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O juiz e o ato de julgar:

alguns aspectos envolvidos na construção da decisão judicial

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Agenda 26/08/2013 às 11:27

5. A razão e a emoção e a parcialidade do julgador

A ciência, tradicionalmente, considerou como válida a premissa de que decisões sensatas advêm de uma “cabeça fria”, e de que a emoção e a razão são como a água e o azeite, isto é, não se misturam. Conforme explica Gabriel J. Chittó GAUER[23], as questões vinculadas à passagem da sensibilidade à racionalidade constituem-se no fundamento do paradoxo moderno, em que essa dualidade ainda permanece em muitos campos do saber. Deste modo, é que lembranças, percepções, emoções e esquecimentos não podem ser explicados racionalmente, pois são planos oriundos de consciência diferentes. A perspectiva largamente difundida era de que existiam sistemas neurológicos diferentes para a razão e para a emoção, sendo que muitas pesquisas foram e vem sendo realizadas objetivando comprovar diferentes hipóteses.

E neste cenário, destaca-se Antonio Damásio, médico diretor do Instituto do Cérebro e Criatividade, na Universidade do Sul da Califórnia. Famoso pela obra O Erro de Descartes, Damásio é um especialista em investigar a consciência humana, de modo a conhecer mais profundamente como funciona o cérebro. Em recente entrevista à Revista Ciência Hoje, Damásio esclarece que a razão a razão, embora seja um sistema incompleto e imperfeito, pode impor certo controle sobre sistemas automáticos irracionais. Aquilo que nós temos de fugir é da ideia falsa de que os sistemas racionais são sempre bons e que os sistemas emocionais são sempre maus. Porque há muitas pessoas que pensam que a emoção é uma coisa descontrolada e automática, é uma coisa ruim para o ser humano porque o aproxima dos animais. Isso, segundo ele, não é verdade, pois quando perdemos completamente a emoção, tomamos decisões piores[24].

Sobre um meio-termo entre razão e emoção, Damásio explica que existe sim esse meio-termo, sendo que a emoção tem coisas boas e más, o mesmo ocorrendo com a razão. Há certos aspectos da razão que são ótimos e nos permitem decidir sobre um problema de forma pensada e equilibrada. “Mas há tantos aspectos negativos na razão!”. Aquilo que precisamos saber é que somos uma mistura de sistemas, alguns que levam a bons resultados, outros que não levam. Assim, é preciso ter uma grande modéstia na forma como olhamos para os seres humanos. Estamos constantemente a fazer coisas que são completamente estúpidas, que nos machucam e machucam os outros. Ao mesmo tempo somos capazes de fazer coisas muito boas. E essas coisas não são pretas ou brancas, são uma mistura de qualidades.

Dito isso, devemos considerar que a razão e a emoção estão indissociáveis no ato de julgar, e que por mais improvável que possa parecer, o juiz não é imparcial e muito menos neutro. Como bem observa Pozzebon[25], o que Damásio descobriu em suas pesquisas médicas, é a indissolúvel e necessária presença da razão e do sentimento no ato de julgar, o que leva ao caráter mítico das ditas características da decisão judicial: imparcialidade, objetividade, segurança e a ilusão do efetivo controle através da fundamentação.

Segundo anotam Giacomolli e Duarte[26], o juiz pode até julgar de maneira formamente imparcial (não ser parte, não estar impedido ou suspeito), mas isso não suprime a sua neutralidade subjetiva no processo, aquela projetada sobre o processo,

que diz das vivências pessoais do juiz, seus gostos e desgostos, suas paixões, seu eu, seu modo de ser no mundo, pois o sentido da compreensão não acontece sem a sobreposição sobre o objeto a ser analisado, sem a vivência do ser com seu entendimento singular, pousado sobre a realidade. A verdadeira compreensão do sentido daquilo que nos é dado deve extrapolar uma mera exegese prática de afirmação literal do sentido, porquanto deve ocupar-se das próprias condições de possibilidade do horizonte do entendimento.

Não há como se exigir do juiz uma condição que o mesmo não pode dar, ou seja, que decida sem a sua subjetividade, que decida distanciado das suas vivências e experiências como ser no mundo, que o torno diferente de uma máquina, de um computador, sendo um atributo do ser no mundo o entendimento de si mesmo e o entendimento de si no contexto em que se vive, sendo que todo esse entendimento acaba por desaguar no ato de julgar.

Como bem explica Lídia Reis de Almeida PRADO[27] à dificuldade de integrar o sentimento na psique do coletivo do Ocidente, trouxe lesivas características culturais, como a rigidez mental, o racionalismo exagerado e uma supervalorização do pensamento em detrimento da emoção que passou a ser inferiorizada, aonde, citando Diderot, dar espaço a sentimento “é ser injusto, é ser louco”. E, segue, aduzindo que

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O direito, como prestação jurisdicional, não apenas seguiu essa propensão (que se verificou em quase todos os ramos do saber), mas o fez de modo exacerbado. Explica-se: nas decisões judiciais a desqualificação do sentimento intensifica-se porque um dos instrumentos de trabalho dos magistrados é a lei – regra, abstrata de conduta imposta à observância geral –, que pertence ao mundo da racionalidade, muito distanciado da emoção.

 Entretanto, esse racionalismo exacerbado, já no decorrer do século XX, começou a ser questionado pelos outros ramos do conhecimento, como a física, a sociologia e a psicologia. E, a mais divulgada das concepções psicológicas foi formulada por Freud, que considerou o inconsciente como uma instância psíquica constituída do conjunto do material reprimido durante toda a história de vida do sujeito. E, essa concepção fez com que uma mudança ocorresse no valor que até então, era atribuído a razão, que passou a ser vista como menos poderosa do que se supunha, especialmente por estar subordinada a impulsos desconhecidos e de difícil acesso, sendo que essa ideia pôs em dúvida a crença dos racionalistas na premissa de que a verdade habita a consciência[28].

Por conseguinte, Lídia Prado anota que no entendimento Freud

“A Psicanálise propõe-se a mostrar que o Eu não somente é senhor na sua própria casa, mas também está reduzido a se contentar com informações raras e fragmentadas daquilo que se passa fora da consciência, no restante da vida psíquica”. De acordo, com tal abordagem “a consciência não constitui a essência da vida psíquica, mas apenas uma qualidade desta, podendo coexistir com outras qualidades e até mesmo faltar”.

Outra noção de inconsciente foi desenvolvida por Jung, conhecida como o inconsciente coletivo, representado como sendo uma estrutura psíquica herdada da evolução da humanidade, renascida em cada indivíduo e que contém padrões de funcionamento que dão à nossa espécie características específicas, conhecidas como arquétipos[29].

Tudo isso, leva ao reconhecimento de que é no convívio com o nosso mundo interno e suas divergências que vamos adquirindo meios para o entendimento das discrepâncias exteriores, sendo que o juiz, com suas experiências e individuais e sociais, assim como qualquer pessoa, não está imune ao seu inconsciente[30].

Ademais, admitir a emoção dos juízes na produção das sentenças não significa o abandono da racionalidade do direito, pelo contrário, representa o seu uso de forma equilibrada. O uso da emoção ao lado da razão, dará aos juízes condições de não serem inconscientemente levados pelas manifestações negativas do referido arquétipo, que podem provocar nos julgadores atos falhos, oscilação de humor, irritabilidade, com prejuízo para a própria solução da demanda. p. 52.

Segundo a compreensão de Facchini Neto[31], o juiz quando julga não faz servindo-se apenas do intelecto, não desenvolve uma operação de simples aplicação da lei, mas julga também com vontade, participa, escolhe, decide, E, continua, dizendo e indagando:

O juiz não é somente juiz: é um cidadão, isto é, um homem que vive em sociedade, que tem certas opiniões e certos interesses comuns como outros homens. Não vive só; está ligado por vínculos de solidariedade e de conivências: é inquilino, é locador, ou proprietário de sua casa; é solteiro ou casado; é filho de comerciante ou de agricultores; pertence a uma igreja ou talvez, embora não o diga, identifica-se com um partido. Seria possível que todas essas condições pessoais não repercutam de alguma forma sobre suas decisões? Seria possível que, no seu raciocínio, justiça e política não entrem jamais em contato?

Ao que parece, seria temerário e porque não, irracional, acreditar que o juiz decide de forma puramente objetiva, neutra, imparcial e sem emoção. Enquanto ser humano, está aberto a influências de toda ordem, que moldam a sua percepção das coisas e das pessoas, de modo a transferir toda a sua subjetividade para as suas decisões.

Citando Antonio Damásio, reconhece Aury LOPES JR.[32] que é chegado o momento de resgatar a subjetividade e compreender que a racionalidade é incompleta e resulta seriamente prejudicada quando não existe nenhuma ligação com o sentimento. Não existe racionalidade sem emoção, daí a importância da subjetividade e do sentir do juiz no seu ato decisório.

Por outro lado, é necessário frente a toda complexidade que envolve o ato decisório, que o juiz decida. Como bem conclui Pozzebon,

A interpretação no direito ou em outras áreas do conhecimento nunca será uma atividade discricionária, ou puramente mecânica. Ela sempre será o produto de uma interação entre o intérprete e texto, e seu produto final conterá elementos objetivos e subjetivos. E é bom que seja assim. Enquanto a objetividade traçará os parâmetros de atuação do intérprete e permitirá aferir o acerto de sua decisão à luz das possibilidades exegéticas do texto, das regras de interpretação (...) e do conteúdo dos princípios e preceitos que não se pode afastar, a subjetividade traduzir-se-á na sensibilidade e intuição do intérprete (acrescenta-se: nas suas emoções, sem a qual não poderá decidir como visto em Antonio Damásio; nos seus valores; enfim, na sua história de vida como um todo) que humanizará a norma para afeiçoá-la à realidade e permitirá que ele busque a solução justa, dentre as alternativas que o ordenamento lhe abriu[33].

E, diante disso, o que a decisão judicial vai revelar? O resultado será o convencimento do juiz, o que nem sempre (e não precisa ser) será a verdade[34].


6. Considerações finais

O momento em que vivemos é uma expressão de diversidades, riscos, problemas, mas que aceita sonhos, mudanças, novos modelos de pensamento, enfim, novas perspectivas. Neste cenário, o Direito é chamado para, quem sabe, não mudar nada, ou até mudar o jogo de forças que impulsionam os inúmeros conflitos do dia-a-dia. Ao mesmo, respostas prontas e versões únicas, dando corpo a um discurso silogista, não tem a possibilidade de fundamentar uma decisão judicial.

  Diante desses dilemas está o juiz, pressionado por uma cultura de segurança jurídica que vê na lei a única saída para as soluções dos casos concretos. E, essa cultura que se assenta na objetividade, na técnica, na neutralidade e na imparcialidade, pretendendo reduzir a atividade de julgar a um simples comando manual, acaba por reduzir o juiz a um automatismo cruel.

Essas ideias permitem pensar novos rumos para a jurisdição e para o direito, especialmente para reconhecer que nas decisões judiciais a segurança jurídica é aparente, e é um momento em que o juiz não decide só com base em um juízo racional, pelo contrário, a emoção, ou melhor, as suas emoções, constituem uma parte fundamental desse processo.

Assim sendo, por mais que o Direito crie e se sustente por estruturas teóricas, é necessário se preocupar com a figura humana do juiz, que não pode, a pretexto de uma segurança jurídica ou de uma força vinculante de outras decisões e da própria jurisprudência, matar o que há de mais digno e louvável na atividade judicante, isto é, o sentimento.

E por mais que se queira, não há decisão e normas construídas somente na lei. Quando o juiz julga, suas escolhas, sua ideologia, seus sonhos e o seu passado, suas emoções e frustrações ficam na decisão, pois a decisão judicial é um ato do sentir humano e da sua complexidade enquanto ser humano, sendo que a neutralidade e a racionalidade pura sofre interferência do inconsciente e de diversos outros fatores.

Como asseverado anteriormente, o juiz precisa reconhecer que, ao decidir, não estará sendo neutro nem puramente racional, pois sempre estará decidindo com seus sentimentos, sua emoção e razão, sua pré-compreensão das coisas, pois julgar é um ato humano e só pode ser entendido assim, pois somente o humano percebe o humano.


Referências

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CARVALHO, Amilton Bueno. O juiz e a jurisprudência – um desabafo crítico. In: Revista de Estudos Criminais, ITEC, Porto Alegre, n. 7, 2002, p. 13-18.

DAMÁSIO, António. Sem perder a humanidade jamais. Rio de Janeiro, 2012. Entrevista concedida a Thiago Camelo, abr. 2012.

FACCHINI NETTO, Eugênio. “E o juiz não é só de direito...” (ou “a função jurisdicional e a subjetividade”). ZIMERMANN, David; COLTRO, Antônio Carlos Mathias (Coord.). Aspectos psicológicos na prática jurídica. Campinas: Milennium, 2002, p. 397-413.

GAUER, Gabriel J. Chittó. Transcendendo a dicotomia razão vs. Emoção. Memória, punição e justiça: uma abordagem interdisciplinar. Porto Alegre, 2011, p. 9-16.

GAUER, Ruth M. Chittó. Conhecimento e aceleração (mito, verdade e tempo). In: GAUER, Ruth M. Chittó (Coord.). A qualidade do tempo: para além das aparências históricas. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2004, p. 1-16.

GAUER, Ruth Maria Chittó. Modernidade, direito penal e conservadorismo judicial. In: SCHMIDT, Andrei Zenkner (Coord.). Novos rumos do direito penal contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 597-609.

GIACOMOLLI, Nereu Jose. Reformas (?) do processo penal: considerações críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

GIACOMOLLI, Nereu José; DUARTE, Liza Bastos. O mito da neutralidade na motivação das decisões judiciais: aspectos epistemológicos. In: Revista da AJURIS, Porto Alegre, n. 102, jun. 2006, p. 288-307.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. V. I e II. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

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Sobre o autor
Robson de Vargas

Mestrando em Ciências Criminais – PUCRS. Especialista em Direito Constitucional – UNESA. Especialista em Ciências Penais – PUCRS. Professor na área de Direito Público no Centro Universitário Estácio de Sá – Santa Catarina. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VARGAS, Robson. O juiz e o ato de julgar:: alguns aspectos envolvidos na construção da decisão judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3708, 26 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25142. Acesso em: 24 nov. 2024.

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