O ponto de partida para o presente artigo é a evolução da jurisprudência do STF – Supremo Tribunal Federal - sobre a competência absoluta. A sistemática do CPC – Código de Processo Civil – determina que a consequência da propositura de ação judicial em juízo absolutamente incompetente é a remessa dos autos àquele competente, anulando-se apenas os atos decisórios (art. 113, § 2º, do CPC). Esse era o antigo entendimento do STF.
Tempos depois o Supremo passou a admitir a possibilidade de ratificação dos atos decisórios, contrariando a literalidade da norma jurídica mencionada (art. 113, § 2º, do CPC: “Declarada a incompetência absoluta, somente os atos decisórios serão nulos, remetendo-se os autos ao juiz competente”), senão vejamos um de seus julgados:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROCESSUAL PENAL. INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA. ATOS DECISÓRIOS. POSSIBILIDADE DE RATIFICAÇÃO. 1. Este Tribunal fixara anteriormente entendimento no sentido de que, nos casos de incompetência absoluta, somente os atos decisórios seriam anulados, sendo possível a ratificação dos atos sem caráter decisório. Posteriormente, passou a admitir a possibilidade de ratificação inclusive dos atos decisórios. Precedentes. Agravo regimental a que se nega seguimento.
(RE 464894 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 24/06/2008, DJe-152 DIVULG 14-08-2008 PUBLIC 15-08-2008 EMENT VOL-02328-05 PP-01025)
Por que não ir além, admitindo-se a relativização da competência absoluta ao permitir que demanda proposta em juízo absolutamente incompetente continue sendo processada no mesmo juízo após a “estabilização” do processo?
Imagine-se a propositura de ação popular por ato lesivo ao meio ambiente proposta erroneamente em Juizado Especial Cível Federal. O art. 3º, § 1º, I, da Lei 10.259/2001 dispõe não ser competente para referida ação o Juizado Federal, em razão de a causa ser, presumidamente, de maior complexidade. Pense-se que o juízo, ao receber a inicial, mande citar a parte contrária, a qual não suscita a incompetência. Na sequência o juízo determina a produção de provas, desapercebido da questão. Para esta hipótese entende-se que a perpetuatio jurisdictionis incide, postulado que se pretende ver como regra geral no sistema processual, excepcionando-se situações em que a aplicação da regra fulmine princípios constitucionais.
As regras de processo (ou procedimento) judicial possuem caráter instrumental frente ao direito material. No caso das regras de competência objetiva-se: a) informar as partes previamente acerca das regras da disputa judicial; b) dar guarida ao princípio do juiz natural, evitando-se a instalação de juízo de exceção. Em outras palavras, garantir que as partes não escolham o juiz da causa, que deve ser imparcial.
A propositura de demanda em juízo absolutamente incompetente não macula o princípio do juiz natural, desde que o réu não alegue tal vício em momento oportuno (primeira manifestação nos autos) e com a condição de que o juízo, ao ter contato com a peça inicial e com a contestação, não suscite ex officio o vício procedimental no primeiro momento. A partir de então incide a regra da perpetuatio jurisdictionis, de modo a estabilizar a demanda no que se refere ao juízo competente e às regras procedimentais. Dito de outro modo, não alegada a incompetência absoluta no exemplo mencionado, a ação popular é processada em primeiro, segundo e demais graus perante as regras procedimentais previstas para o Juizado Especial.
Poder-se-ia alegar que referida proposta de relativização da incompetência absoluta violaria o princípio da separação de poderes, segundo o qual incumbiria ao Congresso Nacional estabelecer tal norma jurídica. Refuta-se o argumento segundo o raciocínio de que (i) todos os Poderes da República exercem funções típicas e atípicas, (ii) acrescendo-se que o Poder Judiciário, ao decidir a lide, constitui norma jurídica concreta, de mesma essência que aquela editada pelo Congresso Nacional (geral e abstrata), porquanto prescreve conduta sob pena de sanção. O próprio STF, guardião da Constituição da República, decidiu de forma diversa do CPC, atendendo à finalidade das regras de processo, visto como instrumental em relação ao direito material.
Ou então a proposta aqui defendida seria cunhada de anarquista, promovendo a total desorganização e insegurança jurídica, o que não pode ser aceito, uma vez que as regras de competência devem ser observadas pelas partes e pelo magistrado em momento oportuno. Não se está incentivando a propositura de ações em juízo incorreto, apenas a estabilização da demanda quando o vício de competência não for percebido no momento oportuno. Caso tenha sido percebido o vício, encaminha-se ao juízo competente, aproveitando-se os atos decisórios, conforme a leitura mais recente do STF sobre o art. 113, § 2º do CPC.
A relativização da incompetência absoluta, com tratamento semelhante à incompetência relativa, implica perpetuatio jurisdictionis, sendo viável porque não traz qualquer prejuízo às partes, que serão julgadas por juiz imparcial e segundo rito previamente definido por lei que garanta o contraditório.
Ampara esta proposta o princípio da unicidade de jurisdição, segundo o qual “... todos os juízes do país são investidos desse poder, o qual é o mesmo apesar da distribuição de tarefas e atribuições, não falecendo jurisdição ao juiz incompetente e jamais se considerando inexistente o ato realizado sem competência para realizá-lo.”1. Acrescenta-se o princípio da celeridade processual, alcançado com a aplicação da perpetuatio jurisdictionis.
Oportuno argumento contrário à proposta de relativização da incompetência absoluta seria a lesão a razões de ordem pública. Por exemplo, pode-se raciocinar ser impossível aplicar a perpetuatio jurisdictionis em ação de controle concentrado de constitucionalidade proposta em Tribunal diverso do STF, aplicando-se o mesmo raciocínio na competência por prerrogativa de função.
De fato a relativização da incompetência absoluta é uma proposta a ser aplicada como regra geral, excetuadas situações específicas nas quais não pode ter lugar, por razões de ordem pública, esta consubstanciada nos princípios constitucionais. Criaria acentuada insegurança jurídica o processamento e julgamento de ação de controle concentrado de constitucionalidade no STJ – Superior Tribunal de Justiça -, quando a competência é do Supremo. Em outro caso, o ingresso da ação penal do mensalão (Ação Penal 470), que se encontra no STF, em juízo monocrático poderia comprometer a imparcialidade do julgamento frente às pressões políticas exercidas sobre o juízo singular.
Por outro lado, o processamento e julgamento de ação penal por crime doloso contra a vida em juízo diverso do Tribunal do Júri não macularia qualquer garantia constitucional ou processual, pois não há direito adquirido a regras processuais. Há direito de julgamento por juiz imparcial, segundo regras pré-estabelecidas que garantam ao réu a possibilidade de defesa, evitando-se más experiências passadas, como ocorreu no Regime Militar Brasileiro. Neste caso nem a soberania do júri popular impede a relativização da incompetência absoluta, primeiro porque embora o povo seja detentor do poder, exerce-o mais constantemente através de representantes, eleitos ou não. Dito de outra forma, o julgamento (de uma ação de alimentos por exemplo) por juiz togado implica em exercício indireto do poder popular através da pessoa do juiz de direito concursado mas não eleito. Se a Justiça é exercida pelos incontáveis juízes sem prejuízos materiais a quaisquer das partes, não se mostra descabido o julgamento de crimes dolosos contra a vida por juízes togados e não pelos jurados.
Segundo, dada a imparcialidade do magistrado, não haveria que se falar em julgamento injusto, nem seria comprometida a garantia de ampla defesa do acusado. Inclusive o julgamento seria mais célere e menos sujeito aos questionamentos de um rito escalonado e complexo como é o rito do júri.
Diante do que se expôs, formula-se a proposta segundo a qual “a incompetência absoluta, quando não macular garantias constitucionais concretamente demonstradas, preclui ou se prorroga, aplicando-se a perpetuatio jurisdictionis, desde que: a) o réu não a alegue na primeira oportunidade; b) o juiz, ao receber a inicial e a primeira manifestação do réu, não se pronuncie.”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito: o constructivismo lógico-semântico. São Paulo: Noeses, 2009.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Volume 1. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.
RADBRUCH, Gustav, 1878-1949. Filosofia do direito. Tradução L. Cabral de Moncada. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1979.
VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência Uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos - Tradução da 5ºEdição. Editora: Sérgio Antonio Fabris.
NOTA
1 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Volume 1. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p 438. Ressalta-se que o entendimento de Dinamarco é o de que “As competências insuscetíveis de modificação, ditas absolutas, não comportam modificação alguma” (p. 466).