recepcionados por varias pessoas, entre elas mulheres, comemorando a liberdade recém adquirida pelos agressores.

Como dito no começo, casos tão parecidos, mas tratados de forma totalmente diferente por conta da conduta da vítima. Mesmo em plena aurora do século XXI as mulheres ainda são julgadas como na Idade Média, onde somente mulher honesta e virgem poderia ser vítima do crime de estupro desde que, também, ficasse comprovado que ela havia lutado e gritado por socorro, pois o silêncio da vítima significava o consentimento para o ato praticado.

Neste estudo faremos uma linha do tempo sobre o estudo da violência sexual na história, assim como também mostraremos como a sociedade em que vivemos ainda tem grandes resquícios da sociedade machista e patriarcal na qual o Brasil se fundou. Mas, todas as vítimas são iguais? Abordaremos a Classificação de Vítimas de Mendelsohn e como se essa classificação fosse aplicada aos casos concretos poderíamos ter penas mais justas, tanto para o ofensor quanto para a vítima, sem que a visão pura e simplesmente elitista e machista de alguns julgadores que acabam por desclassificar as vítimas, chegando ao ponto de absolver alguns réus analisando somente a vida da vítima e o momento do delito. O nosso material de pesquisa será composto de livros e artigos científicos sobre Vitimologia.


2. ESTUDO DA VIOLÊNCIA SEXUAL NA HISTÓRIA

Georges Vigarello em seu livro sobre a história do estupro nos diz:

[...] A história do estupro é principalmente a história dessa presença de uma violência difusa, de sua extensão, de seus graus. Ela é diretamente paralela à historia da sensibilidade, que tolera ou rejeita o ato brutal. A ausência de emoção e de queixa, por exemplo, a estranha banalização de um ato pesadamente condenado [...] (VIGARELLO, 1998, p. 13).

Ao olharmos para trás a mulher sempre foi tratada como objeto, propriedade, primeiro de seu pai e depois de seu marido, nunca tendo direito à voz ativa em sua vida, nem na sociedade. Na religião Islâmica a palavra de uma mulher vale a metade da palavra de um homem, assim ela nunca poderá ser uma testemunha confiável, nem mesmo uma vítima confiável.

Em seu livro Vigarello nos demonstra que a proteção para a mulher contra os crimes sexuais não começou por um sentimento de proteção à dignidade da mulher, mas, sim para proteger um bem, que antes do final do século XX era o bem mais preciso que uma mulher poderia ter, a sua castidade. Essa pureza que toda mulher “honesta” e de “boa família” deveria manter era o que mais importava para que ela tivesse um bom casamento. Sobre a castidade Vigarello diz: “Sua existência é a condição do casamento. O ataque público a ela compromete a honra à posição, até a vida. Uma jovem ‘deflorada’ inevitavelmente é uma mulher ‘perdida’” (VIGARELLO, 1998, p. 19). Via-se então o estupro como um crime não só contra a família da mulher estuprada, mais também contra a sociedade por não poder mais ver aquela mulher como alguém digna para um bom casamento. Mas, nem sempre o estupro era um ato condenável. Durante as primeiras guerras na Europa podemos encontrar documentos onde o lado vencedor tinha direito sobre as mulheres dos derrotados como sendo seus prêmios. Tanto que quando o Coronel Bénédict-Louis de Pontis proibiu o saque e estupro no convento de Tourlemente, em 1653, seus soldados voltaram suas armas contra ele, como narra Vigarello.

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Agora, se no presente ainda não existe um número real de mulheres que sofreram estupro, pois nem todas denunciam pela vergonha que sentem e por terem que passar por exames que lhes remetem ao momento do crime, pode-se imaginar por que muitas vítimas nos séculos passados não diziam nada. Pois além de se exporem e deixar claro que tiverem sua castidade arrancada à força, o “nome” da família também seria desonrado, assim o silêncio era muitas vezes a melhor solução.

“[...] As vítimas ficam fisicamente estigmatizadas, depreciadas como um fruto corrompido, ferimento ainda mais grave uma vez que a virgindade pode fazer a diferença entre as mulheres dignas e as que não são. Condição tácita do acesso tradicional ao casamento [...]” (VIGARELLO, 1998, p. 95).

A primeira vez que vemos em um código penal o crime de estupro sendo punido por ele mesmo e não como um crime contra a família ou a honra, é na França com seu Código Penal de 1791: artigo 29 “O estupro será punido com seis anos de ferro”. Há também um diferencial onde antes desse novo código era preciso o rapto para se caracterizar o crime. Assim podemos ver que deixou de existir esse pressuposto, que era considerado mais grave que o estupro em si, mostrando que o que será punido é a violência contra a mulher, deixando de lado a ideia do roubo ou do desvirtuamento da vítima. Mas, entre a proteção ganha e os costumes há uma grande distância, onde os costumes prevalecem, ainda mais quando o próprio Código Civil mantinha certos poderes do homem sobre a mulher, independentemente se fosse sua filha ou esposa. Assim, como a mulher era considerada inferior perante o homem, o estupro continuou a ser considerado primariamente uma ofensa aos seus tutores.

A partir do século XIX na França temos a inserção do tipo penal atentado ao pudor, para que o julgador pudesse escalonar um crime entre mais grave, Estupro, e menos grave, atentado ao pudor. No Brasil na mesma época temos o Código Criminal do Império, de 16 de dezembro 1830, no qual surge o Capítulo II Dos Crimes Contra a Segurança da Honra, onde temos a Seção I Estupro e a Seção II Rapto. Pelo próprio título do Capítulo a honra ainda era o bem tutelado pelo Estado, assim como a virgindade. Constava do artigo 219 “Deflorar mulher virgem...”. Já no artigo 222 o tipo penal é “Ter cópula carnal por meio de violência ou ameaças com qualquer mulher honesta” e também há um dispositivo que não mais menospreza as profissionais do sexo “Se a violentada for prostituta”, mesmo as penas sendo diferentes, no caso da mulher honesta a pena é de prisão de 3 a 12 anos no caso da prostituta a pena é de prisão de 1 mês a 2 anos. Verificamos o início da punição do ato de violência em si, independentemente de quem seja. A forma pela qual uma mulher poderia reestabelecer sua honra era através do casamento, tanto que o artigo 225 dizia “Não haverão dos três artigos antecedentes os réus que casarem com as ofendidas”, essa causa de extinção da punibilidade também é aplicada no caso de rapto, artigo 228 “Seguindo-se o casamento em qualquer d’estes casos, não terão lugar as penas”. Há também a punição daquele que deveria guardar ou ser parente daquela que foi deflorada.

Em 11 de outubro de 1890 Deodoro da Fonseca promulgou um novo Código Penal, nele temos o Título VIII – Dos Crimes Contra a Segurança da Honra e Honestidade das Famílias e do Ultraje Publico ao Pudor. Vemos que não só a honra da mulher que é tutelada, mas também a honra da família da vítima. O Capítulo I é intitulado Da Violência Carnal, capitulo próprio do crime de estupro e do atentado ao pudor, o atentado ao pudor se encontra no artigo 266 “Atentar contra o pudor de pessoa de um, ou de outro sexo, por meio de violências ou ameaças, com o fim de saciar paixões lascivas ou por depravação moral”. Nele também aparece uma nova pena mínima para o caso de estupro de prostituta, que no código anterior era de um mês agora passou a ser de seis meses, mantendo o máximo de dois anos. O tipo penal no crime de estupro também mudou, no artigo 268 encontramos os seguintes dizeres “Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta”, no artigo 269 explica-se o que é crime de estupro “Chama-se estupro o ato pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não. Por violência entende-se não só o emprego da força psíquica, como o de meios que privarem a mulher de suas faculdades psíquicas, e assim da possibilidade de resistir e defender-se, como sejam o hipnotismo, o clorofórmio, o éter, e em geral os anestésicos e narcóticos”. Neste ponto histórico podemos ver que, pelo menos penalmente, a virgindade não faz mais o crime ser mais ou menos reprovável, a violência contra mulher honesta deve ser punida com o mesmo rigor, sendo ela virgem ou não.

No ano de 1940 entra em vigor o Código Penal que utilizamos até hoje, no inicio continha o Título VI com o nome Dos Crimes Contra os Costumes, no Capitulo I – Dos Crimes Contra a Liberdade Sexual, o artigo 213 dizia “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, como podemos observar as palavras “honesta” e “virgem” foram totalmente retiradas do Código, assim como o dispositivo que diferenciava o estupro de uma prostituta, englobando assim todas as mulheres e punindo da mesma forma todos que praticassem essa violência.

“Assim a lei pune o estuprador, mas é ineficaz no sentido de reconhecer o direito da mulher ao domínio de sei próprio corpo e ao livre exercício de sai sexualidade. Faz-se, antes, a defesa de uma determinada moral e de uma concepção de bons costumes. O estupro, bem como qualquer outro tipo de agressão sexual, é antes uma agressão à integridade de um indivíduo. Por isso a luta dos movimentos feministas no Brasil e em outros países é para que o estupro deixe de ser enquadrado como um crime contra os costumes e passe a ser tratado como um crime contra a pessoa na legislação penal”. (ARDAILLON, BEBERT, Apud, FERNANDES, MARQUES, 1991, p. 82).

Em 1978 testemunhamos um levante das vítimas de estupro que decidiram debater o problema que certos costumes trazem, como a sociedade ser comandada por homens, que como principais ofensores tentariam impedir os andamentos dos processos, conforme nos mostra Vigarello

“Considerando – Que o estupro, assim como todas as outras agressões sexuais cometidas contra as mulheres se ligam a uma relação de força e agressividade do homem contra a mulher; - Que todas as agressões sexuais supõem um tipo de relação de dominação homem-mulher, sintomática de certa escolha da sociedade; - Que elas não podem ser analisadas como uma infração banal ou mesmo de direito comum; - Que, consciente ou inconscientemente, um mundo de valores masculinos justificou efetivamente o estupro pela ‘natural virilidade agressiva’ do homem e pela ‘passividade masoquista’ da mulher, noções que procedem de uma espécie de fatalidade fisiológica; - Que esse esquema explica a culpabilização e o mutismo das mulheres estupradas; - Que estendem, doravante denunciar publicamente o estupro [...]” (VIGARELLO, 1998, p. 211).

Assim, com as crescentes denúncias as vítimas foram percebendo que a violência não foi por culpa delas, que a vergonha era um sentimento comum entre as vítimas e que o silêncio só iria contribuir para a impunidade do ofensor.

E finalmente a mais recente modificação no Código Penal, no que tange sobre o estupro, a modificação do nome do título e do capitulo que passou a ser Título VI Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual, Capítulo I Dos Crimes Contra a Liberdade Sexual. Onde os crimes de estupro e atentado violento ao pudor foram unificados em um único dispositivo e aumentando a pena. Com essas mudanças fica claro que o bem tutelado passou a ser a liberdade sexual da pessoa, pois com a mudança o homem também passou a ser sujeito passivo do crime, não mais protegendo a virgindade, a honra da família ou os costumes. A vítima passou a ser o “ator principal” do crime, sendo somente ela quem importa, não tendo mais a sociedade o direito de dizer o que ela pode ou não mais fazer pela falta da virgindade ou pela honra manchada.


3. SOCIEDADE PATRIARCAL, MACHISTA E AS MULHERES

Indiscutivelmente as mulheres estão ganhando espaço no mercado de trabalho, nas universidades, nas carreiras que precisam de alto grau de conhecimento e essas mulheres são consideradas verdadeiras revolucionárias. Mas, a educação feminina ainda continua sendo voltada a ser uma boa esposa e boa dona de casa, somente nas famílias onde tanto o pai, quanto a mãe, têm um grau escolar mais elevado é que encontramos o incentivo para que a mulher seja independente, tanto financeiramente como sentimentalmente. Muitas vezes a mulher que trabalha fora não faz isso por escolha própria, mas por uma necessidade de um ganho maior financeiro, uma melhor qualidade de vida para ela e principalmente para os filhos.

A sociedade ainda trata a mulher que já passou dos 30 anos, que não é casada e que não tem filhos como uma aberração, uma vez que a felicidade deve estar atrelada a um bom casamento e aos filhos que essa relação irá gerar. Se olharmos para trás, nos antigos códigos civis brasileiros, encontramos dispositivos onde fica claro que a mulher ainda era vista como objeto de que o marido tinha posse. Tanto que no código de 1916 as mulheres eram consideradas incapazes quando se casavam. Consta ainda do Código de 1916, que teve vigor até 2002, no artigo 178:

“Prescreve: §1º - Em dez dias, contados do casamento, a ação do marido para anular o matrimônio contraído com mulher já deflorada. [...] §7º Em dois anos: VII – A ação do marido ou dos seus herdeiros, para anular atos da mulher, praticados sem o consentimento, ou sem o suprimento deste recurso necessário”.

Em ambos os dispositivos observamos uma clara inferiorizarão da mulher com relação ao homem, no §1º somente é obrigatória a castidade feminina, não podendo a mulher pedir a anulação do casamento caso seu marido já tenha mantido relações sexuais antes do casamento. No §7º, inciso VII, mostra que todo ato praticado por uma mulher casada deveria vir atrelado à autorização do marido ou herdeiros. E por fim o artigo 233:

 “O marido é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe: [...] II- A administração dos bens comuns e dos particulares da mulher [...], IV – O direito de autorização a profissão da mulher”.

Mais um artigo que demonstra a sobreposição masculina e submissão feminina, pois fica a cargo do marido a administração dos bens particulares da mulher, assim como a autorização para que esta trabalhe fora de casa.

Agora isso significa que a mulher só perdia a sua autonomia quando se casava? Se interpretarmos o Código Civil “ipsis litteris”, sim a mulher tinha autonomia antes do casamento. Mas, se analisarmos os costumes da época, a realidade era bem diferente. O pai, assim como o marido, poderia impor castigos físicos à mulher que desrespeitasse ou desonrasse aquele que tinha a sua “guarda”. Ao analisarmos a história, ela é marcada pela desigualdade de gênero consolidada por uma sociedade patriarcal e machista.

Hoje ainda podemos ver resquícios dessa sociedade patriarcal quando uma mulher, só para ganhar uma ilusória liberdade, se casa muito cedo. Mas, a liberdade de escolha do marido conseguida há algumas décadas, nos mostra como a figura do pai, e da família, podem influenciar a escolha da mulher de quem será seu marido. Estudos mostram que uma mulher que foi criada em um ambiente familiar desestabilizado ou violento tende a, inconscientemente, escolher parceiros também violentos. Aurea Emília Pardal e Débora Pastore Bassit em seu artigo, sobre a escolha inconsciente do parceiro, nos mostram um caso real onde a mulher inconscientemente se casou com um homem igual a seu pai, que era autoritário e rígido na educação com os filhos:

“[...] uma mulher, 37 anos, professora, penúltima filha de cinco irmãos. Fazia críticas frequentes ao pai por ter sido autoritário e rígido na educação dos filhos, atitudes que causaram diversos transtornos na vida familiar e doméstica[...] ‘O casamento não vai bem, estamos brigando muito, não sei se gosto dele’, disse a paciente. Percebe o marido pouco interessado nela e no casamento. É comum ouvir a frase do marido: ‘Vai tomar um bom banho, que passa tudo’, sempre que a paciente expressava alguma angústia em relação a si própria ou ao relacionamento entre os dois. Sentia-se desvalorizada; ‘Tenho que fazer tudo para ele, buscar a cerveja que ele toma todos os dias e, às vezes, escolher a roupa que ele vai vestir, me sinto uma empregada’. Relata ter escolhido esse parceiro ‘Porque ele surgiu como uma tábua de salvação’”. (PARDAL, BASSIT, 2013).

 Assim se uma mulher criada num ambiente de educação rígida acabou se relacionando com um marido com características que seu pai tinha. Uma mulher, que durante a infância, via o relacionamento do pai e da mãe se basear em violência e submissão, para ela isso é o significado de família. Rebeca Ferreira Brasil, em seu estudo sobre a mulher cearense e que podemos ampliar para todas as mulheres, demonstra como o ambiente familiar influencia as escolhas do parceiro:

“A infância da mulher cearense e o modo como está é educada, sem sombra de dúvidas, são variáveis que devem ser detalhadamente estudadas, haja vista sua influência, de maneira preponderante, na possível reação da mulher em relação à violência sexual. Segundo Roger Langley (1980), quanto menos uma menina tiver experimentado a violência em sua família, mais apta estará para encarar a violência intrafamiliar como uma aberração, e, portanto maior a probabilidade de procurar assistência ou divórcio quando agredida”. (FERREIRA BRASIL, 2013)

 Mas, para que uma mulher seja criada num ambiente livre de violência a forma de relacionamento dos pais é primordial, uma vez que a mãe não se submetendo aos maus tratos do pai e o pai também sendo contra qualquer tipo de violência evitará que a filha procure relacionamentos destrutivos. Agora uma mulher que associa casamento, “amor”, e relacionamento a violência irá gerar o ciclo de violência onde a vítima dependente sempre irá buscar o carinho do agressor que promete mudar de atitude. Ballone demonstra bem como a codepêndencia entre agressor e vítima acontece:

“A vítima de Violência Doméstica, geralmente, tem pouca autoestima e se encontra atada na relação com quem agride, seja por dependência emocional ou material. O agressor geralmente acusa a vítima de ser responsável pela agressão, a qual acaba sofrendo uma grande culpa e vergonha. A vítima também se sente violada e traída, já que o agressor promete, depois do ato agressor, que nunca mais vai repetir este tipo de comportamento, para depois repeti-lo [...] Por vergonha e constrangimento, costumam esconder de todos que apanham dos parceiros, pois têm a esperança que eles mudem com o tempo. Mas a situação se arrasta ou se complica e ela não vê saída.”. (BALLONE, 2013).

A mulher ao se submeter à violência, na mentalidade limitada da sociedade, dá fundamento para que o homem tenha sempre razão ao agredir a mulher. A sociedade protetiva do poder masculino até pouco tempo aceitava o chamado estupro marital, onde o marido se fazendo valer de “seu direito como marido” mantinha relações sexuais à força com sua esposa. E quando a mulher ia se queixar para alguém era imediatamente rechaçada com frases como “Você tem que obedecer a seu marido” ou “Você tem que fazer as vontades de seu marido para manter o casamento”.

Rebeca Ferreira em seu artigo nos mostra como a mulher contribui para que o machismo continue e o sentimento que nasce no homem quando a mulher se submete a esse tipo de relação conjugal:

“O machismo, assim, é fomentado também pela própria mulher, que vê, muitas vezes, o homem como ser superior e, consequentemente, qualquer relação afetiva transforma-se em objeto principal de sua vida como um todo. [...] tornou-se obrigação, avaliação de sua vida como um todo. Se o casamento é satisfatório, ela está desempenhando bem sua função na sociedade, entretanto, se o matrimônio está em declínio ou desfeito, tal fato é considerado como derrota pessoal para a mulher. [...] Neste contexto social, o homem desenvolve o sentimento de posse sobre a mulher, acreditando que ela é apenas um objeto de complementação e satisfação em sua vida, bem como, surge o fenômeno da vitimização da mulher, que se sente obrigada a seguir os parâmetros impostos pela sociedade machista, portando-se como verdadeira ‘vítima do sistema’ [...] a mulher, subjugada pelo poder masculino, transforma-se em mera propriedade, ficando mais suscetível à violência”. (FERREIRA BRASIL, 2013)

Então uma mulher que não “obedece” o marido violento ou desrespeita o pai autoritário, não cumpre o seu papel de forma satisfatória na sociedade, pois não respeita o homem que está lá para dar-lhe o status social de “mulher honesta”. Assim podemos ver como a conduta feminina é julgada pela sociedade. Como nos casos de estupro, muitas vezes, a única testemunha é a própria vítima a sua palavra pode ou não valer, já que se a sua conduta perante a sociedade, seus hábitos, seus relacionamentos, seu histórico profissional e pessoal serão postos em cheque sempre. A realidade é que a mulher só considerada de confiança quando respeita todos os padrões considerados morais pela sociedade machista.

Assim alguns magistrados se utilizam, de forma deturpada, do artigo 59 do Código Penal, onde o comportamento da vítima pode ser analisado. Mas esse comportamento deveria ser analisado aos “olhos” da Vitimologia e não aos “olhos” leigos e machistas (preconceituosos) do comportamento social em geral da mulher. Somente a superação dessa abordagem preconceituosa da mulher na sociedade poderá impedir a propagação da violência de gênero.

Sobre os autores
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Verônica Magalhães de Paula

Bacharelanda do 5º Período do Curso de Direito da Unisal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos; PAULA, Verônica Magalhães. Crime de estupro: até quando julgaremos as vítimas?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3614, 24 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24465. Acesso em: 5 nov. 2024.

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