4. CLASSIFICAÇÃO DAS VÍTIMAS
A vítima sempre será uma santa imaculada e o agressor um monstro sem coração que maculou a vítima? Veremos nesse tópico que existe uma classificação das vítimas, que leva em consideração fatores psicológicos e do momento em que o ato lesivo foi praticado. Assim como ações que podem diminuir o grau de vitimização.
O estudo do comportamento da vítima e como ela pode contribuir para gerar ou excitar o agressor ganhou força após a Segunda Guerra Mundial. Com os horrores sofridos pelas vítimas do holocausto, o estudo da Vitimologia ganhou força e foi se moldando para o que hoje conhecemos como Classificação das Vítimas e o Grau de Vitimização.
Mas, como uma vítima se “transforma” em vítima? Edmundo de Oliveira (2001, p. 103-104) elaborou um esquema que batizou de Iter Victimae, onde suas fases são as seguintes:
“1. Intuição (intuito) – a primeira fase do Iter Victimae é a intuição, quando se planta na mente da vítima a idéia de ser prejudicada, hostilizada ou imolada por um ofensor;
2. Atos Preparatórios (conatusremotus) – Depois de projetar mentalmente a expectativa de ser vítima, passa o indivíduo à fase dos atos preparatórios, momento em que desvela a preocupação de tomar as medidas preliminares para defender-se ou ajustar o seu comportamento, de modo consensual ou com resignação, às deliberações de dano ou perigo articulados pelo ofensor;
3. Início da Execução (conatusproximos) – Posteriormente, vem a fase do inicio da execução, oportunidade em que a vítima começa a operacionalização de sua defesa, aproveitando a chance que dispões para exercitá-la, ou direcionar seu comportamento para cooperar, apoiar ou facilitar a ação ou omissão aspirada pelo ofensor;
4. Execução (executio) – Em seguida, ocorre a autêntica execução distinguindo-se pela definitiva resistência da vítima para então evitar, a todo custo, que seja atingida pelo resultado pretendido por seu agressor, ou então se deixar por ele vitimizar;
5. Consumação (consummatio) ou tentativa (crime falho ou conatusproximos) – Finalmente, após a execução, aparece a consumação mediante a advento do efeito perseguido pelo autor, com ou sem adesão da vítima. Constando-se a repulsa da vítima durante a execução, aí pode-se dar a tentativa de crime, quando a prática do fato demonstrar que o autor não alcançou seu propósito (finis operantis) em virtude de algum impedimento alheiro à sua vontade” (OLIVEIRA, 2001, p. 103-104).
A Classificação das Vítimas foi desenvolvida por Benjamin Mendelsohn. Lola Aniyar de Castro sintetizou o objetivo da Vitimologia de Mendelsohn (KOSOVSKI, 2013)
“1º) Estudo da personalidade da vítima, tanto vítima delinquente, ou vítima de outros fatores, como consequência de suas inclinações subconscientes; 2º) O descobrimento dos elementos psíquicos do ‘complexo criminógeno’ existente na ‘dupla penal’, que determina a aproximação entre a vítima e o criminoso, quer dizer: ‘o potencial de receptividade vitimal’; 3º) Análise da personalidade das vítimas sem intervenção de um terceiro – estudo que tem maior alcance do que o feito pela Criminologia, pois abrange assuntos tão diferentes como o suicídio e os acidentes de trabalho; 4º) Estudos dos meios de identificação dos indivíduos com tendência a se tornarem vítimas, seria então possível a investigação estatística de tabelas de previsão, como as que foram feitas com os delinquentes pelo casal Glueck o que permitiria incluir os métodos psicoeducativos necessários para organizar a sua própria defesa; 5º) A importantíssimas buscas dos meios de tratamento curativo, a fim de prevenir a recidiva da vítima” (KOSOVSKI, 2013).
Assim Mendelsohn afirma que o estudo na Vitimologia é “tão útil à vítima, como ao acusado, que poderia ser parcial ou totalmente inocente” (KOSOSVISKI, 2013). Mas, o que é vítima? Antes de classificarmos as vítimas temos que ter em mente a definição de vítima. A ONU define vítima como:
“Pessoa que, individual ou coletivamente, tenha sofrido danos, inclusive lesões físicas e mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou diminuição substancial de seus direitos fundamentais, como consequênciade ações ou omissões que violem a legislação penal vigente, nos Estados-Membros, incluída a que prescreve o abuso de poder” (RESOLUÇÃO 40/34 DA ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS – DE 29/11/1986).
Heitor Piedade Júnior (PIEDADE JÚNIOR, apud, DELFIM, 2013) também conceitua o objeto de estudo da Vitimologia como sendo a relação entre protagonistas, vítima e o agente ofensor, do ato criminoso. Onde existe a divergência de vontades, o agente ofensor quer uma coisa e a vítima quer outra totalmente diferente. E por fim Luiz Rodrigues Manzanera (MANZANERA, apud, DELFIM, 2013) conceituou vítima com sendo um indivíduo ou grupo de indivíduos que sofre um determinado dano, por ação ou omissão, própria ou alheia ou por caso fortuito.
O que podemos verificar é que em todas as conceituações vítima é aquela pessoa que sofre um dano físico, psíquico ou patrimonial e que esse dano deve se encaixar em um tipo penal para que seja punido pelo Estado.
Ao analisar o comportamento da vítima e do agente agressor no momento do ato delitivo Benjamin Mendelsohn classifica as vítimas da seguinte forma:
“1. Vítima ideal ou absolutamente inocente – é a vítima que não teve nenhuma participação no ato delitivo, ela não fez nada que desencadeasse a situação criminal. Ex.: Uma vítima de bala perdida.
2. Vítima menos culpada que o delinquente ou Vítima por ignorância – é a vítima que de alguma forma involuntária contribui para o ato delitivo. Ex.: Uma pessoa estaciona o carro na rua e esquece-se de ligar o alarme.
3. Vítima tão culpada quando o delinquente ou vítima voluntária – No caso de vítima tão culpada quando o delinquente podemos verificar que de alguma forma a ela agiu com má-fé. Por exemplo, pessoas que compram supostas máquinas de fazer dinheiro falso e quando chegam em casa e vão tentar fazer mais dinheiro percebem que caíram em um golpe. Fica claro que a vítima do estelionatário tentou também cometer um crime contra a fé pública ao pensar em imprimir notas falsas. Já a vítima voluntária é aquela que quer o resultado do ato delitivo, por exemplo, o suicida que quer por fim à vida, mas, não tem forças, por uma doença grave ou convicção religiosa, ou porque não tem coragem, por isso pede para que outro o mate.
4. Vítima mais culpável que o delinquente – se subdivide em:
4.1 – Vítima provocadora – aquela que por sua própria conduta incita o infrator a cometer a infração. Tal incitação cria e favorece a exploração prévia à descarga que significa o crime. Por exemplo, a vítima de homicídio privilegiado após injusta provocação da vítima;
4.2 – Vítima imprudente – é a que determina o acidente por falta de cuidados. Por exemplo, a pessoa que vai viajar e deixa a casa destrancada.
5. Vítima como única culpada – também se subdivide em
5.1 Vítima infratora – Por exemplo, um ladrão entra numa casa para roubá-la e o morador, em legitima defesa, mata o invasor. O ladrão só se tornou vítima porque anteriormente cometeu um delito;
5.2 Vítima simuladora – é a falsa vítima, é a pessoa comete uma infração e imputa a autoria a outra pessoa” (Apud, DELFIM, 2013).
Mas, não podemos nos ater somente a uma classificação, podemos encontrar a classificação de Von Hentig, o qual em seu trabalho sobre Psicologia dos Delitos de 1957 propõe uma divisão das vítimas em:
“1. Vítima resistente, ou seja, a pessoa que reage atacando o agressor, que pode ser encaixada na hipótese de legitima defesa, seja real ou putativa;
2. Vítima coadjuvante e cooperadora, que corresponde à vítima que não reage ao agressor e, desta maneira, participa na produção do resultado” (VON HENTIG, apud, HAMADA, AMARAL, 2013).
Jimenez de Asúa também nos deixou um ensaio sobre uma nova tipologia de vítima, onde o delimitador é o caráter sociológico:
“1. Vítima indiferente - que diz respeito à pessoa atacada aleatoriamente;
2. Vítima indefinida ou indeterminada - que pode ser colocada como a coletividade, ou indivíduos medianos que sofrem com agressões e com a violência da sociedade moderna;
3. Vítima determinada – a pessoa atacada em razão de uma característica própria” (ASÚA, apud, HAMADA, AMARAL, 2013).
Se olharmos pela classificação de Mendelsohn a vítima de estupro só pode ser classificada como vítima ideal, por exemplo, a mulher que é atacada ao ir para o trabalho de manhã, ou vítima menos culpada que o delinquente, por exemplo, a mulher, voltando sozinha de uma festa que acabou altas horas da madrugada. É inconcebível classificar a mulher violentada nas outras categorias, pois se ela é classificada como vítima mais culpada ou como vítima como única culpada significaria que ela quis o resultado do ato delitivo.
Já na classificação de Von Hentig a vítima pode se encaixar tanto numa classificação quanto na outra, já que a vítima pode resistir com todas as suas forças ao ato violento, tanto que muitas vítimas podem sofrer graves lesões e até serem mortas pelo agressor pelo fato de não terem cooperado. E também se encaixam na vítima cooperadora já que pelo medo da morte ou, em sua mente, de sofrer uma violência maior ainda acabam por não se empenhar na resistência ao ato.
Assim a mulher estuprada também se encaixa, como vítima, perfeitamente em todas as classificações de Jimenez de Asúa, já que ela pode ser escolhida aleatoriamente pelo simples fato de estar passando perto do agressor, que não consegue mais segurar seus impulsos pela violência. Como vítima indeterminada já que a mulher ao poder sair de casa para ganhar a liberdade acaba se tornando um “alvo” fácil para os agressores. E por fim vítima determinada, pois um estuprador em série muitas vezes escolhe suas vítimas por determinadas características físicas, como ser morena ou loira, mais jovens ou mais velhas.
Além disso, Marcio Rodrigo cita Richard Sparks que define como a vítima de crimes sexuais pode ter certa predisposição para a vitimização:
“As vítimas podem contribuir de várias formas para se autorizarem e essa contribuição vai depender de cada caso concreto e da personalidade da vítima. Há quatro espécies de predisposição que as vítimas podem apresentar: a) precipitação – a vítima com seu próprio comportamento pode acabar excitando/animando ao vitimizador a praticar o ato contra ela; b) negligência ou excessiva audácia – a própria vítima voluntariamente se coloca numa situação de perigo; c) vulnerabilidade – a vítima se torna vulnerável por suas qualidades pessoais; e d) “convite” que a vítima faz ao agente ofensor com seu próprio comportamento, essas vítimas são dominadas por um desejo incontido de serem violentadas e esse desejo sexual está intimamente ligado às fantasias sexuais da própria vítima. Assim a vítima passa a frequentar lugares isolados, a aceitar carona de estranhos, perambular pelas ruas de bairros perigosos durante a madrugada” (SPARKS, Apud DELFIM, 2013).
Márcio Rodrigo Delfim ainda nos demonstra como todos estamos suscetíveis à vítimização, separando em três tipos de danos ou graus de vitimização
“Dano de 1º grau ou Vitimização Primária – originado do fato criminoso; Dano de 2º grau ou Vitimização Secundária – dano que emana das respostas formais ou informais obtidas pela vítima, é quando a vítima passa pelos exames para comprovação do estupro, ir até a Delegacia procurar saber informações de seu caso e ser destratada pelos funcionários mal preparados para atender aquela situação; e Dano de 3º grau ou Vitimização Terciária – É a vítima que faz questão de manter viva e nítida a lembrança do dano sofrido” (DELFIM, 2013).
Ao estudarmos a Vitimização, no dano de 3º grau ou Vitimização Terciária ainda encontramos mais duas definições, a primeira diz respeito aos perigos que a vítima enfrenta após o delito, como ameaças por parte do ofensor ou até mesmo da família dele para que a vítima se abstenha de tomar as providências legais contra ele. A segunda definição nos é dada por Márcia Margareth Santos Bispo:
“A vitimização terciária, a seu turno, refere-se àquela que ocorre na comunidade em que a vítima está inserida. Importa na vitimização realizada no próprio seio familiar, na vizinhança, no trabalho, na escola, nas associações comunitárias, enfim, no convívio social da vítima. Ocorre, principalmente, quando se está diante daqueles crimes considerados estigmatizantes, a exemplo dos crimes contra a dignidade sexual, a partir dos quais surgem comentários variados e olhares “atravessados” para a vítima, ocasionando o afastamento das pessoas, grande humilhação e graves sequelas“ (BISPO, 2013).
A vítima de estupro pode acabar muitas vezes parando na Vitimização Primária ou Dano de 1º grau, uma vez que por vergonha ela não procura uma delegacia para denunciar o crime, ela não quer passar pelos exames, ela não quer outro estranho tocando seu corpo. E também passa pela Vitimização Terciária, no conceito de Márcia Margareth, uma vez que a sociedade começa a ver aquela vítima com “maus olhos”, como se por algum motivo a vítima deu razão para que a violência fosse cometida contra ela.
É a partir da Classificação da Vítima de Mendelsohn que o juiz pode de forma justa aplicar o artigo 59 “Comportamento da vítima”, pois, como explicado anteriormente, a vítima de estupro nunca será tão culpada quando o delinquente ou única culpada pelo ato delitivo.
5. CONCLUSÃO
Com a presente pesquisa observamos como a mulher foi e ainda é inferiorizada. Sua vida pregressa ainda continua sendo peça fundamental da constituição ou não de sua inocência no estupro. O grande problema enfrentado pelas vítimas é o fato de existir uma mentalidade coletiva de que sempre há uma vítima em potencial e que o perfil do estuprador sempre será o mesmo. A vítima sempre será aquela mulher promíscua de moral duvidosa ou o estuprador será um homem “anormal”, com perturbações mentais e a moral distorcida, que não consegue conter seus instintos animalescos (BARROS, JORGE-BIROL, 2013). Esse mecanismo de proteção impede que as pessoas aceitem que não há um perfil específico de vítima e que o agressor pode ser o homem honesto, trabalhador, pai de família.
“Quando não há nem a justificativa nem a suposta provocação da vítima, busca-se ainda imputar as mesmas características negativas, no intuito desmerece-las, e torná-las de alguma forma merecedoras da violência que lhes abateu. É como se a sociedade tentasse aliviar sua própria culpa, e responsabilizasse a vítima individualmente [...] Seja no comportamento da vítima ou na suposta patologia do agressor, a necessidade de atribuição de responsabilidade ao outro, tornar a questão da violência sexual banalizada, vulgar, desmerecedora de atenção” (BARROS, JORGE-BIROL, 2013).
Com essa necessidade de imputação de culpa à vítima observamos a utilização, incorreta do artigo 59 do Código Penal “comportamento da vítima” É uma distorção da aplicação da vitimologia, uma vez que a vítima nunca poderá ser mais culpada que o agressor ou tão culpada quanto ele numa situação real de estupro. Ao tentar encaixá-la nesses dois perfis tenta-se evitar que o agressor vá para o sistema prisional, uma vez que é sabido que as leis da prisão punem com rigor quem pratica o crime de estupro. O que é absurdo uma vez que antes de praticar o ato o agressor deveria ponderar sobre as futuras punições, além de não haver culpa nenhuma da vítima pela punição que seu agressor possa sofrer.
Muito do que se julga da mulher está enraizado na cultura de algumas sociedades. Assim, não adianta o legislador imputar duras penas para o crime de estupro, se no momento do julgamento os magistrados, com mentalidade fechada e moralista, ainda julgam com mais rigor a conduta da vítima do que do imputado.
“Ainda que houvesse uma mudança radical na legislação penal a maior luta seria na transformação na consciência dos operadores jurídicos (membros da sociedade), que mesmo aplicando a lei adequadamente, ainda lançariam mão de mecanismos (in)conscientes e (in)diretos na intuito de desmerecer a vítima, principalmente mulher” (BARROS, JORGE-BIROL, 2013).
Assim para que possamos modificar a forma de ver esse crime temos que educar todas as camadas da sociedade, para que a violência dentro da família deixe de ser vista como algo natural pela criança. Para que haja oportunidades para a jovem que quer sair de casa, fugindo do autoritarismo e violência, se mantenha sozinha. E por fim que não reste dúvida de que quem deve ser investigado e punido é o agressor e não a vítima.