Sumário: O presente estudo visa analisar a legalidade da proibição de circulação de Vans no Município do Rio de Janeiro, em itinerários que não sejam integralmente supridos por transporte público regular de passageiros. Adotar-se-á como fundamento para análise a legislação municipal em vigor, bem como os princípios norteadores da Administração Pública.
1. Noções Introdutórias. Premissas Necessárias.
Antes de adentrarmos na análise propriamente dita da legalidade da proibição de circulação de Vans em itinerários carentes de transporte público regular, é necessário consolidar algumas noções jurídicas básicas que envolvem o tema.
Em primeiro lugar, é necessário ter em mente a distinção criada pela doutrina italiana entre interesse público primário e interesse público secundário.
O Poder Público é investido de poderes pelo povo para agir em seu interesse, atendendo às suas necessidades imediatas e diretas. Quando assim o faz, age de acordo com o interesse público primário.
Já quando age de acordo com seus interesses próprios, na qualidade de pessoa jurídica, titular de direitos e obrigações, o faz com fundamento no interesse público secundário.
A atuação administrativa nessa hipótese só será legítima se não colidir com nenhum interesse público primário. Essa é a primeira premissa.
Em segundo lugar, é imperioso reconhecer que a delegação da prestação de serviço de transporte complementar ocorre mediante autorização administrativa, ou seja, o vínculo criado entre o autorizatário e o Poder Público não tem natureza contratual, mas caráter precário, podendo, em regra, ser revogado ou alterado discricionariamente a qualquer tempo, por critério de conveniência e oportunidade. Essa é a segunda premissa.
Como se demonstrará adiante, a proibição de circulação de Vans pelo Poder Público ocasiona um verdadeiro choque entre as premissas apontadas, pois, em que pese juridicamente possível por se tratar de autorização administrativa, não será legítima quando imposta em rotas desprovidas de transporte público regular em sua integralidade, pois contrária será ao interesse público primário.
2. Da Ilegalidade da Proibição de Circulação de Vans em Itinerários Desprovidos em sua Integralidade de Transporte Público Regular de Passageiros.
Como cediço, a Prefeitura do Rio de Janeiro publicou em abril de 2013 o Decreto N 37.007/2013, em que proibiu a circulação de Vans na Zona Sul do município.
O fundamento utilizado foi a necessidade de reordenamento e racionalização da rede de transportes, cuja estrutura já se mostraria suficiente para atender a demanda da população, sem necessidade de complementação pela circulação de veículos de baixa capacidade de transporte de passageiros.
Conforme dito anteriormente, a decisão da Prefeitura em princípio seria juridicamente possível, tendo em vista que o vínculo existente com os autorizatários de transporte complementar tem caráter precário, sendo, portanto, revogável discricionariamente a qualquer momento.
No entanto, é inadmissível a mesma conclusão quando a proibição de circulação de Vans ocorre em itinerários que não sejam integralmente servidos por transporte público regular de passageiros.
Nessas hipóteses a restrição imposta ao transporte complementar significa oficializar e compactuar com uma verdadeira inexistência de serviço público em determinados trechos que, normalmente, são de difícil acesso.
A situação narrada não é incomum. Pelo contrário, é usual que o serviço de transporte complementar se dê em rotas não abrangidas e inacessíveis pelas linhas de ônibus e de metrô.
Um claro exemplo disso pôde ser visto em matéria jornalística onde uma senhora de idade reclamava da proibição da circulação de Vans no Cosme Velho, pois com a restrição imposta seria obrigada a diariamente subir a pé uma ladeira de cerca de quatro quilômetros onde, obviamente, não havia a disponibilidade de transporte público por ônibus.
Ora, salta aos olhos que nessas hipóteses a restrição de circulação de veículos de baixa capacidade de transporte de passageiros impõe um sério gravame à população local que, dependendo das circunstâncias, tem seu deslocamento dificultado, senão praticamente inviabilizado.
Note-se que a inexistência de transporte complementar nessas áreas de difícil acesso pode inclusive contribuir decisivamente para um desfecho indesejado em situações de emergência médica, pois por certo impedirá, ou, no mínimo, dificultará um deslocamento rápido.
Em outras palavras, a dificuldade de locomoção imposta pela Prefeitura à população local certamente consiste em inegável potencial lesivo aos direitos de sua personalidade, tais como o direito de ir e vir, o direito à independência e o direito à saúde em situações mais extremas.
Nesse sentido, inequívoco está que nessas hipóteses a revogação da autorização de circulação de veículos de transporte complementar, em que pese em tese juridicamente possível, não atende aos interesses e necessidades diretas e imediatas da população envolvida e, portanto, não se coaduna ao interesse público primário.
Pelo contrário, a conduta do Poder Público consistirá em verdadeira concretização do interesse público secundário e, como atentatória à interesses e direitos de status constitucional, deverá ser tida por ilegítima.
Poder-se-ia ainda argumentar, em contraposição ao que ora se defende, que a população envolvida é pequena em relação à parcela da população que se vê influenciada diretamente por um trânsito mais caótico e desordenado, o que justificaria a medida restritiva, mas tal alegação não prospera.
Isso porque o interesse público não se confunde com o interesse coletivo. O interesse público primário por vezes será respeitado suprindo-se a necessidade de minorias quando, na ponderação de interesses, estiver relacionada com direitos fundamentais, o que se justifica juridicamente diante da constitucionalização do Direito Administrativo e da emergência do Princípio da Juridicidade que atualmente norteia a Administração Pública.
Nessa esteira, assim se manifestou o Jurista Gustavo Binenbojm (Uma Teoria do Direito Administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. 02 Edição, Página 31, Editora Renovar):
“A fluidez conceitual inerente à noção de interesse público, 55 aliada à natural dificuldade em sopesar quando o atendimento do interesse público reside na própria preservação dos direitos fundamentais (e não na sua limitação em prol de algum interesse contraposto da coletividade), impõe à Administração Pública o dever jurídico de ponderar os interesses em jogo, buscando a sua concretização até um grau máximo de otimização”.
Conclusão
Não se nega que a Administração Pública detém discricionariedade para revogar autorizações de delegação de prestação de serviços públicos, quando lhe for conveniente e oportuno.
No entanto, diante da constitucionalização do Direito Administrativo e da emergência do Princípio da Juridicidade, não pode referida prerrogativa ser exercida em afronta a direitos fundamentais.
Isto é, não pode o Poder Público restringir a circulação de veículos de transporte complementar quando isso induzir a uma verdadeira negação de serviço público, dificultar o exercício de direitos personalíssimos e puder potencializar situações de risco para a população envolvida.
Assim agindo, estará a Administração Pública privilegiando o interesse público secundário em face do interesse público primário, o que por certo tornará ilegítima sua conduta, possibilitando aos autorizatários a busca por prestação jurisdicional que lhes garanta a manutenção do serviço de transporte público complementar, ao menos até que as deficiências de transporte sejam supridas pelo Poder Público.